O Corregedor Nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, assinou no último dia 1º de outubro o provimento do CNJ nº 88, que estabelece uma série de procedimentos a serem adotados pelos notários, registradores e tabeliães visando à prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo. A lista de obrigações impostas aos destinatários da norma é extensa e os cartórios e tabelionatos terão até o dia 3 de fevereiro de 2020 (data prevista para a sua entrada em vigor) para se prepararem para atendê-la.
De acordo com o provimento, os notários, registradores, tabeliães e até mesmo as autoridades consulares com atribuição notarial e registral "devem avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes, dispensando especial atenção àquelas incomuns ou que, por suas características, no que se refere a partes envolvidas, valores, forma de realização, finalidade, complexidade, instrumentos utilizados ou pela falta de fundamento econômico ou legal, possam configurar indícios de crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, ou com eles relacionar-se" (art. 5º). Uma vez verificada alguma dessas suspeitas, o responsável deverá remeter comunicação à Unidade de Inteligência Financeira – UIF (o novo COAF), por intermédio do Sistema de Controle de Atividades Financeiras – SISCOAF.
Também será imposta aos responsáveis pelas serventias abrangidas pelo provimento nº 88 a obrigação da adoção de práticas de compliance interno, inclusive com a implantação de procedimentos destinados à apuração de operações suspeitas e à "mitigação dos riscos de que novos produtos, serviços e tecnologias possam ser utilizados para a lavagem de dinheiro e para o financiamento do terrorismo" (art. 7º, inciso IV). Nesse contexto, os cartórios atuarão sob a supervisão da Corregedoria Nacional de Justiça e das Corregedorias dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal.
Ao atribuir aos Notários e Registradores a obrigação de comunicarem operações suspeitas ao órgão federal de controle de informações financeiras a norma definitivamente integra os cartórios ao microssistema de combate à corrupção. Contudo, essa ampliação dos deveres de ofício dos profissionais de Notas e Registro, especialmente no que lhes transfere a função de emitirem juízo de valor sobre potencial suspeição nos negócios realizados pelos seus clientes, deve ser vista com cautela para que não tenha um efeito colateral adverso.
Afinal, ainda que a norma tenha fixado algumas balizas e definido certos negócios como motivadores de comunicação obrigatória, a falta de critérios claros poderá provocar uma indesejável disparidade nas posturas dos Tabeliães e Oficiais. Há, portanto, o risco de a iniciativa acabar segregando os cartórios mais criteriosos de outros mais permissivos, tornando estes últimos mais atrativos para contratantes mal-intencionados. Por outro lado, o excesso de rigor pode acabar prejudicando outras serventias com a perda de clientela, uma vez que, especificamente no que toca à atividade notarial, a parte interessada tem liberdade de escolha independentemente do local do seu domicílio ou da situação dos bens objeto do ato ou negócio (cf. art. 8º, da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994).
Norma cria cadastros de clientes e demais envolvidos: procuradores também estão na mira
Os cartórios e repartições consulares precisarão manter cadastros de todos os envolvidos nos atos notariais, protocolares e de registro com conteúdo econômico, compreendendo dados pessoais e de identificação (inclusive biométricos) não só das partes contratantes, mas também de seus procuradores e representantes legais. Mesmo os procuradores investidos de poderes isolados de representação e que não se beneficiarem pessoalmente dos negócios (como executivos de empresas ou advogados na representação de seus clientes) deverão figurar obrigatoriamente de tal cadastro, a teor do que dispõe o artigo 9º do Provimento.
Além disso, poderá ser considerada suspeita "a lavratura de procuração que outorgue plenos poderes de gestão empresarial, conferida em caráter irrevogável ou irretratável ou quando isenta de prestação de contas, independentemente de ser em causa própria, ou ainda, de ser ou não por prazo indeterminado" (art. 35).
Operações de notificação compulsória
Sem prejuízo da existência de suspeita da prática dos crimes que visa a combater, o Provimento nº 88 estabelece algumas situações que geram a obrigatoriedade de comunicação à Unidade de Inteligência Financeira – UIF, tais como (i) registro de transmissões sucessivas do mesmo bem, em período não superior a 6 meses, com diferença de valores superior a 50%; (ii) registro de título em que a diferença entre o valor da avaliação fiscal ou patrimonial do bem e aquele declarado na operação (para mais ou para menos) for superior a 100%, (iii) qualquer operação que envolva o pagamento ou recebimento de valor igual ou superior a R$ 30 mil, ou equivalente em outra moeda, em espécie ou título de crédito ao portador; (iv) qualquer operação relativa a bens móveis de luxo ou alto valor, assim considerados os de valor igual ou superior a R$ 300 mil, dentre outras.
Por outro lado, (i) a concessão de empréstimos hipotecários ou com alienação fiduciária entre particulares ou, ainda, (ii) a doação para terceiros sem vínculo familiar aparente com o doador de bem imóvel com valor venal superior a R$ 100 mil, "podem configurar indícios da ocorrência dos crimes de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, ou com eles relacionar-se" (cf. art. 26, incisos I e II). Nesses e em outros casos o Provimento faculta ao registrador ou Oficial a comunicação à UIF caso considere suspeita a operação, o que novamente leva à reflexão sobre a discricionariedade delegada aos destinatários da norma e, especialmente, sobre os riscos de se criar uma divisão entre os cartórios mais e menos criteriosos. Seja como for, como em qualquer situação, o que preocupa são os extremos.
Por fim, não é demais destacar que o não atendimento às disposições da nova norma sujeitará os seus destinatários (inclusive interventores ou interinos) às sanções previstas na lei 9.613, de 3 de março de 1998 (a Lei da Lavagem de Dinheiro), que vão desde advertência até a cassação da autorização para o exercício da função, com a possibilidade de aplicação cumulativa de multa de até R$ 20 milhões, conforme o valor da operação irregular.
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Davi Medina Vilela é associado do escritório Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados. Graduado pela Faculdade de Direito da UERJ. Advogado atuante em Contencioso Cível, Arbitragem e Direito Imobiliário.
Fonte: Migalhas Edilícias
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