A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que arrematantes de imóvel em hasta pública têm direito à propriedade, mesmo com a existência de prévio contrato de compra e venda do bem entre outras pessoas, porém não registrado em cartório imobiliário. Ao modificar o entendimento de segundo grau, a turma reconheceu que, até o seu regular registro no órgão competente, o ajuste particular gera obrigação apenas entre as partes envolvidas.
A notícia é observada no site do STJ, datado de 13 de novembro do corrente ano.
Segundo a relatora do processo, ministra Nancy Andrighi, a obrigação perante terceiros (erga omnes) só ocorre com o registro imobiliário do título, o que foi feito apenas pelos arrematantes. “Sob esse enfoque, ausente a formalidade considerada essencial pela lei ao negócio realizado, não se pode admitir que o título seja oponível ao terceiro de boa-fé que arremata judicialmente o imóvel e promove, nos estritos termos da lei, o registro da carta de arrematação”, elucidou.
Coube à Terceira Turma decidir, em recurso especial, qual direito deve prevalecer: o direito pessoal dos supostos adquirentes do imóvel, fundado em promessa de compra e venda celebrada por instrumento particular com os anteriores promitentes compradores do imóvel, sem anotação no registro imobiliário; ou o direito de propriedade dos arrematantes do imóvel em hasta pública judicial, e que promoveram o registro da carta de arrematação no cartório imobiliário.
Seguindo o voto da relatora, o colegiado entendeu que o direito a prevalecer é o dos arrematantes, visto que “a propriedade do bem imóvel só é transferida com o respectivo registro do título no cartório imobiliário competente”.
A ministra disse que sua decisão não se opõe à Súmula 84/STJ, que apenas consolida a tese de que o registro imobiliário do título não é requisito para a oposição de embargos de terceiro.
Ainda de acordo com a ministra relatora, apesar de não ser requisito para oposição dos embargos de terceiro, o registro do título “é imprescindível para a sua oponibilidade em face de terceiro que pretenda sobre o imóvel direito juridicamente incompatível com a pretensão aquisitiva do promitente comprador”.
II – A ARREMATAÇÃO
A arrematação é a transferência forçada dos bens penhorados comumente em hasta púbica, que é a solenidade utilizada pelo Estado para concretizar a expropriação, na sistemática da execução.
Com a assinatura do auto de arrematação pelo juiz, pelo escrivão, pelo arrematante e pelo porteiro ou leiloeiro, a alienação judicial considera-se perfeita, acabada e irretratável.
A arrematação não é ato contratual, é ato processual de transferência coativa, daí a sua irretratabilidade, como revelou Enrico Tulio Liebman(Processo de execução, 1968, pág. 118).
Também não é sentença, de maneira que não pode ser objeto de recurso e nem de ação rescisória. Enseja, porém, embargos de devedor e de terceiros, nos casos determinados na lei processual.
A arrematação é título de domínio em sentido material, do arrematante sobre os bens adquiridos na hasta pública. o auto de arrematação funciona como um título em sentido formal.
A transferência da coisa imóvel arrematada aperfeiçoa-se com a expedição da carta de arrematação que se destina à transcrição no Registro de Imóveis.
Mas pode haver a evicção, que consiste na perda total ou parcial da coisa em virtude de sentença que a garantia a alguém que a ela tenha direito anterior.
A arrematação não é um contrato, mas uma desapropriação, de sorte que não se pode falar em responsabilidade contratual, como se apresenta a garantia da evicção.
Mas embora não haja compra e venda na arrematação, o executado responde pela evicção, porque se o seu patrimônio é garantia comum de todos os credores, seria injusto, caso o bem arrematado não lhe pertencesse, fosse o arrematante obrigado a arcar com todo o peso de execução, beneficiando os credores com enriquecimento injustificado porque obtido à custa de algo que não era devido.
O primeiro responsável pela reparação do prejuízo do arrematante é o executado e, subsidiariamente, o credor. É inegável do direito do arrematante de reaver o que pagou sem causa.
III - O ACORDO DE VONTADES E A TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE DA COISA IMÓVEL
Aponto algumas partes importantes do voto.
Consoante destacou Fabrício Zamprogna Matiello: No direito brasileiro, o simples acordo de vontades não gera a transferência da propriedade. A esse ato deve seguir-se o do registro do título junto ao cartório competente, no caso de imóveis, ou a tradição, na hipótese de coisas móveis. Portanto, o contrato é apenas uma das etapas da operação, que, concluída mediante a traditio ou o inscrever do título, culmina com a translação dominial da coisa, que passa do alienante para o adquirente. (...) Antes do registro do título assim concebido, gera-se unicamente direito pessoal ou obrigacional entre as partes que o firmaram; somente com a efetivação do registro é que surgirá o direito real, ou seja, o poder do adquirente sobre a coisa e a consequente oponibilidade era omnes, colocando no polo passivo da relação jurídica todos os demais indivíduos, em universalidade abstrata (Código civil comentado: Lei n. 10.406, de 10.01.2002 – 7 ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 641) (grifos acrescentados).
Realmente, antes de o registro imobiliário do título, há apenas direito pessoal ou obrigacional entre as partes que o firmaram, de modo que, consequentemente, com a efetivação do registro, cria-se um direito oponível perante terceiros (efeito erga omnes) com relação à transferência do domínio do imóvel. Nesse sentido, pode-se citar julgado proferido por esta Corte: RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. EXECUÇÃO. ARREMATAÇÃO DE BEM IMÓVEL LOCADO. DIREITO À PERCEPÇÃO DOS ALUGUÉIS. CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. FORMALIZAÇÃO DO AUTO DE ARREMATAÇÃO. AUSÊNCIA DO REGISTRO IMOBILIÁRIO DA CARTA DE ARREMATAÇÃO. FRUTOS DO BEM ARREMATADO. DIREITO DO ARREMATANTE. (CPC, ART. 694; CC/1916, ARTS. 530, I, e 533). RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. Assim como sucede nas operações de venda e compra de imóvel, desde a celebração do respectivo contrato, normalmente por escritura pública, a transferência do domínio e posse sobre o bem já se opera entre transmitente e adquirente. O registro posterior do contrato no registro imobiliário, com a transferência da propriedade sobre o imóvel, é requisito de validade perante terceiros (efeito erga omnes), mas não entre os próprios contratantes, já obrigados desde a celebração do negócio. Ante terceiros é que somente com o registro imobiliário se tem como transmitida a propriedade do imóvel, aperfeiçoando-se, em face de pessoas estranhas à relação contratual originária, a transferência de domínio de imóvel. (...) 5. Recurso especial desprovido (REsp 698.234/MT, 4ª Turma, DJe de 30/04/2014) (grifos acrescentados).
Cita-se precedente da 3ª Turma que, em situação em que houve a penhora de bem imóvel objeto de cessão de direitos – cessão esta que não cumpriu o requisito do registro, na forma exigida pelo art. 1.245 do CC/02 – acabou por concluir pela ausência de transferência da propriedade e pela manutenção da penhora, uma vez que a cessão não seria oponível erga omnes. O acórdão foi assim ementado: RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO. PENHORA. BEM IMÓVEL OBJETO DE CESSÃO DE DIREITO À MEAÇÃO. AUSÊNCIA DE REGISTRO NA FORMA EXIGIDA PELO ART. 1.245 DO CÓDIGO CIVIL. PROPRIEDADE NÃO TRANSFERIDA. POSSIBILIDADE DA CONSTRIÇÃO. (...) II.- A transferência da propriedade do bem imóvel entre vivos dá-se mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis, permanecendo o alienante na condição de proprietário do bem enquanto não for efetuado o registro. III.- No caso, muito embora a cessão de direitos tenha sido celebrada em cartório, por meio Escritura Pública de Cessão de Direitos de Meação, trata-se de negócio jurídico de natureza obrigacional e que, portanto, só produz efeito entre as partes que o celebraram, não sendo oponível erga omnes, antes de efetuado o registro do título translativo no Registro de Imóveis, de modo que, mantida a penhora, realizada contra aquele em cujo nome transcrito o imóvel. IV.- Recurso Especial conhecido e provido (REsp 788.258/RS, 3ª Turma, DJe de 10/12/2009).
Destacou o acórdão que o raciocínio adrede construído não vai de encontro à mencionada Súmula, pois implica apenas em consolidar a tese de que o registro imobiliário do título não é requisito para a oposição de embargos de terceiro, mas é imprescindível para a sua oponibilidade em face do terceiro que pretenda sobre o imóvel direito juridicamente incompatível com a pretensão aquisitiva do promitente comprador (REsp 25.550/RJ, 4ª Turma, DJ de 17/12/1992)
O Código Civil Alemão de 1896 instituiu uma sistemática para a transferência do domínio baseada na inscrição do contrato no registro do imóvel, ato precedido da depuração do título em processo sumário, que corre perante os juízes do registro imobiliário. No sistema jurídico alemão de propriedade imobiliária a sua base é o cadastro de toda a propriedade imóvel. Sem a adoção de livros fundiários rigorosamente escriturados não seria possível estabelecer tal técnica.
A transcrição no registro decorre de um acordo formal de transmissão, que se erige, então, sem convenção jurídico-real e resulta de declaração de vontade dos interessados especificamente à transcrição. Feito o registro com a observação das normas do direito imobiliário formal que estatui rito próprio e somente se efetua em decorrência de ato judicial que retira do título vícios, a transcrição assume a natureza de negócio jurídico abstrato, valendo por si mesma independente do negócio jurídico causal anterior. Assim, promovido o registro nos livros fundiários, a transmissão se desprende do negócio jurídico subjacente (compra e venda, doação etc), para valer como negócio jurídico translativo da propriedade imóvel. Adquire, assim, uma força probante de presunção iuris et de iure de propriedade. Dono é aquele que tem a propriedade registrada em seu nome.
Pelo sistema germânico, a transcrição opera a transmissão e faz prova plena da propriedade que se presume na titularidade daquele em cujo nome o registro está.No Brasil, com o Código Civil de 1916 e ainda com o Código Civil de 2002, as coisas se passam de forma diversa.
No Brasil, o contrato não opera a transferência do domínio. Geralmente tão somente um direito de crédito, que é chamado de direito pessoal. Somente o registro no Registro de imóveis para a transferência da coisa imóvel cria o direito real. É a transcrição do instrumento no cartório de registro da sede do imóvel que opera a aquisição da propriedade.
Mas, no Brasil, na sistemática pátria, o registro não tem a natureza de negócio jurídico abstrato, mas causal. É um ato jurídico causal, somente porque opera a transferência da propriedade dentro das forças e, sob condição de validade formal e material do título. Seu pressuposto fático será, portanto, um título hábil a operar a transferência, cabendo ao Oficial do Registro a função de proceder a um exame, podendo levantar ao juiz competente dúvidas, num procedimento de jurisdição voluntária, que tiver, seja quando a capacidade das partes ou a qualquer requisito formal do negócio jurídico de transmissão ou outro elemento que lhe parece faltar para que esse direito se repute escorreito.
Mister que se lembre que, uma vez efetuada a transcrição, ou a inscrição de título constitutivo de algum outro direito diverso da propriedade, presume-se pertencer o direito real à pessoa em cujo nome se transcreveu ou se inscreveu. A propriedade se considera adquirida na data da apresentação do título a registro, observando-se lapso de tempo entre a prenotação do protocolo e o registro.
A presunção que aqui se fala é iuris tantum.
A transcrição é causa determinante da aquisição da propriedade imóvel, como, ainda, não se infirma o registro da autoridade do seu oficial, que deverá vir de sentença.Há o princípio da publicidade, de tal forma que é pelo registro que qualquer pessoal toma conhecimento das especificidades do imóvel e do negócio, como ensinou Caio Mário a Silva Pereira (Instituições de direito civil). Nos direitos reais de garantia, como a hipoteca, essa publicidade é ainda exigida.
Outro princípio a se ter em conta é o da legalidade através do qual, se o oficial efetuou a transcrição ou inscrição, foi porque nenhuma irregularidade encontrou. Nas palavras de Darcy Bessone (Da compra e venda. 2º edição, pág. 43), “a esse de que a compra e venda brasileira é produtiva tão-somente da obrigação de transferir o domínio significa que o objeto do acordo de vontades é a criação dessa obrigação, e não a própria transferência do domínio”.
Prossegue Darcy Bessone, que isso compreende-se em direito alemão, porque, nele, como já ficou visto, a compra e venda é estranha ao negócio translativo, que tem por base um outro contrato (o dinglicher Vertrag) abstrato e, pelos efeitos, real. Poder-se-ia compreender tal tese, também, em direito romano, embora a emptio et venditio se referisse à posse, porque os romanos praticavam modos de a adquirir (mancipatio, in iure cessio e traditio) de natureza contratual embora não a percebessem.
Mas como disse Darcy Besssone (obra citada), entre nós, não se pode aceitar a aludida tese, por ser certo que não dispomos de um segundo acordo de vontades, de um segundo contrato, integrativo do negócio, (não sobre a obrigação de transferi-lo) está na compra e venda, ou não está em parte alguma, não existe.
Passamos, então, a melhor compreender essa questão diabólica.
Como ainda acentuou Darcy Bessone, “é certo, todavia, que tal acordo insere-se na compra e venda. Para chegar-se a essa conclusão, assume importância decisiva o art. 134 do Código Civil que expressamente menciona que “contratos constitutivos ou translativo de direitos reais”, incluindo-se, entre estes, a compra e venda. No n. 23, mostramos que essa disposição recebe complementação de outros preceitos do Código Civil, como os arts. 530, I, 531, 676,856,I, 857,858,860, parágrafo único, 862 etc)”. Faço essas ponderações, lembrando que os artigos se referem ainda ao Código Civil revogado.
Disse então, Darcy Bessone que “o direito brasileiro aproxima-se do francês e do italiano, que consideram a compra e venda como um acordo de vontade sobre a própria transferência do domínio, não sobre a obrigação de transferi-lo”. Mas o que se tem é que “aproximando-se, não se identifica cm eles, entretanto, porque, aqui, o registro no Registro Imobiliário, em relação aos bens imóveis e a tradição, quanto aos bens móveis, são, ao contrário, do que ocorre na França e na Itália, atos integradores do negócio translativo.”
Sob esse aspecto, o nosso direito filia-se ao direito germânico.
Mas, também não se identifica com este, porque, no direito alemão, o acordo de vontades sobre a transferência do domínio, embora seja essencial, não se estabelece na compra e venda, que é simplesmente obrigacional e encerra autêntica promessa de alienar, mas, sim, em um segundo contrato, real pelos efeitos translativos que suscita.
O registro do direito real sobre o imóvel, indicando quem é o seu proprietário, atendeu a se o oficial do registro efetuou a transcrição ou inscrição. Se o fez, não encontrou qualquer irregularidade intrínseca ou extrínseca.
Rogério Tadeu Romano - Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.
Fonte: Artigos Jus Navigandi
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