Antes de as normas urbanísticas se tornarem complexas, o preço atribuído a um imóvel dependia basicamente de sua localização e metragem. Aos poucos, as normas urbanísticas e edilícias foram se tornando mais sofisticadas e detalhadas, com regras de zoneamento relativas ao tipo de uso (residencial, comercial, industrial), além de outras pertinentes a recuos, gabarito, taxa de ocupação, potencial construtivo, permeabilidade e outras.
Com o advento do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), foram introduzidos diversos instrumentos de política urbana, como as operações urbanas consorciadas, outorga onerosa do direito de construir, transferência do direito de construir, direito de preempção, estudo de impacto de vizinhança e diversos outros, a serem tratados nos planos diretores das cidades.
Com isso, o que pode ser construído em um determinado imóvel passou a variar muito, dependendo da incidência de normas cada vez mais complexas, que consideram não apenas a localização e dimensão do terreno, mas também diversos aspectos ambientais e urbanísticos, inclusive a possibilidade de maior ou menor adensamento.
Um dos fatores que mais influenciam o que pode ser edificado é o potencial construtivo (quanto se pode construir no imóvel), usualmente expresso na forma de um coeficiente de aproveitamento. Assim, se um imóvel tem coeficiente 1, pode ser construída a mesma quantidade de área computável que a metragem quadrada do terreno; já se o coeficiente é 2, significa que pode ser construído o dobro de metros quadrados em relação à área do terreno.
Muitos municípios, entretanto, adotam um coeficiente variável para o mesmo terreno, permitindo que o proprietário edifique além do coeficiente de aproveitamento, desde que pague um valor à prefeitura, a chamada outorga onerosa. Por exemplo, um determinado imóvel pode ter coeficiente 1 (coeficiente básico), mas mediante pagamento de outorga onerosa pode chegar a 4 (coeficiente máximo), desde que esse acréscimo de 1 a 4 seja pago mediante outorga à prefeitura. Valendo-se de tal instituto, muitos municípios reduziram drasticamente o potencial construtivo dos imóveis, mas permitindo o retorno do potencial anterior mediante pagamento de outorga onerosa.
Como o potencial construtivo em seus coeficientes básicos e máximos, assim como o valor da outorga onerosa, são fixados por meio do plano diretor e da lei de zoneamento, que por sua vez estão sujeitos a revisões periódicas, tem-se que o valor dos imóveis e aquilo que nele pode ser construído passou a variar em função das normas aplicáveis. Isso faz com que um terreno de pouco valor (por ter baixo aproveitamento) passe a ser muito atrativo para o mercado imobiliário se novas normas urbanísticas lhe atribuírem um potencial construtivo maior, podendo ocorrer também o contrário.
A cidade de São Paulo tem exemplos claros a respeito, em que, com a entrada em vigor de novo plano diretor, os imóveis próximos aos chamados eixos de transporte público de massa tiveram seu potencial construtivo substancialmente elevado, enquanto a maior parte da cidade, nos 2 chamados “miolos dos bairros”, tem coeficiente de aproveitamento baixo e limite de gabarito, ficando praticamente inviáveis para construção de empreendimentos.
Do ponto de vista dos empreendedores e proprietários de imóveis, a negociação em torno de um terreno leva em conta as regras então vigentes, ou seja, aquilo que se pode construir no momento de realização do negócio. Não é raro, inclusive, que, às vésperas de uma mudança de plano diretor ou lei de zoneamento, as partes se apressem em fechar o negócio, protocolar e aprovar o projeto, para evitar que uma redução de potencial na nova lei venha a impactar negativamente o empreendimento pretendido.
A alteração do potencial construtivo também pode ser para maior, embora hoje isso ocorra em situações específicas. Por exemplo, há tempos proprietários de terrenos da região da Operação Urbana Faria Lima, em São Paulo esperam por novo lançamento a mercado dos certificados de potencial adicional de construção (Cepacs), para que os terrenos possam voltar a ter potencial acrescido e com isso ser possível aprovar projetos de empreendimentos com base no potencial construtivo máximo previsto na Lei da Operação.
Apesar de situações específicas, como as Operações Urbanas, a tendência observada nas últimas décadas é a redução do potencial construtivo e limitação do direito de construir, o que tem diversas consequências, como a substancial elevação do valor dos imóveis. Entretanto, embora não seja a percepção geral, acreditamos que em futuro próximo haja alterações legais para induzir edificações maiores, revertendo a tendência hoje vigente.
Há uma corrente de pensamento, ainda pouco prestigiada no Brasil, de que as cidades precisam se tornar mais compactas e verticalizadas, permitindo maior adensamento nos locais onde há maior infraestrutura de transportes, comércio, serviços, escolas, hospitais e outros equipamentos. Com isso, haveria aumento da oferta de moradias nas regiões centrais, redução dos trajetos e do número de viagens pelos moradores e desoneração do poder público de levar infraestrutura básica a áreas periféricas. Além disso, haveria redução do impacto ambiental sobre as áreas limítrofes dos municípios, muitas vezes o chamado cinturão verde e áreas de mananciais.
De certa forma, o incentivo ao adensamento nos chamados eixos de transformação e estruturação urbana contido na lei atual paulistana buscou considerar esses fatores, mas seu efeito é limitado e distorcido pela 'cota máxima de terreno por unidade' (que praticamente obriga a construção apenas de unidades pequenas e com uma vaga), deixando de fora mais de 90% da área da cidade.
Caso os futuros planos diretores e leis de zoneamento das grandes cidades venham a seguir esse conceito de cidades compactas, com maior verticalização e adensamento, os terrenos em áreas de boa infraestrutura urbana passarão a comportar construções bem mais amplas, com maior oferta de moradia e imóveis de usos diversos. Para que seja mantido o ordenamento das cidades, essa permissão deverá vir acompanhada de mecanismos que compensem os impactos trazidos, tais como estudos de impacto de vizinhança, de mitigação de trânsito, compartilhamento de meios de transporte e outras medidas.
Com isso, o mercado imobiliário pode ganhar uma nova dinâmica. Passará a ser interessante até mesmo a aquisição e demolição de prédios existentes, para construção de novos edifícios, mais modernos, inteligentes e ambientalmente funcionais. Outra questão interessante é que os empreendedores poderão reservar para si nos empreendimentos áreas nas quais possa vir a 3 se aproveitado eventual potencial construtivo futuro. Ou seja, uma incorporadora poderia vender as unidades de um empreendimento, reservando uma área superficial em sua propriedade (na forma de uma unidade autônoma, por exemplo), à qual seria atribuída um eventual e futuro aumento de potencial construtivo do terreno, para nova edificação. Também um proprietário poderá vender determinado imóvel, reservando para si o potencial construtivo futuro, caso venha a ser estabelecido por lei.
São questões novas e complexas, tanto do ponto de vista negocial quanto jurídico. É possível que alguns negócios nessa linha tenham de ser desenvolvidos por meio de concessão de superfície, negócio pelo qual o titular de um terreno transfere a terceiros o direito de construir em seu imóvel, mas mantém para si a propriedade. Em alguns casos, pode haver dificuldades decorrentes da lei de incorporações, caso tenha interpretação muito restrita pelo Registro de Imóveis. Entretanto, embora estejamos tratando a questão como possibilidade futura, algumas operações como essas já foram efetivamente realizadas, mostrando o dinamismo do mercado imobiliário.
Uma última observação: essas operações não se confundem com a Transferência do Direito de Construir (TDC), instrumento de política urbana de grande importância na atualidade, que será abordado em próximo artigo.
Rodrigo Cury Bicalho é sócio de Bicalho e Mollica Advogados e membro do comitê jurídico do GRI Club Real Estate Brazil
Fonte: GRI Hub
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