INTRODUÇÃO
Os direitos devem ser exercidos por seus titulares atentando-se para as faculdades a eles inerentes e, concomitantemente, observando-se as normas pertinentes ao seu exercício.
Como sustenta Orlando Gomes, “o princípio de que cada qual pode usar de seu direito como lhe convém não é mais aceito em face do princípio da normalidade”[1]. Os direitos não mais podem ser exercidos exclusivamente de acordo com a vontade de seus titulares, sob pena de configurar abuso de direito.
Neste sentido, os direitos assegurados aos indivíduos recebem limitações que podem ser ou integrantes de sua própria essência, ou derivadas de outras que lhe são externas. As primeiras são nominadas de intrínsecas, as segundas, são as extrínsecas[2].
Os limites intrínsecos são aqueles referentes ao objeto, ao conteúdo e à duração do próprio direito. Já os extrínsecos, por sua vez, podem ser exemplificados através da proteção de terceiros de boa-fé e da sobreposição de um direito em detrimento do outro, quando em rota de colisão.
Estas breves considerações são objeto de análise no presente trabalho, haja vista que, quanto à função social das propriedades, há dissenso na doutrina: seria uma limitação intrínseca, integrante da própria essência do direito, ou seria uma limitação extrínseca, não relacionada ao direito em si, mas à forma de seu exercício?
Em verdade, parece que o debate acadêmico neste tocante tem a finalidade precípua de justificar a intervenção nas propriedades pela função social, de modo a fazer com que não seja visualizada como uma afronta às propriedades, antes reputadas absolutas e intocáveis.
1. A PROPRIEDADE TEM FUNÇÃO SOCIAL
Inicialmente, destaca-se o posicionamento no sentido de que as propriedades têm função social. Para os defensores desta corrente, a função social não é elemento que integra os próprios direitos de propriedades, sendo uma limitação externa imposta ao seu exercício.
Segundo esta corrente, as propriedades são, em primeiro lugar, asseguradas, com seus contornos previamente definidos em lei. A função social foge de seu âmbito, sendo exterior ao próprio direito. Funciona, assim, como um limite externo, que não compõe o direito em si, configurando-se uma nítida restrição às propriedades.
Luiz Edson Fachin, por exemplo, sustenta que a doutrina da função social implica em alteração da concepção clássica da propriedade, não mais havendo como concebê-la como um direito absoluto que serve aos interesses individuais do seu titular. No seu entender, ocorreu esta modificação de paradigma que não alcança a essência do direito de propriedade, mas apenas limita tal direito[3].
Para ele, “considerar que a propriedade é uma função social [...] é insustentável”. Fachin assevera que a propriedade tem função social, e não é função social, pelo que, no exercício do direito são impostas limitações externas a fim de se alcançar o interesse público[4].
2. A PROPRIEDADE É FUNÇÃO SOCIAL
Por outro lado, os que consideram que as propriedades são função social, asseveram que tais direitos são compostos das prerrogativas asseguradas ao seu titular, de uso, gozo, disposição, reivindicação, sendo somado a estes elementos o quinto, a função social.
Assim, a função social, para esta corrente, faz parte da essência do próprio direito, chegando a ser considerada, inclusive, como a razão de ser da garantia das propriedades.
Neste sentido, oportuna a lição de Pietro Perlingieri, para quem a função social predeterminada para a propriedade privada não diz respeito exclusivamente aos seus limites. [...] A função social, construída como conjunto de limites, representaria uma noção somente de tipo negativo voltada a comprimir os poderes dos proprietários, os quais sem os limites, ficariam íntegros e livres. [...] Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular[5].
Paulo Luiz Netto Lobo coaduna com este posicionamento, asseverando que a função social “é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa”. Para o autor, a função social consiste em limitação ínsita ao próprio direito, condicionando o seu exercício. Neste sentido, somente será lícito o interesse individual se este concretizar, também, o interesse social. Ou seja, o exercício do direito de propriedade deve ser voltado à utilidade, para si e para todos. Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação[6].
No mesmo sentido, posiciona-se Luciano L. Figueiredo, que sustenta que a função social é um dever que decorre do próprio conteúdo do direito de propriedade, direito que deve ser exercido pelo sujeito em observância aos seus interesses pessoais, e voltada à obtenção de vantagem de cunho difuso[7].
O autor vai mais além, e sustenta que “o direito de propriedade passa de um direito e garantia individual, para um direito e garantia transindividual, pois além das faculdades proprietárias, [...] sobre o instituto incidem os direitos dos não proprietários”[8].
CONCLUSÃO
De fato, é de se posicionar segundo o entendimento de que as propriedades são função social, sendo este o motivo determinante para a proteção do direito subjetivo do seu titular. A função social é elemento que integra os direitos de propriedades, consistindo em motivo determinante para o seu reconhecimento e proteção.
Deste modo, a função social é essência qualitativa dos direitos de propriedades – assim como dos demais institutos de direito privado –, assumindo um papel promocional dos valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da solidariedade.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 206.
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 18-19
FIGUEIREDO, Luciano L. Os reais contornos do princípio social das propriedades: (in) acesso x funcionalização. Revista do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Homenagem ao Prof. Dr. George Fragoso Modesto. n. 13. Salvador: Bahia, 2006.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 123.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível na Internet: . Acesso em 09 de abr. de 2011.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
NOTAS
[1] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 123.
[2] AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 206.
[3] FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 18-19
[4] Ibidem. p. 19.
[5] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 226
[6] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível na Internet: . Acesso em 09 de abr. de 2011. p. 09.
[7] FIGUEIREDO, Luciano L. Os reais contornos do princípio social das propriedades: (in) acesso x funcionalização. Revista do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Homenagem ao Prof. Dr. George Fragoso Modesto. n. 13. Salvador: Bahia, 2006. p. 169.
[8] Ibidem. p. 170.
Fernanda Machado Anarante - Mestre em Direito, na área de concentração relações sociais e novos direitos, pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Pós-graduada em Direito Civil, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Possui graduação pela Faculdade de Direito Milton Campos.
É Advogada e Professora Universitária, atuando nas áreas de Propriedade Intelectual e Direito Civil.
Pós-graduada em Direito Civil, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Possui graduação pela Faculdade de Direito Milton Campos.
É Advogada e Professora Universitária, atuando nas áreas de Propriedade Intelectual e Direito Civil.
Fonte: Artigos Jus Navigandi
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