A inadimplência no Brasil é alta. Muitas cobranças e execuções são frustradas por falta de bens disponíveis do devedor. A situação interfere no spread bancário e, consequentemente, na taxa de juros dos empréstimos.
Sabemos que, via de regra, o imóvel que serve de morada ao devedor não pode ser penhorado quando se tratar de bem de família. Porém, é necessário pensar “fora da caixinha” e fazer uma reflexão: com o surgimento do direito de laje no Brasil, que configura uma matrícula imobiliária autônoma, seria possível penhorar a laje de um imóvel ainda que o seu proprietário não a tenha instituído? Em outras palavras, o direito de laje poderia ser compulsoriamente instituído para pagamento de um débito?
Em 2017, a Lei 13.465 estabeleceu uma regularização fundiária e implementou a proteção ao direito de moradia (previsto no art. 6º da Constituição Federal), vindo a alterar o artigo 1.225 do Código Civil, que hoje prevê, expressamente, que é direito real: “XIII – a laje”.
Era necessário que o legislador reconhecesse o direito da laje enquanto um direito real registrável, podendo recair sobre a superfície superior ou inferior do imóvel inicial, que passa a se chamar construção-base.
Anteriormente tratado como uma projeção do direito de superfície, um verdadeiro direito de sobrelevação ou de “infrapartição”, o direito da laje, que já se constituía em direito (mesmo que não passível de registro).
O artigo 1.510-A, § 3º deixa clara a independência da nova propriedade privada que pode vir a ser instituída de maneira formal, com uma matrícula autônoma no Cartório de Registro de Imóveis. Não há que se falar em vinculação de finalidade, ressalvada restrição no ato de cessão (que constituiria em limitação ao uso da propriedade). Por exemplo, pode a construção inferior ter finalidade comercial e a superior ser destinada à habitação (respeitas as normas de postura – §§ 5º e 6º).
O direito de laje pode abranger a superfície superior ou inferior (quando o conceito de laje se apresentaria um tanto quanto modificado).
O que nos traz a este espaço, hoje, é analisar a possibilidade de penhora do direito de laje, esteja esta constituída ou não. E mais, esta análise abarcará tanto a possibilidade de penhora forçada, quanto a oferta da laje como bem para garantir execução.
Muitos devedores querem pagar suas dívidas, mas muitos não têm (e outros tantos não conseguem enxergar que têm) patrimônio disponível.
A cascata que nos espera é desalentadora: maior inadimplência, maiores juros, maior dificuldade de concessão de crédito, menor aquecimento do mercado, maior inadimplência etc. Some-se a isto a ineficiência destacada dos processos executórios (sejam autônomos ou em cumprimento de sentença) diante dos indivíduos sem bens disponíveis.
Neste quadro, a defesa da impenhorabilidade é necessária para resguardar a dignidade humana. Mas é necessário pensar caminhos que, sem reduzir o patrimônio útil do devedor, possibilitem a satisfação do direito do credor. Sim, exatamente isso o que defendemos: a laje, ainda que não tenha sido formalmente instituída, é um meio especial de satisfação do crédito. Pode ser penhorada, oferecida em dação em pagamento ou ofertada à penhora pelo próprio devedor para quitar suas dívidas.
Sabe-se que a penhora pode recair sobre diversos tipos de direitos, inclusive os derivados de relações reais sobre imóveis de terceiros, como a conhecida penhora do domínio útil da enfiteuse (veja-se, por exemplo, o seguinte precedente: Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região — AP23544520115120004 SC, Publicação: 20/08/2015).
Na mesma linha de entendimento, não se pode criar restrição para a penhora do usufruto (que recai sobre o exercício e não sobre o direito em si).Isto porque a restrição se dá em razão da natureza personalíssima da relação usufrutuária e não da condição de direito real sobre coisa alheia.
Como se sabe a laje é direito real sobre coisa própria tão importante quanto a propriedade. Desta forma, é um direito [já efetivado ou em potencial de sê-lo] existente no patrimônio de qualquer proprietário de bem imóvel. Assim entendido, como direito disponível, não vemos qualquer obstáculo para que a vontade Estado-Juiz possa substituir a do devedor-executado. A ordem judicial pode gerar uma instituição forçada da laje e, ato contínuo, a penhora do novel bem criado.
E a razão prática disso é clara: se ao lajeário irregular que reside em bem dependente da vontade do proprietário para se tornar realidade é dado mecanismo de instituição forçada da laje, por que negar ao credor, desiludido com infrutíferas tentativas de penhora pelos meios de menor impacto, a possibilidade de gerar a satisfação de seu crédito a partir de um direito, que jaz inerte no patrimônio do devedor, sequer utilizado por este? Não, não há razão para isto.
E, melhor, mesmo que se tenha na construção base imóvel adjetivado com a condição de bem de família e, assim, por regra, impenhorável, não há qualquer óbice que a penhora se dê sobre a laje do mesmo. Isto porque, a laje é autônoma (artigo 1.510-A, §4º do Código Civil c/c art. 176, §9º da Lei 6.015/73) em relação ao imóvel base.
Não há que se atribuir a ela os mesmos adjetivos que recaem sobre o imóvel base. A laje é imóvel novo, autônomo em relação à construção que lhe dará origem. Sendo essa bem de família, razão não há para a impenhorabilidade, também, da laje, já que o direito à moradia não será prejudicado.
Como paradigma daquilo que aqui se defende,em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que é possível a penhora da laje (no caso, um salão inferior — laje em infrapartição),desde que o desdobro esteja em consonância com as normas municipais de postura, as quais devem permitir [ou pelo menos não podem restringir] a instituição da laje na localidade, como prova da divisão cômoda do bem (TJSP - no Agravo 2250114-95.2018.8.26.0000,publicado em 31/10/2019).
Portanto, parece-nos que, a vontade (ou inexistência desta) do proprietário não pode ser óbice absoluto à penhora da laje não instituída. Incumbe ao credor o ônus de provar a viabilidade física do desdobramento do imóvel, para demonstrar [através de um laudo de engenharia, por exemplo],a viabilidade técnica do desmembramento do imóvel em construção-base e laje autônoma.
Por outro lado, nada impede que o proprietário que responde um processo de execução venha a ofertar a instituição da laje (agora direito) como bem a ser penhorado, valendo a decisão que efetiva a penhora como instrumento para registro em cartório (para fins acautelatórios) e, uma vez praceada a laje, mandado específico autorizará a abertura de nova matrícula e definitiva instituição da laje.
Por fim, a penhora do direito de laje ainda não instituído tem as seguintes consequências positivas: a) pode incentivar a economia, por favorecer um maior volume de pagamento das dívidas, com a regularização do nome de centenas de devedores inadimplentes, restabelecendo a sua capacidade de consumo; b) pode colocar no mercado imobiliário diversas lajes disponíveis para comercialização, o que poderia reduzir, em alguma medida (pela lei da oferta e demanda) o preço dos imóveis; c) pode impulsionar a construção civil, a geração de empregos e o recolhimento de tributos sobre as transações imobiliárias e edificações; d) parece ser ecologicamente correta, na medida em que incentiva o crescimento vertical das cidades, evitando o seu crescimento horizontal, o que, por via de consequência, pode reduzir os desmatamentos oriundos das expansões urbanas e a necessidade de infraestrutura pública em novos bairros; e) evita o ócio patrimonial, já que permite que os potenciais construtivos dos terrenos sejam aproveitados em grau máximo [por exemplo, incentivando a construção de estacionamentos subterrâneos, casas de dois ou três andares]; e f) enfim, favorece o surgimento de situações que podem diminuir a demanda reprimida por imóveis, bem como a especulação imobiliária.
Arthur Lobo é professor de Direito Civil, doutor em Direito pela PUC-SP e sócio do escritório Wambier, Yamasaki, Beveranço e Lobo Advogados.
Wagner Inácio Dias é advogado, autor do livro "Direito de Laje" (Juspodivm), professor de Direito Civil e doutorando em Direito Civil na Universidade de Buenos Aires.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário