Introdução
Fato notório em várias cidades do Brasil é a instalação de loteamentos ilegais, uns clandestinos, outros irregulares, alguns de alto padrão, outros não, mas todos à luz de alguma ilegalidade.
Essa prática, além de ilegítima, onera o ente público, obrigando-o à revisão de algum planejamento urbano preexiste e a relocar recurso dirigido à cidade e à coletividade para determinada área, para determinado grupo de pessoas.
Assim, são muitas as demandas e muitas as indagações acerca da responsabilidade a ser imputada àquele que parcela o solo à revelia, sem autorização e sem observância das determinações administrativas inerentes a licença para parcelar o solo urbano, que é de competência Municipal.
Aqui fazemos uma pergunta inicial: aquele loteamento ilegal que surgiu na sua cidade, será que o município é obrigado a regularizar? Para entender a questão, leia o artigo completo!
Nesse cenário, o STJ, no Resp 1164893/SE, tendo como relator o Ministro Herman Benjamim, por unanimidade, publicado no DJE em 01/07/2019, atualizou seu posicionamento, quanto a responsabilidade do Município, tema de grande relevância para os entes municipais e objeto do presente texto.
Assim sendo, o poder-dever do Município de regularizar loteamentos ilegais (clandestinos ou irregulares) é restrito à realização de obras essenciais em conformidade com a legislação urbanística local, sem prejuízo também do seu poder-dever de cobrar dos responsáveis os custos em que incorrer nessa sua atuação saneadora. (STJ, REsp 1164893/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 23/11/2016, DJe 01/07/2019)
Do conceito do parcelamento do solo e Lei de regência
Antes de adentrar no atual precedente do STJ, Resp nº 1164893/SE, faz-se necessário esclarecer alguns conceitos e pontuar o comando legal, ao qual subordina-se o assunto em tela.
É que, todo o tema atinente ao parcelamento do solo é regulado pela Lei Federal nº 6766/79, observando as legislações estaduais e municipais pertinentes, haja vista que Estados e Municípios podem estabelecer normas complementares.
Dessa forma, é encontrado no próprio texto legal, art. 2º da citada lei, o conceito de parcelamento do solo, que pode se dar na forma de loteamento e de desmembramento, transcritos abaixo:
“§ 1º Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. (grifo nosso)
§ 2º Considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes.” (grifo nosso)
No parágrafo primeiro, tem-se a figura do loteamento, que para ser instalado precisa de outorga municipal, caso contrário, será considerado ilegal. Com isso, a ilegalidade tem a proporção de gênero, dividindo-se entre a clandestinidade e a irregularidade.
Qual a diferença básica entre loteamento, loteamento clandestino e irregular?
Inicialmente, temos o conceito de loteamento, que nada mais é do que a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. - Art. 2º, § 1º, da Lei nº 6.766/79
Tem-se por loteamento clandestino, aquele feito às escondidas do Poder Público, sem qualquer tipo de aprovação ou autorização, portanto ilegal!
Já o loteamento irregular é aquele aprovado, mas com vícios, seja pendente de registro no Registro Geral de Imóveis (RGI), seja executado em desconformidade com o plano ou as plantas aprovadas, mas, o que o diferencia do loteamento clandestino é a prévia aprovação do projeto pelo Município.
Assim, cada Município complementando a legislação federal aqui citada pode e deve fazer exigências legais, de forma a adequar a peculiaridade e a especificidade da cidade e do empreendimento, cabendo, também, ao Município a fiscalização de seu território, por meio de órgão criado para esse fim, como as secretarias de obras, de planejamento urbano, secretaria de Meio Ambiente, tudo a depender da organização administrativa eleita por cada ente.
À luz de todos os conceitos aqui trazidos certo é, que independente se clandestino ou irregular o loteamento, este precisa estar de acordo com a lei e com as ordens administrativa editadas pelo Poder Público local.
Da responsabilidade do município na regularização de loteamento ilegal e o Resp nº 1164893/SE
A origem fática do precedente atual do STJ, objeto do presente texto, é uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Público, em face do município de Aracajú e de um loteador que parcelou o solo de forma clandestina.
Na decisão de primeiro grau, ambos os réus foram condenados a executar todas as obras de infraestrutura necessárias à urbanização total do loteamento irregular, e no Recurso Especial interposto pelo município, o STJ deu parcial provimento para restringir a obrigação do Município de executar as obras de infraestrutura, somente àquelas essenciais nos termos da legislação urbanística local, compreendendo, no mínimo, ruas, esgoto e iluminação pública.
Neste azo, lembra-se nessa oportunidade que o Recurso Especial, de competência do STJ, tem por objeto decisão recorrida que contraria tratado ou Lei Federal, ou nega-lhes vigência, julga válido ato de governo local contestado em face de Lei Federal, e, a interpretação divergente dada a Lei Federal da que lhe haja atribuído outro tribunal.
No caso em tela o município alegou violação ao art. 40 da Lei nº 6766/79, in verbis:
“Art. 40. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes.”
Com isso, o voto de relatoria do Ministro Herman Benjamim teve como cerne da questão dimensionar a extensão do poder-dever do Município, haja visto o art. 30, VIII da Carta Política que positivou a competência municipal, cabendo a este ente promover o ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Dessa forma, de acordo com o atual entendimento do STJ, o poder dever do Município passou a ser poder dever restrito às obras essenciais a serem implantadas, em conformidade com a legislação urbanística local, observando a infraestrutura essencial para inserção na malha urbana, como ruas, esgoto, energia e iluminação pública, de modo a atender aos moradores já instalados.
Toda ratio desse entendimento, além de atentar ao que dispõe o Estatuto da Cidade e a Constituição Federal no art. 182, teve o § 5º do art. 40 como norte, pois é nele que há a remissão aos artigos 3º e 4º da Lei nº 6766/79 e onde se verificam as condições mínimas a serem observadas quando do parcelamento do solo, conforme transcrito abaixo:
“Art. 3º - Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.
Parágrafo único - Não será permitido o parcelamento do solo:
I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas;
Il - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados;
III - em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes;
IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;”
“Art . 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:
I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem.
II - os lotes terão área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes;
III - ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não-edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica;
IV - as vias de loteamento deverão articular-se com as vias adjacentes oficiais, existentes ou projetadas, e harmonizar-se com a topografia local.
V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.”
No voto do Eminente Ministro Relator, resta clara a necessidade da limitação da extensão do poder-dever do Município na regularização de loteamentos ilegais, em virtude das questões que emergem destes parcelamentos com reflexos para quem mora, pois estes têm seu direito de consumidor desrespeitado, já para o Poder Público, este precisa arcar com obras não contempladas no orçamento, tendo que realocar verbas que estavam direcionadas para projetos, planos, programas ou ações voltadas para a cidade e para o coletivo.
Deste modo, há reflexo também para o munícipe que tem os projetos, planos, programas ou ações paralisadas na cidade onde vive, para que uma parte dessa cidade e um pequeno número de pessoas sejam beneficiados, porque o loteador não agiu com boa-fé, nem tão pouco à luz da legalidade.
E para bem elucidar o exposto do parágrafo acima, é de bom alvitre trazer o que foi dito em trecho do voto pelo Ministro Hermam Benjamim, senão vejamos:
“A omissão do loteador não gera, por si só, prioridade absoluta e automática no confronto com outras demandas preexistentes relativas à malha urbana e a outros aspectos associados à regularidade urbanístico-ambiental.
A interpretação da lei federal não pode implicar um ‘fura-fila’ no atendimento das carências sociais, sobretudo se, para solucionar as eventualmente judicializadas, acabar-se por desamparar os mais pobres, com igual precisão urbanístico-ambiental.
O governo local deve promover, sim, as melhorias necessárias para aqueles que moram nesses loteamentos, mas direcionadas a todos os habitantes da cidade. Nesse ponto, tenho dúvida quanto aos limites desse dever municipal, especialmente em casos de loteamentos clandestinos, ou seja, aqueles realizados sem a aprovação do Poder Público.”
Importante ressaltar, que esse atual precedente, Resp nº 1164893/SE, como ponto de partida para posteriores decisões, aponta responsabilidades diferentes quanto a ilegalidade apresentada.
Da responsabilidade do Município em loteamento irregular x loteamento clandestino
A responsabilidade do Município em loteamento irregular está restrita à infraestrutura necessária para sua inserção na malha urbana, como ruas, esgoto, iluminação pública.
E na responsabilidade do Município, quanto aos loteamentos clandestinos, caberá uma análise detida do caso concreto, devendo ser verificada a localização do núcleo urbano informal, como é o caso de terrenos que ofereçam perigo para quem já está instalado, como os elencados no art 3º da Lei nº 6766/79 – Lei de parcelamento do solo urbano - já transcrito nesse mesmo tópico.
Por conseguinte, núcleos informais em áreas de preservação permanente ou em área de proteção de manancial, devem ser atentamente verificados também, não podendo a permanência de pessoas lá acontecer.
Nesses casos, cabe ao Judiciário exigir do Poder Público a remoção dessas pessoas, de forma a assegurar a habitação digna e segura as pessoas, e, não impor ao Poder Público a obrigação de promover obras de infraestrutura.
Buscar cidades sustentáveis e evitar o parcelamento do solo inadequado em relação à infraestrutura urbana deve ser a atuação do governo local, atendendo, assim, o disposto no art. 2º, I e VI, C da Lei nº 10.257/2010, lei denominada Estatuto da Cidade.
Por último registra-se que o precedente assentou quanto ao dever-poder da Administração de cobrar dos responsáveis os custos em que ocorrer a sua atuação saneadora.
Conclusão
O STJ deixa claro nesse julgado, que o poder-dever do Município na regularização de loteamentos é um poder-dever restrito, restrito às obras essenciais a serem implantadas, em conformidade com a legislação urbanística local, em especial a infraestrutura essencial para inserção na malha urbana, como ruas, esgoto, energia e iluminação pública, atendendo aos moradores já instalados, podendo a Administração cobrar dos responsáveis os custos da regularização.
Resta claro, também, que a atuação do Município deve ser orientada pelo interesse coletivo, não privilegiando uns em detrimento de outros, não relegando políticas públicas que podem minimizar ou equacionar questões graves e urgentes de degradação urbana, em prol de um pequeno número de pessoas.
Assim, de todo o exposto, à luz do atual precedente do STJ quanto a responsabilidade do Município na regularização de loteamento, deixa-se consignado a importância do atuar conjunto de todos os atores da política urbana, a importância da inspeção in loco, do sair do gabinete e descortinar a realidade posta, pois uma das propostas que o atual entendimento deixa quanto a regularização de loteamento, especialmente quanto ao loteamento clandestino, é a certificação, à luz de requisitos objetivos contidos na Lei 6766/79, se aquela área pode ou não contemplar moradias.
Frisa-se, ainda, que o atuar do Município deve evitar lesões aos padrões de desenvolvimento urbano, e para isso, ele pode evitar qualquer tipo de condenação, impedindo que o loteador efetive qualquer ação à revelia, de ordem administrativa, atuando dentro de seu poder de polícia, com a coercibilidade e a autoexecutoriedade que lhe é peculiar.
Conclui-se por derradeiro, que o Tribunal Superior da cidadania está vigilante às questões que lhe são levadas, atento às mudanças do dia a dia das cidades, dos munícipes, mas, principalmente, preparado para responder questões contemporâneas e dinâmicas, como as referentes a cidade, pacificando-as no momento presente.
Tânia Maria Calcagno Vaz Vellasco Pereira - Mestra em Direito Público. Pósgraduada em Direito Público. Pósgraduada em Direito Civil e Processo Civil, autora de vários artigos jurídicos, consultora em Direito Urbanístico e Procuradora da Secretaria de Desenvolvimento da Cidade.
Publicado por Projeto Direito Sem Aperreio Blog de Lorena Lucena
Fonte: Superior Tribunal de Justiça - Informativo STJ nº 0651
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