quinta-feira, 8 de julho de 2021

A procuração "em causa própria" como forma indireta de alienação de bens: ITBI e registro de imóveis


Objetivamos discutir se a procuração em causa própria é ou não fato gerador do ITBI quando for utilizada como uma forma indireta de transmissão de propriedade. Discute-se também se ela pode ou não ser registrada ou averbada na matrícula no competente Cartório de imóveis.

Mandato1 é contrato por meio do qual o mandatário recebe poderes para praticar atos e administrar interesses em nome e por conta do mandatário. Por isso, o mandante é que fica obrigado pelo ato do mandatário. Em poucas palavras, pelo mandato, uma pessoa (mandante) pode praticar um ato jurídico por meio de outra (mandante).

Como uma espécie de "corruptela" do instituto do mandato, o art. 685 do Código Civil (CC) admite o mandato (ou procuração) em causa própria, também designado de mandato in rem suam. Ele, ao contrário do que se dá com o mandato em geral, é outorgado no interesse exclusivo do mandatário (e não do mandante). É que o mandato em causa própria autoriza o mandatário a representar, no próprio interesse, o mandante. Como o mandatário não agirá no interesse do mandante, o mandato em causa própria, além de ser irrevogável, não se extingue com a morte e não gera dever de prestar constas.

É comum a procuração em causa própria ser utilizada como forma de "alienar o bem": o "vendedor", no lugar de celebrar um contrato de compra e venda, outorga poderes ao "comprador" por meio de procuração em causa própria e recebe o preço do imóvel. Essa procuração não transfere o direito real de propriedade, mas dá poderes ao "comprador" para alienar a coisa para si mesmo ou para terceiros.

Desse modo, se o "comprador" quiser transferir o direito real para si, basta ele, usando a procuração, celebrar um contrato consigo mesmo (ou autocontrato2), ou seja, celebrar um contrato de compra e venda em que o "comprador" assinará o campo da assinatura dos dois polos contratuais: assinará no polo do "vendedor" na condição de mandatário do titular do titular do direito real de propriedade (assinará "por procuração") e, também, assinará no polo do "comprador" em nome próprio. Soa estranha a aparência da escritura: uma mesma pessoa assinando os dois polos da escritura de compra e venda, como se ela estivesse vendendo o imóvel para si mesmo. Juridicamente, porém, não se trata de uma venda para si mesmo, pois, no campo do "vendedor", a pessoa está assinando em nome do mandante, e não em nome próprio.

A propósito, o art. 62 do Provimento-Geral da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/DF exige que a procuração em causa própria contenha elementos próprios de um contrato de compra e venda, como o valor do imóvel, a descrição do bem e a emissão da Declaração de Operação Imobiliária - DOI3.

O mandato em causa própria é usado também como forma de "contornar" o pagamento de ITBI, imposto cujo fato gerador é, à luz do STJ, a transferência da propriedade imobiliária, que somente se opera mediante registro do negócio jurídico no ofício competente (STJ, AgRg no AREsp nº 215.273/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 15/10/2012).

De fato, se eu quero comprar um imóvel a preço baixo com a intenção de obter um lucro com a sua revenda a um terceiro por um preço maior, esse arranjo negocial envolveria duas transmissões onerosas de imóvel: uma do atual proprietário para mim por meio do registro da escritura de compra e venda que celebraríamos; outra de mim para o terceiro adquirente. Haveria, pois, a cobrança de dois ITBIs. Para contornar um dos ITBIs, eu poderia obter uma procuração em causa própria do atual proprietário, pagando-lhe o preço do imóvel. Nesse caso, não há uma efetiva compra e venda e, portanto, não há transferência do direito real de propriedade, de maneira que não haverá o fato gerador do ITBI. Em seguida, eu posso, representando o atual proprietário, assinar uma escritura pública de venda do imóvel para o terceiro, que, em contrapartida, pagará para mim o preço maior que eu cobrei. Com o registro dessa escritura, o direito real de proprietário será transferido diretamente para esse terceiro, sem passar por mim, o que será o fato gerador do ITBI. Nessa sistemática, só haverá a cobrança de um ITBI.

Finalmente, passamos a enfrentar as questões que introduziram este artigo: o aspecto tributário e o registral.

Há controvérsias se essa operação configura ou não fraude fiscal e também se a procuração em causa própria poderia ser registrada no Cartório de Imóveis.

Entendemos que não há fraude fiscal, pois o mandatário "em causa própria", além de ter-se valido de um negócio jurídico expressamente previsto em lei (no art. 685 do CC), jamais se tornou titular do direito real de propriedade e, portanto, nunca desfrutou dos privilégios desse tipo de direito (como a oponibilidade erga omnes), de modo que seria descabido cobrar ITBI para essa hipótese a pretexto de simulação. Não há simulação nem fraude.

Entendemos ainda que a procuração em causa própria não pode ser objeto de registro na matrícula do imóvel em razão da taxatividade dos atos de registro (art. 167, I, da LRP), mas poderia ser objeto de averbação por força da natureza exemplificativa dos atos de averbação (art. 246, LRP), mas isso não terá o condão de transferir o direito real de propriedade.
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1 "A denominação deriva de manu datum, porque as partes se davam as mãos, simbolizando a aceitação do encargo e a promessa de fidelidade no cumprimento da incumbência. O vocábulo mandato designa ora o poder conferido ao mandante, ora o contrato celebrado, ora o título deste contrato, de que é sinônima a procuração" (Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 410).

2 A autocontratação é admitida apenas nos casos permitidos em lei (art. 117, CC), como é o caso do emprego da procuração em causa própria (art. 685, CC). Não se admite a autocontratação quando for evidente o conflito de interesses entre o dominus negotii e o representante. Essa é a ratio essendi da Súmula nº 60/STJ: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste".

3 Veja os arts. 62 e 81 do referido provimento:

Art. 62. Na lavratura de procurações ou substabelecimentos relativos a` alienação de bens móveis ou imóveis constara' a descrição do bem, observando-se, no que couber, o disposto no art. 81 deste Provimento, quanto às procurações em causa própria, das quais constara', ainda, o valor do bem imóvel, bem como as cláusulas de irrevogabilidade, irretratabilidade e isenção de prestação de contas.

(...)

Art. 81. O tabelião comunicará a` Secretaria da Receita Federal do Brasil a lavratura de documentos de aquisição ou alienação de bens imóveis por pessoas físicas ou jurídicas, na forma do disposto no art. 15 do Decreto-Lei n. 1.510/1976, nos arts. 71 e 72 da Lei n. 9.532/1997, no art. 8o da Lei n. 10.426/2002, e nas respectivas instruções normativas expedidas pela Fazenda Pública, independentemente da localidade em que esteja situado o imóvel.

Atualizado em: 7/7/2021 08:32

Carlos Eduardo Elias de Oliveira - Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil. Advogado, doutorando, mestre e bacharel em Direito na UnB. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB. Ex-advogado da União (AGU).
Fonte: Migalhas Notariais e Registrais

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