Objetiva-se, neste estudo, distinguir dois grandes institutos do Direito Civil: a Passagem Forçada e a Servidão de Passagem, apontando suas particularidades e, por conseguinte, visando solucionar possíveis, e não raras no mundo jurídico, confusões entres os direitos.
O direito de passagem nasce da imposição da lei em proveito somente dos prédios encravados, o que vale dizer que a servidão de passagem só pode ser determinada pela necessidade de se obter saída útil do prédio tido como encravado para a via pública através do prédio serviente. Deste modo, não há que se reclamar a passagem por simples comodidade.
O instituto da servidão é ônus real, criando uma relação direta de prédio a prédio, advinda da vontade dos proprietários. Em razão dessa permissão, o serviente perde o exercício de algum de seus direitos dominicais sobre seu prédio, ou tolera que dele se utilize, fazendo o prédio dominante mais útil ou agradável.
Assim, o que se busca é destacar os pontos máximos de distinção entre os dois direitos, esforçando-se por apresentar, da forma mais clara, as características entre os direitos trabalhados, apresentando inconformismo com o fato de ter-se tornado corriqueira a necessidade de se explicar, ou melhor, ensinar o que é cada um dos institutos, em sentenças e acórdãos em todo o país, antes de se adentrar ao caso concreto realmente discutido, retardando ainda mais o andamento dos processos.
2- Passagem forçada
Três instituições são firmemente conexas e estabelecidas, desde a Antigüidade, nas sociedades grega e italiana: a religião doméstica, a família e a propriedade. (COULANGES, 2004, p. 66)
Assim, a Passagem Forçada conhece sua primeira manifestação no “iter ad sepulchrum” do direito romano, que dizia: mesmo se uma família vendesse o campo onde eram enterrados seus mortos, ela continuaria sua proprietária perpétua, conservando o direito de poder atravessá-lo sempre que quisesse, para cumprir as cerimônias do culto. (op, cit., p. 66)
Conceituando, nas palavras de Roberto de Ruggiero, a passagem obrigatória é “uma das mais fortes limitações derivadas de vizinhança” (2005, p. 497) sendo que obriga o proprietário a deixar o vizinho, que tem seu prédio encravado, passar pela sua propriedade.
Funda-se o direito à passagem forçada na solidariedade a qual “deve presidir as relações de vizinhança e a necessidade econômica de se aproveitar devidamente o prédio encravado. O interesse social exige que se estabeleça passagem para que o imóvel não se torne improdutivo”. (MONTEIRO, 2003, p. 141)
Nos termos do artigo 1.285, caput, do Código Civil, prédio encravado é aquele que não tem acesso à via pública, porto ou nascente. Em razão da falta de comunicação com a via pública não pode vir a ser explorado, deixando de se útil.
Mas encravamento deve ser natural e absoluto.
Natural, porque não pode ser provocado. É o caso daquele que vende parte do terreno onde se encontrava a passagem, ficando sem saída. É vedado a ele reclamar passagem a seus vizinhos, devendo a questão ser resolvida entre comprador e vendedor.
A doutrina exige, ainda, que seja absoluto o encravamento, sem nenhum tipo de saída.
Entretanto, alguns tribunais, com uma visão mais social e menos técnica, entendem que se um prédio possui uma única via de acesso, mas é extremamente onerosa, difícil ou perigosa, seria então um encravamento relativo.
Embora decorra da lei o direito à passagem, por mais de uma forma poder-se-á constituir, quais sejam: a convenção, a sentença e a usucapião, esta na opinião dos antigos autores.
Constituído por meio de acordo, deve ser expresso, formal, para evitar que mais tarde seja confundida como uma servidão convencional. Neste caso, o proprietário do prédio serviente não teria o direito de pedir “a supressão no caso de abertura de via pública, que desencravasse o dominante, ou pela reunião deste com outro”. (NEQUETE, 1985, p. 48-49)
No que tange à legitimação ativa, observa-se que, mesmo a lei fazendo referência apenas ao proprietário do prédio, têm capacidade para propor demanda “todos aqueles a quem se concede um direito real de gozo sobre coisa alheia”. (op. cit, p. 54)
Seguindo a mesma linha de pensamento, Silvio de Salva Venosa manifesta-se nos seguintes termos:
Legitimado para pedir passagem não é apenas o proprietário, mas também o usufrutuário, usuário, habitador ou possuidor. Podem eles também defender a turbação da via de passagem pelos remédios possessórios. (VENOSA, 2004, p. 378)
Em relação ao condômino pro indiviso tem este a possibilidade de obter sozinho uma passagem necessária desde que os demais co-proprietários não se oponham. Neste caso, todos contribuirão com a sua quota-parte para o pagamento da indenização, uma vez que todos serão beneficiados.
Por sua vez, figurarão no pólo passivo da ação o proprietário ou proprietários dos prédios servientes, e em hipótese alguma o mero possuidor.
Encravado, adquire-se o direito, mas o exercício da passagem fica condicionado ao pagamento da indenização que pode ser paga de uma só vez ou em parcelas anuais. Atribuiu, o legislador, ênfase ao chamá-la cabal, querendo na verdade transmitir a idéia de que a indenização alcançará todos os danos.
Como no direito romano, a passagem pode apresentar-se, ainda hoje, “ou como iter (direito de passagem a pé, só para pessoas), ou como actus (direito de passagem para animais), ou como via (direito de passagem para veículos), (NEQUETE, 1985, p. 59)” devendo entender-se que a passagem de teor mais amplo presume obrigatoriamente a mais estrita.
A fixação judicial não visa declarar direito, mas a fixar alguns pontos, tais como: rumo, caminho, largura e forma de exercício, caso não haja acordo entre as partes. Estes pontos poderão vir a ser ampliados, reduzidos ou mesmo alterados, sempre que houver necessidade, havendo suplemento ou restituição do valor da indenização.
O direito de reclamar a passagem forçada é imprescritível, podendo ser reclamado a qualquer tempo, desde que dentro do período da existência do encravamento. Desaparecendo a causa que deu origem, desaparecerá o direito de passagem.
Marco Aurélio da Silva Viana tece o seguinte comentário acerca da imprescritibilidade: o direito extingue-se “quando não se pontifica mais a necessidade que o criou. Por isso o direito é imprescritível, podendo ser exercido a qualquer tempo” (VIANA, 2004, p. 240).
Para Venosa, ao cessar o encravamento, seja qual for a razão, conseqüentemente desaparece o direito de passagem. Entretanto, vem observar que “nada impede, porém, que as partes constituam servidão sobre o que era direito legal de passagem” (VENOSA, 2004, p. 378).
3- Servidão de passagem
A propriedade, no direito Romano, era o mais absoluto dos direitos haja vista que quem os possuía detinha os chamados três “jura”: jus utendi, jus fruendi e jus abutendi, ou seja, podia usar, fruir e até mesmo destruir a coisa.
Contudo, em alguns casos, porções desses direitos escapavam das mãos do verdadeiro proprietário, que em regra eram o jus utendi e o jus fruendi, “repartindo-se entre este e outra pessoa, beneficiada pelo desmembramento”. (CRETELLA JÚNIOR, 1998, p. 219) Por esse motivo, foram classificados pela doutrina como “jura in re aliena”, ou direito sobre a coisa alheia.
Define-se a servidão como direito real sobre imóvel sobre o qual se impõe um ônus a determinado prédio em favor de outros. O direito é real uma vez que segue o imóvel, aderindo à coisa, e toda vez que mudar o proprietário do prédio serviente, haverá substituição do sujeito passivo.
Nas palavras de Arnold Wald, “a servidão é, pois, conceituada como direito acessório do direito de propriedade, inseparável deste, e perpétuo, cuja função econômica importa corrigir desigualdades existentes entre prédios”. (2002, p. 199)
Pode-se dizer que a finalidade da servidão é a de aumentar a utilidade do prédio dominante, e isto implicará conseqüentemente em restrições ao prédio serviente.
A natureza jurídica da servidão é a de “um direito real (CC, art. 1.225, III) de gozo ou fruição sobre imóvel alheio, de caráter acessório, perpétuo, indivisível e inalienável”. (DINIZ, Curso de direito civil brasileiro, 2002, p. 355) Mais detalhadamente, pode-se dizer que servidão é direito:
– real: porque imposta à coisa e não ao dono, com a exigência da formalidade (registro em Cartório)
– acessório: porção do direito de propriedade
– perpétuo: enquanto existirem os prédios
– indivisível: mesmo no caso de divisão do imóvel, passando a ter vários titulares. A servidão permanecerá indivisível, pois ela se dá entre dois prédios e não entre titulares.
– inalienável: não pode ser transferida a outro prédio. Poderá, todavia, ser transferida a outras pessoas.
Doutrinariamente, podem ser classificadas, dividindo-se em contínuas, descontínuas, aparentes, não aparentes e suas combinações.
Servidões contínuas “são as que dispensam atos humanos para que subsistam e sejam exercidas, como a de energia elétrica, a de escoamento e a de passagem de água”. (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 572) Em geral, são exercidas ininterruptamente.
Servidões descontínuas “são as que dependem, para seu exercício, de atos permanentes do titular ou possuidor do prédio dominante, como a servidão de passagem.” (op. cit, p. 572) Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “todas as servidões que dependem de fato do homem são, necessariamente, descontínuas, […].”(GONÇALVES, Direito civil brasileiro, 2006, p. 426)
O critério entre estas é a intervenção ou não-intervenção do homem.
As aparentes manifestam-se por obras exteriores, enquanto que as não aparentes somente são percebidas quando de fato exercidas, como por exemplo, na passagem de pedestres quando não há um caminho ou trajeto demarcado. Assim, “só se podem constituir validamente mediante o seu registro no cartório imobiliário, […].(ROSA, 2005, p. 227)
Essa classificação não é restrita ao âmbito didático-doutrinário do Direito. No momento da sua efetiva aplicação é que se poderá observar a sua grande importância, posto que nem todas as servidões possuem proteção possessória; elas dependerão da classificação recebida, como por exemplo: aparentes e contínuas e algumas descontínuas gozam de proteção, mas as não aparentes não dispõem de defesa.
Destaque-se que as servidões poderão constituir-se por ato (contrato, sentença, usucapião ou destinação do proprietário) ou fato humano, este aplicável exclusivamente à servidão de trânsito.
Pela Súmula nº 415, do Supremo Tribunal Federal, a “servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória” Logo, sendo aparente, há que se concluir que poderão ser adquiridas pela usucapião.
Quando se fala em servidão, sua interpretação é sempre restrita, por tratar-se de limitação a um direito. Tal característica impede que o beneficiário amplie, por qualquer modo, o jus in res aliena. Logo, criada para certo fim, não se pode estendê-la a outro, exceto quando se tratar de servidão de trânsito: 1) com a concordância expressa do proprietário dominante, e/ou 2) necessidade de ampliação em razão de cultivo. Sempre com o direito de indenização pelo excesso.
Por fim, sendo a servidão constituída por meio do registro, a primeira forma apresentada de extinção, mas não a única, é o cancelamento.
Quanto às demais formas, dividem-se em peculiares e comuns.
As formas peculiares extintivas da servidão levam ao cancelamento do registro, pelos meios judiciais, e não dependem da anuência do proprietário do prédio dominante. São: a renúncia, a impossibilidade de seu exercício e o resgate.
As formas comuns, apenas exigem o cancelamento do registro, sendo: a confusão, a supressão de obras na servidão aparente e desuso.
4- Distinção entre os institutos
O objetivo deste trabalho é o de demonstrar as diferenças entre os dois direitos com o objetivo de desfazer a confusão alastrada por todo o país.
Para Arnold Wald, os pontos máximos de distinção entre as servidões e direito de vizinhança estão na origem e na finalidade.
Enquanto as primeiras originam-se do ato voluntário de seus titulares, o segundo deriva da lei expressa. Observa-se também que, a finalidade do direito de vizinhança é preventiva, visa evitar o dano como também, que o prédio fique sem destinação ou utilização econômica. Quanto à servidão não visa a atender necessidades, mas a garantir uma comodidade ou uma maior facilidade ao proprietário do prédio dominante.
Outras dessemelhanças podem ser elencadas.
A passagem forçada é direito de vizinhança, enquanto que a servidão é um direito real sobre coisa alheia. A primeira decorre da lei e é uma limitação ao direito de propriedade, sempre se configurando quando um prédio se encontrar encravado, mesmo que o proprietário não a deseje; já a servidão limita o domínio e decorre da vontade das partes, geralmente por meio de um contrato.
A servidão tem sua constituição com o registro no Cartório de Registro de Imóveis, já a passagem forçada não exige qualquer tipo de registro, e caso haja um registro será tida como servidão. Sua fonte mediata está na lei e no interesse social.
Às servidões aparentes caberá ação de usucapião. À servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considerar-se-á aparente, conferindo a esta o direito à proteção possessória, em sendo assim poderá ser usucapida. Quanto ao direito de vizinhança, não se adquire pela prescrição aquisitiva.
A partir do momento que a circunstância que caracterizava o encravamento cessou, extinta será a passagem forçada, posto que não há mais a necessidade impondo tal ônus. A servidão a princípio é perpétua.
Por fim, embora não haja impedimento quanto à gratuidade, dependendo de simples acordo entre as partes, tanto a passagem forçada quanto a servidão de passagem são direitos a título oneroso, com o propósito de ressarcir os prejuízos, incômodos e limitações aos direitos do proprietário. Contudo, há que se observar que enquanto na servidão atua como mera compensação; noutro instituto o direito de passagem fica na dependência do pagamento de indenização. Embora a lei não diga expressamente, o pagamento prévio é condição imposta ao exercício da passagem.
5- Considerações
Faz-se necessário buscar solver esse problema que, ignorado, alastrou-se e tornando-se corriqueiro nem mais é visto. A solução é a boa formação e a reciclagem do operador do direito.
Todavia, enquanto persistir a confusão o que se verá sempre é o magistrado, antes de exercer a sua função, exercendo o magistério, instruindo advogados e até mesmo juízes de primeiro grau, no que tange à caracterização de um e de outro instituto.
São visíveis as diferenças entre os institutos estudados, mas também é gritante a necessidade de se buscar um meio eficaz a fim de que se possa desfazer essa confusão descabida e que se alastra por todas as esferas jurídicas.
A boa formação do jurista, partindo desde os bancos escolares, é um dos meios. Em seguida, caberá a esse o aprimoramento da sua bagagem. Não dá para aceitar que se utilize dos bancos da corte para o exercício do magistério. O advogado é antes de tudo um profissional, e por isso exige-se formação e trabalhos aprimorados.
Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 415. Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória. Disponível em: . Acesso em: 02 setembro 2007
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. 421 p. Título original: La Cité Antique.
CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 21 ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 486 p.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. v. 4. 18. ed. aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002. 550 p.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nélson. Direitos reais. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris. 2006. 716 p.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: direito das coisas. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2006. 620 p.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das coisas. v. 3. 37. ed. rev. e atual. por Carlos Alberto Dabus Maluf. São Paulo: Saraiva, 2003. 469 p.
ROSA, Pedro Henrique de Miranda. Direto civil, direito das coisas: introdução; posse; da propriedade dos direitos reais sobre coisas alheias. Rio de Janeiro: Renovar. 2005. 312 p.
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. v. 2. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2005. 822 p.
NEQUETE, Lenine. Da passagem forçada. 3. ed. rev. e amp. Porto Alegre: Livraria Editora Porto Alegre, 1985. 224 p.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. v. 5. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 668 p.
VIANA, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Novo Código Civil, volume XVI: dos direitos reais. v. 16 (arts. 1225 a 1.510). Rio de Janeiro: Forense, 2004. 926 p
WALD, Arnoldo. Direito das coisas. 11 ed. rev., aum. e atual. com a colaboração dos professores Álvaro Villaça Azevedo e Véra Fradera. São Paulo: Saraiva, 2002. 558 p.
Joanita Zacchi de Campos - Bacharela em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro (FUNDINOPI), em Jacarezinho (PR)
Fonte: Revista Âmbito Jurídico
Fonte: Revista Âmbito Jurídico
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