1. Introdução e definição do princípio do aviso prévio
Os agentes econômicos que atuam no mercado imobiliário precisam estar atentos a que nem todas as regras estão textualmente previstas na lei. Há algumas que decorrem de princípios jurídicos, e sua violação pode implicar prejuízos, como a nulidade de negócios jurídicos, a condenação a pagar indenização por danos morais etc. Já tivemos a oportunidade de defender a necessidade de o juiz valer-se de um grau de empatia para, colocando-se no lugar do agente econômico, identificar se havia ou não um cenário de dúvida jurídica razoável para efeito de afastar consequências desproporcionais. Por exemplo, não soa justo condenar uma empresa a pagar indenização por dano moral se, no momento da conduta, havia dúvida jurídica razoável quanto à sua licitude1.
Nesse sentido, um dos princípios jurídicos a serem lembrados pelos que atuam no mercado imobiliário é o que nós batizamos de princípio do aviso prévio a uma sanção, sobre cujos fundamentos remetemos a outro texto que publicamos e do qual extraímos alguns excertos no presente artigo2.
À luz do princípio do aviso prévio a uma sanção, todas as pessoas têm direito a serem lembradas previamente à imposição de uma sanção. Esse direito objetiva garantir tanto a possibilidade de o devedor adotar uma conduta para evitar a sanção (como pagar a dívida que geraria a sanção) quanto a possibilidade de ele exercer um contraditório para afastar a sanção. Esse princípio de direito só deve ser excepcionado quando houver justo motivo, como sucede, no processo civil, com as tutelas provisórias.
Toma-se o verbete "sanção" no sentido mais amplo possível a fim de abranger qualquer restrição de direitos. Sabemos que a palavra "sanção" diz respeito a uma punição, mas aqui estamos, por escolha metodológica nossa, a utilizá-la de um modo amplo para abranger qualquer situação jurídica em que uma pessoa haverá de sofrer alguma restrição de direito (punição ou não) por conduta de outrem. Assim, o corte da luz do devedor, a prisão civil do alimentado inadimplente, a constituição do devedor em mora ou negativação do nome do devedor são exemplos do que aqui chamamos de “sanção”.
A falta do aviso prévio a uma sanção pode, a depender do caso concreto, caracterizar ato ilícito com a capacidade de gerar a invalidade da sanção ou dever de indenização danos materiais ou morais.
Quanto mais drástica for a "sanção", maior deverá ser o rigor em exigir a certeza da efetiva cientificação prévia do devedor. A prisão civil do devedor de alimentos, por exemplo, por ser tão drástica, exige citação pessoal. Já a negativação do nome do devedor se satisfaz com o envio de correspondência ao endereço do devedor diante da menor gravidade da sanção.
2. Aplicação do princípio em questões de direito imobiliário
O princípio do aviso prévio a uma sanção é aplicável em todos os ramos do direito, mas é no ramo do direito imobiliário que se encontram mais exemplos.
Um primeiro caso diz respeito à sanção da "constituição do devedor em mora". Em contratos de locação de imóveis ou em contratos de venda de imóveis, o locador ou o vendedor só pode cobrar os encargos moratórios, como juros moratórios e multa moratória, após constituir o devedor em mora. Segundo o art. 397 do CC, a caracterização da mora depende de o devedor ser lembrado, no dia do pagamento da obrigação, acerca de todas as condições de pagamento (como o valor e o momento).
Quando se trata de obrigação líquida, positiva e sujeita a termo, a lembrança será feita – na metáfora dos romanos antigos – pelo "céu", que, no lugar do credor, metaforicamente encaminhará uma interpelação ao devedor no dia do advento do termo juntamente com os primeiros raios de luz do novo dia. Os romanos falavam aí de "dies interpellat pro homine" (o dia interpela pelo homem), ou seja, a data (o "céu") notifica o devedor para lembrá-lo da sua obrigação de pagar, sob pena de suportar as “sanções” da mora. Trata-se aí da conhecida mora ex re.
Quando se tratar de outras obrigações, a mora só se constitui com a interpelação judicial ou extrajudicial encaminhada pelo credor; o "céu" não o substituirá. Trata-se da batizada mora ex personae.
Uma segunda situação é a da inscrição do nome do devedor em cadastro de inadimplentes. Para inscrever o nome do devedor em cadastro de inadimplentes, é mister a sua notificação prévia por parte do órgão cadastral, sob pena de causar dano moral (art. 43, § 2º, do CDC)3. O devedor já está em mora com o atraso no pagamento da dívida, que geralmente é sujeita à mora ex re. Todavia, a sanção da "negativação do nome", por sua gravidade, reclama prévia notificação do devedor, em respeito ao princípio do "aviso prévio a uma sanção".
Embora o dever jurídico de comunicação seja do órgão de cadastro de inadimplentes (como o Serasa)4, é conveniente que as imobiliárias, incorporadoras e outras empresas velem por que essa notificação prévia seja feita.
Aliás, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontou uma nova hipótese, sem previsão textual na lei. O órgão de cadastro de inadimplentes só negativar o nome do devedor a partir de informações do Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), que é operado pelo Banco do Brasil, mediante prévia notificação do devedor, sob pena de causar dano moral. É irrelevante que a negativação do nome do devedor no CCF já tenha sido precedida de notificação feita pelo banco sacado do cheque sem fundo5, pois o CCF é de consulta restrita e, portanto, não configura um banco de dados públicos, como o é os órgãos de cadastro de inadimplentes, como o Serasa. Transportar os dados do CCF para os órgãos de cadastro de inadimplentes representa uma sanção adicional e, portanto, atrai um dever de prévia notificação à luz do princípio do aviso prévio a uma sanção6.
Uma quarta hipótese é a da execução extrajudicial da alienação fiduciária em garantia de imóvel. Para que o credor fiduciário consolide a propriedade fiduciária do imóvel objeto da garantia no caso de inadimplemento do devedor fiduciante, é necessário que este seja previamente notificado por meio de Cartório de Imóveis para purgar a mora, conforme o procedimento de execução extrajudicial previsto no art. 26 da lei 9.514, de 1997. O devedor já está em mora com o não pagamento da parcela do financiamento, por se tratar de mora ex re, mas, para a aplicação da medida drástica da consolidação da propriedade nas mãos do credor, o devedor precisa de uma notificação prévia. Trata-se de mais um exemplo do princípio do "aviso prévio a uma sanção".
Outro caso é na ação de despejo nos contratos de locação de imóveis urbanos. Em atenção ao princípio do "aviso prévio a uma sanção", o procedimento do despejo prevê que, antes da ordem judicial de despejo, o inquilino inadimplente tem o direito de, após ser citado, purgar a mora: trata-se do chamado depósito elisivo (art. 61, § 3º, e art. 62, II, da Lei nº 8.245/91). Temos aí um outro exemplo de observância ao princípio do "aviso prévio a uma sanção".
Mais um caso é o da multa a condômino antissocial. Embora o art. 1.336, § 2º, e 1.337 do CC disciplinem a multa contra o condômino antissocial sem mencionar o dever de notificação prévia, isso decorre do princípio do aviso prévio a uma sanção, de modo que multas infligidas sem prévia notificação são nulas7.
3. Conclusão
Os agentes econômicos no mercado imobiliário precisam atentar para o princípio do aviso prévio em todas as condutas que adotarem, mesmo quando inexistir previsão textual em lei.
Se, por exemplo, um condomínio prevê o corte do fornecimento de água a um condômino que não está pagando a contribuição (naqueles casos em que inexiste hidrômetro por apartamento), apesar de tal cláusula ser de duvidosa legalidade8, convém que, no mínimo, seja garantida uma notificação prévia ao devedor.
Deixamos aqui a provocação para que os caríssimos leitores que lidam com o mercado imobiliário identifiquem outros casos concretos que convidem a aplicação do princípio do aviso prévio a uma sanção .
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1 Há dois artigos a propósito desse tema:
a) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Março/2018 (Texto para Discussão nº 245). Acesso em 5 de março de 2018.
b) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. A Segurança Hermenêutica nos vários ramos do direito e nos cartórios extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Junho/2018 (Texto para Discussão nº 250). Acesso em 20 de junho de 2018.
2 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio do Aviso Prévio a uma Sanção no Direito Civil Brasileiro. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio/2019 (Texto para Discussão nº 259). Acesso em 30 de maio de 2019.
3 STJ entende assim (STJ, REsp 1061134/RS, 2ª Seção, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 01/04/2009).
4 Súmula nº 359/STJ: Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição.
5 STJ entende assim: "O Banco do Brasil, na condição de mero operador e gestor do Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos - CCF, não detém legitimidade passiva para responder por danos resultantes da ausência de notificação prévia do correntista acerca de sua inscrição no referido cadastro, obrigação que incumbe ao banco sacado, junto ao qual o correntista mantém relação contratual" (STJ, REsp 1354590/RS, 2ª Seção, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 15/09/2015).
6 Veja este julgado do STJ: REsp 1578448/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 12/04/2019.
7 Isso é confirmado pelo enunciado nº 92 da Jornada de Direito Civil: "As sanções do art. 1.337 do novo Código Civil não podem ser aplicadas sem que se garanta direito de defesa ao condômino nocivo".
8 O STJ entende abusivo proibir o acesso do condômino inadimplente às áreas comuns, como nas piscinas (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 1220353/SP, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 12/02/2019). Não analisou, porém, hipótese de corte de água pelo condomínio em hipóteses de inexistência de individualização do hidrômetro, o que deixa a questão em aberto, especialmente porque a continuidade no fornecimento poderá somente agravar a dívida total que o condomínio tem com a concessionária do serviço público.
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Carlos Eduardo Elias de Oliveira é doutorando, mestre e bacharel em Direito na Universidade de Brasília – UnB. Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil. Advogado. Ex-advogado da União e ex-assessor de ministro do STJ.
Fonte: Migalhas Edilícias
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