INTRODUÇÃO
Não se pode negar que a vista/paisagem de um imóvel tem grande importância no seu valor econômico. E em tempos de grande expansão demográfica, um imóvel com visão panorâmica ficou cada vez mais raro e, portanto, mais valorizado. Também se deve considerar a satisfação de ter uma bela visão em um imóvel, do prazer e da importância que isso pode ter para alguns.
Fazendo uma análise dedutiva da servidão, o presente artigo tentará demonstrar a possibilidade de se garantir um direito de paisagem através da servidão de vista, fazendo algumas considerações sobre as principais características da servidão e por fim analisando um caso concreto.
SERVIDÃO
As servidões já existiam no Direito Romano, sob o nome de Iura praedorum, com o objetivo de corrigir as desigualdades existentes entre os terrenos, fim semelhante ao das servidões contemporâneas.
“No loteamento de terras, procurava-se manter a mesma área, mas não fora possível assegurar a identidade de condições dos diversos limites tendo algumas situações melhores do que outros, estando um devidamente irrigado e o outro não etc. A fim de corrigir tais desigualdades prediais é que surgiram as servidões para restabelecer a igualdade por um sistema de compensação entre os diversos prédios vizinhos. A servidão nasceu, assim, como um direito acessório do direito de propriedade em favor do proprietário do prédio dominante”. (DAIBERT, Jefferson. 1979 apud DINIZ, 2004, p. 377)
Neste norte podemos notar a grande importância das servidões no direito de propriedade, tanto que já era preocupação desde os tempos pretéritos, como uma forma de fazer com que as benéfices de uma propriedade não ficassem exclusivamente para seu proprietário, ou seja, já se via aqui uma aplicação da função social da propriedade através das servidões.
No direito contemporâneo a servidão não tem menos importância, a ponto de ser considerada um direito real sobre a propriedade, nos moldes do art. 1.225, inciso III, do Código Civil de 2002.
Nas palavras de Maria Helena Diniz, “poder-se-ia definir as servidões prediais como sendo os direitos reais de gozo sobre imóveis que, em virtude de lei ou vontade das partes, se impõem sobre o prédio serviente em benefício do dominante” (2004, p. 375).
A servidão tem por finalidade tornar a propriedade do dominante mais útil, mais agradável ou mais condizente com sua destinação natural (MELO, 2008, p. 299).
A servidão é direito real imobiliário sobre coisa alheia e também pode ser considerado acessório.
"É real porque estabelece um poder jurídico direto e imediato sobre a coisa, isto é, um poder que não depende da intermediação do proprietário do prédio serviente: é jus in re, não é ad rem. É imobiliário, porque se liga necessariamente às coisas imóveis. É sobre coisa alheia, porque não se admite servidão sobre coisa própria. É acessório, porque não se o concebe independentemente do prédio dominante, ao qual se prende"(Bessone; 1996, p. 278, apud SERAFIM, 2010, p.348).
Ainda sobre servidões:
"Algumas regras regem o direito real de servidão. É direito real e acompanha o imóvel em todas suas transmissões; é inalienável, por não admitir transferência separada do prédio a que adere, em razão de sua natureza acessória. É direito que se exerce, mas inalienável: pode ser alienado o prédio gravado ou beneficiado pela servidão, mas não o direito real em si mesmo considerado, pois não se constitui servidão sobre servidão. A servidão não se presume, porque a propriedade se presume plena. Logo, a servidão deve ser provada de modo explícito, e sua interpretação é sempre restritiva, quanto a sua existência ou extensão, e seu exercício deve ser o menos oneroso ao prédio serviente" (PELUSO, 2009, p. 1401 apud SERAFIM, 2010, p. 350).
DIFERENÇA ENTRE SERVIDÃO PREDIAL E DIREITO DE VIZINHANÇA
A servidão predial consiste em um direito real sobre coisa alheia, em que o dono do prédio serviente aceita um encargo em favor do prédio dominante, com fim de tornar a propriedade deste mais útil, mais agradável ou mais condizente com seu fim natural (MELO, 2008, p. 299). Ao passo que:
"Os direitos de vizinhança são criados por lei e, por conseguinte, as modalidades são exaustivas (numerus clausus) [...] Os direitos de vizinhança não visam aumentar a utilidade do prédio, mas sim se apresentam como necessários para a busca de uma coexistência pacífica entre os vizinhos [...]." (MELLO, 2008, p. 183)
Os direitos de vizinhança não geram direitos reais, mas somente direitos pessoais, podendo ser exercido por qualquer possuidor de direito. (LISBOA, Roberto Senise. 2005, p. 262). Sendo que a servidão predial é um “direito real que permite aumentar as utilidades que um direito real de gozo sobre um imóvel proporciona, mediante uma restrição correlativa de um direito de gozo sobre um imóvel vizinho” (MELO, 2008, p. 299).
MODOS DE CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO PREDIAL
A servidão pode ser constituída por ato de vontade, por destinação do proprietário, por decisão judicial e por usucapião. (MELO, 2008, p. 305-808).
a) A servidão constituída por ato de vontade encontra respaldo no art. 1.378 do Código Civil de 2002, que prevê duas modalidades de constituição: o contrato e o testamento.
Art. 1.378. A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subseqüente registro no Cartório de Registro de Imóveis.
No entanto, como sugere o artigo, enquanto não haver o registro do ato no cartório, ele será apenas um título, ou um pressuposto à aquisição do direito real de servidão, ou seja, antes do aludido registro referido no artigo supramencionado, tais títulos constituem mero direito pessoal (GONÇALVES, 2009, p. 432).
b) No que diz respeito a servidão por destinação do proprietário, MELO nos traz um conceito bastante esclarecedor:
"A servidão predial por destinação do proprietário se dá quando este ostenta fisicamente um serventia sobre dois prédios de sua propriedade e aliena um deles a outrem, preenchendo, portanto, o pressuposto de que a servidão exige titularidades diferente para a sua constituição" (2008, p. 305).
c) A servidão predial por decisão judicial pode se ocorrer nas ações de divisão, conforme preconiza o Código de Processo Civil:
Art. 979. Ouvidas as partes, no prazo comum de 10 (dez) dias, sobre o cálculo e o plano da divisão, deliberará o juiz a partilha. Em cumprimento desta decisão, procederá o agrimensor, assistido pelos arbitradores, à demarcação dos quinhões, observando, além do disposto nos arts. 963 e 964, as seguintes regras:
[...]
II - instituir-se-ão as servidões, que forem indispensáveis, em favor de uns quinhões sobre os outros, incluindo o respectivo valor no orçamento para que, não se tratando de servidões naturais, seja compensado o condômino aquinhoado com o prédio serviente; [...]
d) Por fim, temos a servidão predial por usucapião, positivada no art. 1.379 do Código Civil.
Art. 1.379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião.
Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos.
Porém, além dos demais quesitos para a usucapião, exige-se que a servidão seja aparente, demonstrando a exteriorização do domínio (GONÇALVES, 2009, p. 434).
SERVIDÕES POSITIVAS E NEGATIVAS
O conceito de servidão positiva e negativa é de fácil entendimento, a positiva consiste em um poder ao prédio dominante de praticar algum ato ao prédio serviente, ao passo que a negativa consiste em impor ao prédio serviente uma conduta omissiva, ou seja, de abster-se de praticar algum ato, como o de não edificar acima de certa altura (GONÇALVES, 2009, p. 431).
SERVIDÕES APARENTES E NÃO APARENTES
No que diz respeito a este tema, Lisboa (2005, p. 409) é bem sucinto e claro ao tratar dele:
"Servidão aparente é aquela que se percebe pela simples realização de atos exteriores."
"Servidão não aparente é a que consiste em uma obrigação de não fazer, por parte do prédio serviente."
DO CASO CONCRETO
Em recente decisão, a corte superior brasileira (Superior Tribunal de Justiça – STJ) teve em seu crivo caso análogo ao que se pretende debater nesta pesquisa. Trata-se do REsp 935.474 – RJ. Neste caso concreto, a lide se iniciou em uma desavença entre vizinhos em torno de um muro no limite entre as duas propriedades, localizadas no bairro Leblon no Rio de Janeiro. O principal argumento era que este muro obstruía a vista de um deles a Lagoa Rodrigo de Freitas. Levado o caso ao judiciário, em um primeiro momento, houve um acordo, em que ficou estabelecido a diminuição do muro com a garantia de condições para preservação da vista, iluminação e ventilação. Porém a controvérsia não restou resolvida por muito tempo, pois foram plantadas árvores que acabaram tapando novamente a visão da Lagoa.
Levado novamente o caso ao judiciário, em primeiro grau, foi determinado à poda das árvores limítrofes. Porém, a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), sob o argumento de que no acordo firmado entre as partes não ficou estabelecido à alegada servidão de vistas, o que, segundo o próprio Tribunal, nem existiria no sistema brasileiro.
Alçado os autos ao STJ, o relator do REsp., Exmo. Sr. Ministro Ari Pargendler, mostrou-se favorável ao entendimento do TJRJ.
Por outro lado, em lúcida e brilhante fundamentação, a Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi votou em sentido oposto, sobre a espeque de que é de se fazer uma diferença entre Servidão Predial Legal e Convencional.
Com efeito, as servidões legais correspondem aos direitos de vizinhança, tendo como fonte direta a própria lei, incidindo independentemente da vontade das partes. Nascem em função da localização dos prédios, para possibilitar a exploração integral do imóvel dominante ou evitar o surgimento de conflitos entre os respectivos proprietários. As servidões convencionais ou servidões propriamente ditas, por sua vez, não estão previstas em lei, decorrendo do consentimento das partes.
A Ministra reconhece que, pelo acordo firmado entre as partes, existiu, apesar de não constar nos autos o registro da transação na matrícula do imóvel, uma relação que se equipara a uma servidão convencional. E que o plantio das árvores violava o objetivo do acordo, que era de manter a vista da paisagem, a iluminação e a ventilação. Acompanhando o voto da MM. Ministra, o Exmo. Sr. Ministro Massami Uyeda.
Acertada a decisão da Exa. Ministra ao diferenciar servidão convencional de servidão legal e, neste caso, como visto, ficou garantido o direito a paisagem/servidão de vista. Porém, em que pese todo o mérito da decisão, não parece correto equiparar o caso a uma servidão convencional, pois não houve a averbação do acordo no registro de imóvel, logo, devido a isso, o que existiu entre as partes foi somente um contrato obrigacional, de não fazer, mas não algo que possa se equiparar a uma servidão, que é um direito real, e por consequência exige a averbação na matrícula do imóvel para sua existência.
Sobre esse entendimento, Gomes (2004, p. 327, apud SERAFIM, 2010, p. 369) é bastante esclarecedor:
"A convenção, isto é, o acordo de vontades, é o modo mais comum de constituição das servidões prediais. Mas, em verdade, deve ser tomado antes como fonte do que modo de constituição propriamente dito. De fato. A servidão é um direito real imobiliário. Ora, entre nós, os direitos reais sobre imóveis não se constituem senão pelo competente registro. Os contratos produzem apenas efeitos obrigacionais; geram obrigações; não têm força para criar direito real."
CONCLUSÃO
Constata-se que é possível sim constituir um direito de paisagem através da servidão de vista, ou seja, através de uma servidão convencional. Deste modo, desde que proprietários distintos convencionarem, poderá ser averbado no registro de imóveis este direito sobre a coisa alheia, onde o imóvel serviente se absteria de fazer algo que obstrua a visão do prédio dominante.
Porém, dado a servidão de vista ter uma característica não aparente, em princípio, não seria passível de usucapião, já que o animus dominis não se presume.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DAIBERT, Jefferson. Direito das coisas. 2. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979. P. 345-564.
DINIZ, Maria Helena. Pag. 375, Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas. Vol. 4. 19ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2004).
GONÇALVES, Caros Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol. 5. 4ª ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2009).
Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Acesso em: 25 de outubro de 2013.*
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 4. 3ª ed., São Paulo, Editora RT, 2005).
MELO, Marco Aurélio Bezerra de Melo. Direito das Coisas. 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2008.
SERAFIM, Marcéli da Silva. Passagem forçada e servidão de trânsito: limitações distintas ao direito de propriedade. Revista da ESMESC, v. 17, n. 23, p.347-370, 2010.
Emerson Morotti - Acadêmico de Direito
Fonte: Artigos JusBrasil
NOTA DO EDITOR: *LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm
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