domingo, 11 de março de 2012

COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA COM EFICÁCIA REAL. DIREITO DO PROMITENTE COMPRADOR

Sílvio de Salvo Venosa
1. Origens e conceito


Até seu ingresso em nossa legislação, pelo Decreto-lei n º 58/37, o compromisso de compra e venda de imóveis conferia aos adquirentes apenas direitos obrigacionais. Findos os pagamentos das parcelas, extinta a obrigação, se o imóvel não fosse entregue ao adquirente, apenas lhe restaria a via indenizatória. Muitos foram os lesados por loteadores inescrupulosos, à época, pois na venda de lotes não edificados situava-se então a problemática. Ademais, antes desse diploma legal, os negócios eram regulados pelo art. 1.088 do Código Civil pretérito, a permitir o arrependimento de qualquer das partes antes da conclusão do contrato definitivo. A senda inaugurada pelo Decreto-lei n º 58/37, permitindo eficácia real ao compromisso de imóveis loteados, foi estendida, em diplomas posteriores, à generalidade dos imóveis. Esse primeiro diploma tornou obrigatório o registro dos loteamentos. Sem o registro, o proprietário somente pode vender partes ideais, ou mesmo concretas, mas não subdivididas em lotes. Registrado o empreendimento, os lotes ganham autonomia.

O mecanismo próprio do negócio jurídico bilateral merece estudo aprofundado quando do exame dos contratos em espécie. É conveniente nesta oportunidade elucidar os aspectos reais do negócio. Aponte-se, de início, que o atual Código Civil contemplou finalmente o instituto como direito real, nos arts. 1.417 e 1.418, sob a epígrafe "Do direito do promitente comprador."

O compromisso de compra e venda também é conhecido rotineiramente sob outras denominações: promessa de compra e venda, contrato preliminar de compra e venda, promessa bilateral de compra e venda. A Lei n º 6.766/79, que tratou do parcelamento do solo urbano, consagrou a denominação compromisso de compra e venda . O presente Código Civil refere-se à promessa de compra e venda (art. 1.417). Partes nesse negócio são o promitente, compromitente-vendedor ou cedente e promissário, compromissário-comprador, compromissário-adquirente ou cessionário.

No compromisso de venda e compra, sob o aspecto contratual, há um acordo de vontades, de cunho preliminar, por meio do qual uma parte compromete-se a efetuar em favor de outra, em certo prazo, um contrato de venda definitivo, mediante o pagamento do preço e cumprimento das demais cláusulas. Em nosso Direito civil, volume II: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos (seção 18.3), destacamos a conceituação e mecanismo desse negócio, sob o prisma do contrato preliminar em geral. Em determinado momento, pode não ser oportuno, possível ou conveniente às partes contratar de forma definitiva, plena e acabada. No entanto, nas premissas, igualmente será inconveniente deixar de contratar, levando-se em conta a existência de toda uma fase pré-contratual e a oportunidade de ser concluído um negócio no plano material.

O contrato representa, segundo examinamos no livro citado, um acréscimo patrimonial para o contratante. A posição contratual possui valor econômico relevante, tanto que pode ser cedida a título oneroso. Desse modo, sob o plano ainda exclusivamente obrigacional, surgirá a conveniência de contratar preliminarmente. Podem as partes necessitar de prazo maior de meditação para a conclusão do contrato definitivo, aguardar melhor situação econômica, ou, naquilo que nos interessa agora, pode o alienante pretender maior garantia de pagamento, não concluindo definitivamente a venda enquanto não pago o preço. Surge neste último enfoque a efetiva utilidade da promessa de compra e venda que ganha os contornos de contrato quase definitivo quando nela se inserem as cláusulas de irretratabilidade e irrevogabilidade.

Terminológica e tecnicamente, o contrato preliminar objetiva a conclusão de um contrato principal e definitivo. Possui todas as características de contrato, tratando-se de modalidade autônoma em sua classificação geral.

No contrato preliminar, pré-contrato ou promessa de contratar já existem todos os requisitos de um contrato. Por isso, não se confunde com as chamadas negociações preliminares . Essa fase preliminar de negociação ou pontuação, como regra geral, não gera direitos. Pode dela decorrer uma responsabilidade pré-contratual sob determinadas condições, situada fora da relação contratual, matéria por nós examinada na citada obra ( Direito civil: teoria das obrigações e teoria geral dos contratos , Capítulo 22).

O compromisso de compra e venda é um contrato, portanto, perfeito e acabado. Advirta-se: não se trata de contrato preliminar típico. Deve ser examinado e interpretado, sem dúvida, do ponto de vista negocial. Contudo, como em tantos outros fenômenos jurídicos, trata-se de contrato dirigido ou regulamentado, representado em grande parte por normas cogentes que visam à proteção da parte, em tese, mais fraca economicamente, o adquirente, mas resguardando de igual modo, com eficácia, o alienante, na hipótese de inadimplemento.

Por outro lado, o contrato preliminar traz em seu bojo a obrigação de contratar definitivamente, cuja natureza é uma obrigação de fazer. As partes obrigam-se à conclusão do contrato definitivo sob certo prazo ou condição. No compromisso de compra e venda sob exame, resulta claríssimo que a intenção das partes não é precipuamente a conclusão de outro contrato, mas a compra e venda do imóvel de forma definitiva. Destarte, afasta-se esse compromisso da noção que poderá existir em outros contratos preliminares, pré-contratos propriamente ditos, ou mera carta de intenções ou acordo de cavalheiros. O compromisso na hipótese sob vértice enquadra-se como verdadeira modalidade de compra e venda. O nexo contratual de alienação da coisa é o aspecto primordial desse compromisso. Essas as razões axiológicas que levaram o legislador a conceder eficácia real à promessa de compra e venda de imóveis. Cabe às partes fixarem sua vontade em mero contrato preliminar ou promessa de contratar no futuro, dentro do campo da autonomia da vontade obrigacional, ou efetivamente comprometerem-se a vender e comprar sob a égide da legislação protetiva.

Muito melhor e mais efetivo seria que a lei lhe desse um tratamento mais dinâmico, permitindo que por simples averbação no registro imobiliário, provando o adquirente ter pago todas as parcelas, que a propriedade se tornasse plena. Exigir-se nova escritura, a famigerada escritura definitiva, tão só para essa finalidade é burocracia e cartorialidade inadmissível na atualidade, atulhando ainda mais nossos tribunais com desnecessárias ações de adjudicação compulsória. Portanto, o Código de 2002 deu apenas meio passo com relação aos compromissos de venda e compra. A esse respeito já existe importante inovação no ordenamento, no art. 26, § 6º, da Lei nº 6.766/79, acrescentado pela Lei nº 9.785/99, pra atingir loteamentos populares:

" Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas de cessão valerão como título para registro do lote adquirido, quando acompanhados da respectiva prova de quitação ".

Desse modo, será doravante um pequeno passo, perfeitamente possível, aplicar esse dispositivo a todos os compromissos de venda e compra e não apenas aqueles dentro do âmbito da lei de parcelamento do solo urbano. Não existe diferença ontológica entre eles. Convido nossos colegas magistrados a refletir e aplicar, sem rebuços, essa norma, orientando os registros imobiliários para tal.

1.2 Compromisso e usucapião

Não se esqueça, também, que a existência de compromisso de compra e venda, ainda que não registrado, é base segura para o processo de usucapião. A posse do imóvel e a existência de um compromisso quitado são aspectos mais do que suficientes e patentes para caracterizar justo título para a aquisição ad usucapionem . Desse modo, quando, por qualquer motivo, frustra-se a ação de adjudicação compulsória ou o registro imobiliário, a ação de usucapião atingirá a mesma finalidade. Não é, contudo, a solução mais rápida e menos custosa, como já apontamos.

Ainda, contudo, há mais uma possibilidade de usucapião versada no parágrafo único do art. 1.242 do mais recente Código Civil:

"Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico."

A hipótese contempla mais uma facilidade em prol da aquisição da propriedade, que pode ser denominado usucapião documental ou tabular . Nesse caso, como aponta Afrânio de Carvalho, o dispositivo visa proteger o proprietário aparente, isto é, aquele que já possuía uma inscrição dominial que fora cancelada por vício de qualquer natureza (2001:206).

Nessa situação, pode ocorrer que o interessado tivesse título anteriormente, o qual, por qualquer razão fora cancelado: por irregularidade formal, por vício de vontade etc. A novel lei protege quem, nessa situação, mantém no imóvel a moradia ou realizou ali investimentos de interesse social e econômico. Protege-se o possuidor que atribui utilidade para coisa, em detrimento de terceiros. De qualquer forma, porém, a hipótese é de usucapião ordinário e mesmo sob as condições expostas não se dispensará o justo título e a boa-fé. Destarte, esse usucapião não pode beneficiar aquele que obteve o título com vício e o registrou, para poder ocupar o imóvel. Nessa premissa, ao ocupante restará aguardar o prazo do usucapião extraordinário.

O passo do legislador neste aspecto, no entanto, ainda foi tímido: melhor seria permitir também essa modalidade de usucapião documental para os que tivessem compromisso de compra e venda devidamente quitado e posse contínua por esse período, juntamente comos demais requisitos expostos nesse dispositivo. Fica essa sugestão para futura norma e mesmo para a jurisprudência, pois, a nosso ver, essa questão envolve larga massa da população com compromissos quitados e posse, e o usucapião nessa situação amolda-se à intenção do legislador. Obrigar os compromissários compradores, nessa hipótese, a buscar a consagrada " escritura definitiva " é, como acentuamos, superfetação de inútil burocracia. Melhor ainda, como apontamos, se o legislador permitisse, nos compromissos registrados, que mera averbação de propriedade plena fosse feita ano registro de imóveis. Muita lenta, empedernida e sem maior visão de horizontes é a reação do legislador, para dizer o mínimo. Tal como está redigida a presente disposição sobre usucapião, será muito pequeno o alcance de sua aplicação, salvo se a jurisprudência decidir alargá-lo.

1.3 Finalidade do compromisso

Na prática, os compromissos têm em mira efetivamente a venda e compra definitiva. Falhas estruturais no instrumento ou fora dele poderão impedir esse desiderato, o qual, contudo, foi aquele buscado pelos contratantes. Nesse sentido, ao analisar a possibilidade de co-existência dessas duas modalidades de avença, observa Agathe Elsa Schimidt da Silva (1983:11):

"Parece-nos muito bem equacionada a existência do compromisso de compra e venda irretratável, amparado na legislação em vigor, ao lado da existência já rara do contrato preliminar de compra e venda. A grande distinção entre os dois é a possibilidade que a lei confere ao compromissário, de obtenção do título aquisitivo por via judicial, em caso de inadimplemento, permitindo-lhe a real aquisição da propriedade do imóvel, nos termos do art. 530 do Código Civil, o que não ocorre nos contratos preliminares."

De fato, a Lei n º 6.766/79 foi mais além na proteção do comprador de imóvel urbano, permitindo o registro compulsório do mero negócio preliminar ao compromisso de compra e venda (art. 27), como mencionaremos a seguir.

O Decreto-lei n º 58/37 conferiu os lineamentos estruturais do instituto, direcionado originalmente para terrenos loteados. A Lei n º 649/49 estendeu o regime geral das promessas de compra e venda aos imóveis não loteados, desde que não contivessem cláusula de arrependimento e estivessem registradas no cartório imobiliário. O Decreto-lei n º 58/37 foi regulamentado pelo Decreto n º 3.079/38. Os loteamentos foram posteriormente regulados pelo Decreto-lei n º 21/67, que cuida mais propriamente da posição do loteador, mantendo o regime do Decreto-lei n º 58/37. Finalmente, a Lei n º 6.766/79 ordenou o parcelamento do solo urbano, incorporando as conquistas jurisprudenciais, derrogando em parte o Decreto-lei n º 58/37, mas mantendo sua linha originária. O Decreto-lei n º 58/37 continua integralmente vigente para imóveis rurais.

O art. 1.417 do vigente Código Civil representa o ápice ainda incompleto desse instituto, dispondo: "Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório do Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel." Se o comprador adquire direito real, porque não permitir-se já, de imediato, o registro pleno da propriedade sem a materialmente inútil " escritura definitiva "?

2. Natureza Jurídica

Pelo compromisso de compra e venda de imóvel, tal como figurado na legislação citada, os poderes inerentes ao domínio, ius utendi, fruendi et abutendi , são transferidos ao compromissário comprador. O promitente vendedor conserva tão-somente a nua propriedade, até que todo o preço seja pago. Nota-se que nessa situação o ius abutendi , direito de dispor, não é transferido de todo, mas vai esmaecendo e esvaindo-se à medida que o preço é pago até desaparecer com a quitação integral. Pago o preço, os poderes do domínio enfeixam-se no patrimônio do adquirente. Tal como ocorre, por exemplo, na extinção do usufruto com a morte do usufrutuário ou com a extinção da hipoteca com o desaparecimento da obrigação garantida, "embora com as respectivas inscrições não canceladas, a propriedade do compromitente vendedor tem uma existência fictícia, isto é, não tem existência" (Azevedo Jr., 1979:8). Todavia, enquanto não pago o preço total, a garantia permanece íntegra. A propósito, Darcy Bessone (1988:426), embora confessando-se isolado nessa posição, aponta que o compromisso de compra e venda desse jaez confere na realidade uma garantia, apontando para tal suas características: "É exercido sobre c oisa alheia. É acessório de direito de crédito. É indivisível, certo que os pagamentos das prestações do preço não o reduzem. Produz efeitos 'erga omnes'" . De fato, se a função de garantia com eficácia real não é sua característica principal, é elemento marcante do instituto.

O Decreto-lei n º 58/37 no art. 11 permitiu que o compromisso de compra e venda seja efetuado por instrumento público ou particular. No art. 4 º especificou seu registro imobiliário, por averbação, bem como suas transferências e rescisões. A lei registrária atual refere-se simplesmente ao registro. O art. 5 º conferiu eficácia erga omnes e direito real ao contrato:

"A averbação atribui ao compromissário direito real oponível a terceiro, quanto à alienação ou oneração posterior, e far-se-á à vista do instrumento de compromisso de venda, em que o oficial lançará a nota indicativa do livro, página e data do assentamento."

O art. 15 desse diploma atribuiu ao adquirente o direito de exigir a outorga de escritura, antecipando ou ultimando o pagamento integral do preço. O art. 16, com a redação da Lei n º 6.014/73, concedeu ao compromissário comprador a ação de adjudicação compulsória, na hipótese de recusa de outorga de escritura, pelo procedimento sumaríssimo, atual sumário.

Esses aspectos foram concentrados no art. 1.418 do mais recente Código:

"O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste foram cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel."

Como acentuamos, essa providência poderia ser dispensada, se o adquirente provasse que pagou todo o preço. É urgente que o legislador atente para esse aspecto. Aliás, a legislação extravagante já o fez, como apontamos. Essa escritura definitiva aí exigida é superfetação burocrática irritante no atual estágio da história do direito imobiliário do país.

De outro lado, o art. 22 do Decreto-lei, com a redação atual conferida pela Lei n º 6.014/73, adaptadora do atual CPC, mantendo a inovação introduzida pela Lei n º 649/49, dispõe:

"Os contratos sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações, desde que inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos arts. 16 desta lei, 640 e 641 do Código de Processo Civil."

Por sua vez, a Lei n º 6.766/79, dispondo sobre o parcelamento do solo urbano e dando outras providências, no art. 25 estabeleceu:

"São irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros."

Destarte, restaram inafastáveis o caráter e a eficácia real atribuídos a esses contratos na construção legal, agora assim admitidos pelo novel Código Civil. À obrigação, como acentuamos, foi conferida eficácia real. O negócio, contudo, não perde suas características contratuais, pois muitas são as relações obrigacionais decorrentes para as partes. A intenção da legislação é colocar a salvo os direitos do comprador que cumpre integralmente suas obrigações contratuais, ficando indene de ameaças de terceiros. Como direito real limitado, todavia, ainda não se constitui propriedade. No entanto, à medida que diminui o débito com a amortização do preço, mais e mais o direito do adquirente se aproxima do domínio, até finalmente abraçá-lo na integralidade.

Por essa razão, pode facilmente ser dispensada uma subseqüente inútil escritura, de lege ferenda . De qualquer forma, instigo os magistrados deste país a ousar e a dar interpretação ampla ao dispositivo, permitindo que o registro definitivo seja averbado à matrícula, quando pago todo o preço, independentemente da decantada escritura definitiva. Trata-se, a nosso ver, de interpretação de acordo com a finalidade social do contrato e não se choca contra o sistema.E se podem ousar os magistrados, que ousem por dever de ofício os advogados também na defesa desse amplo direito social, que atinge parcela imensa de nossa população. E com isto, estarão sendo beneficiados milhares e milhares de adquirentes de imóveis, bem como a arrecadação de tributos e incentivando-se a veracidade do registro imobiliário, sem conflitar com o sistema, o que é mais importante. Se o legislador do Código de 2002 não enxergou expressamente o alcance social desse fenômeno, que enxerguem meus colegas magistrados, mormente os que são corregedores dos cartórios dos registros de imóveis do país Não se esqueça que o magistrado deste século XXI deve aplicar a lei na busca da equidade e do interesse social, princípios do novel Código.

3. Adjudicação Compulsória

O compromisso registrado confere ao adquirente direito de seqüela, permitindo-lhe reivindicar a propriedade ao cumprir o compromisso, exigindo a outorga de escritura pela adjudicação compulsória. Essa execução específica de outorga de escritura aqui decantada não fica afastada nem mesmo perante a ausência de registro, ou de outros requisitos no contrato, pois no caso torna-se viável recorrer à ação de conhecimento, com índole cominatória, de obrigação de fazer, para obtenção de decisão nos termos do art. 639 do CPC. Nesta última hipótese, a sentença produzirá os mesmos efeitos do contrato cuja conclusão foi recusada ( RSTJ 28/419, RT 591/94, 617/82, 619/100).

Se a sentença substitutiva do contrato por fas ou por nefas não puder ser registrada no cartório imobiliário, tal refoge ao âmbito dessa ação. A sentença não pode acrescentar ou suprimir cláusulas que se encontram no pré-contrato. O julgado não interfere no conteúdo contratual. Supre tão-somente a vontade do promitente vendedor recusante da outorga do contrato definitivo. Se o contrato apresenta falhas que inviabilizam o registro, a óptica desloca-se para o direito pessoal entre as partes. Diversa é a situação quando o compromisso já está registrado, onde apenas se consolida a propriedade plena ao adjudicante, com o registro da sentença, nesse caso efeito necessário e elementar da decisão. Nesta hipótese, como acentuamos, a escritura definitiva ou a sentença que a substitui se mostra inútil. Se porventura falhas houver nesse registro, como em que qualquer registro pode ocorrer, o sistema outorga meios de corrigi-las.

Há vasta jurisprudência sobre a matéria cuja evolução é demonstrada por inúmeras Súmulas dos tribunais federais.

Assim, a Súmula n º 166 do Supremo Tribunal Federal estabeleceu: "É inadmissível o arrependimento do compromisso de compra e venda sujeito ao regime do Dec.-lei 58, de 10-12-37." Desse modo, pactuada cláusula de arrependimento desse prisma, ela é ineficaz, ou trata-se de contrato não albergado pela lei específica. A Súmula n º 413 do mesmo Pretório aduz: "O compromisso de compra e venda de imóveis, ainda que não loteados, dá direito à execução compulsória, quando reunidos os requisitos legais." Toda essa jurisprudência foi coroada pelo corrente Código Civil.

Por outro lado, a Súmula n º 167 do Supremo Tribunal Federal dispôs:

"Não se aplica o regime do decreto-lei n º 58, de 10 de dezembro de 1937, ao compromisso de compra e venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro."

Destarte, sob a égide desse entendimento, tinha-se por incabível a adjudicação compulsória, de compromisso não registrado. Essa orientação está atualmente superada por decisões do Superior Tribunal de Justiça que atenderam aos reclamos da doutrina e de nossa realidade social, cuja sistemática inviabiliza o registro imobiliário para grande massa da população. A jurisprudência homogênea do Superior Tribunal de Justiça é, portanto, no sentido de prescindir o compromisso de compra e venda de registro imobiliário para possibilitar a adjudicação compulsória ( RSTJ 32/309, 25/465, 29/356, 42/407; ainda no mesmo sentido os recursos especiais n os 19.414-0/MG, Rel. Waldemar Zveiter; 13.639-0/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo).

Se, na ausência de registro, o título emanado da sentença não puder ser registrado, porque existente registro em nome de terceiro, por exemplo, obstando o princípio da continuidade, a solução deverá ser conforme o exposto, regendo-se o negócio pelo direito obrigacional.

"A promessa de venda gera efeitos obrigacionais, ainda que não formalizada por instrumento particular e não registrada. Mas a pretensão à adjudicação compulsória é de caráter pessoal, restrita assim aos contratantes, não podendo prejudicar os direitos de terceiros, que entrementes hajam adquirido o imóvel e obtido o devido registro em seu nome, no ofício imobiliário" ( RSTJ 43/458).

Sustentando entendimento relativo à relação meramente obrigacional, tem-se entendido que

" se o compromisso particular não registrado não autoriza a adjudicação compulsória, nada impede que o juiz receba a inicial como pedido para exigir cumprimento de uma obrigação de fazer, a outorga da escritura definitiva. Se reconhecido esse direito, a sentença produzirá todos os efeitos da declaração não emitida na forma do art. 641 do CPC" ( 1 º TACSP , 8 ª Câm. Esp., Ap. 452.491-2 - Praia Grande; Rel. Juiz Raphael Salvador).

Com essa posição firmada, restam aclaradas as dúvidas que permearam a matéria no decorrer desses anos. Enfatiza-se, dessa forma, como fazia a doutrina, ser pessoal e não real a natureza da ação de adjudicação compulsória. Nesse sentido se manifestara expressamente Ricardo Arcoverde Credie (1991:32), em monografia sobre o tema, definindo-a como

"a ação pessoal que pertine ao compromissário comprador, ou ao cessionário de seus direitos à aquisição, ajuizada com relação ao titular do domínio do imóvel - (que tenha prometido vendê-la através do contrato de compromisso de venda e compra e se omitiu quanto à escritura) - tendente ao suprimento judicial desta outorga, mediante sentença constitutiva com a mesma eficácia do ato não praticado" .

Por conseguinte, já não há como embaralhar os conceitos do direito real e da ação de adjudicação compulsória. Esta ação é de natureza pessoal, esteja ou não registrado o compromisso.

4. Lineamentos Gerais da Promessa de Compra e Venda

O estudo detalhado do compromisso de compra e venda pertence, como aduzido, ao campo contratual.

Cumpre enunciar alguns fundamentos que regem esse contrato, tendente a criar eficácia real.

O Decreto-lei n º 58/37 permitiu no art. 11 o compromisso particular, manuscrito, datilografado ou impresso, bem como o instrumento público, para os imóveis loteados. O art. 22, com redação posterior, referente a imóveis não loteados, fez menção apenas a contratos sem cláusula de arrependimento. O art. 26 da Lei n º 6.766/79, regulando os imóveis urbanos, no art. 26, igualmente permitiu escritura pública ou instrumento particular para os compromissos de compra e venda, as cessões ou promessas de cessão. Após vacilação inicial, em todas as hipóteses admitiu-se o instrumento particular. A outorga uxória é imprescindível, sob pena de se tornarem inviáveis a escritura definitiva e o registro.

A Lei n º 6.766/79 regula toda a matéria relativa a loteamentos e desmembramentos para fins urbanos (arts. 1 º e 2 º ). Entendemos que, revogadas as disposições em contrário , ficaram derrogados dispositivos do Decreto-lei n º 58/37 no que toca ao loteamento de imóveis urbanos. Agathe Elsa Schimidt da Silva (1983:92) faz apanhado geral da legislação e aponta que

"o Decreto-lei n º 58 continua vigente apenas nos arts. 5 º (efeitos do registro dos contratos); 8 º (obrigatoriedade do registro do ato constitutivo ou translativo de direitos reais); 10 (obrigatoriedade da menção do número do registro dos anúncios de propaganda de venda); 12, salvo o § 2 º , de que trata a nova lei; 15 (antecipação do pagamento pelos compromissários); 16 (sobre a adjudicação compulsória); 17 (depósito do imóvel pelo loteador); 22 (adjudicação compulsória dos imóveis não loteados, com contrato registrado e sem cláusula de arrependimento). Quanto aos loteamentos rurais, permanece o Decreto-lei n º 58 inteiramente em vigor".

O art. 27 e parágrafos da Lei n º 6.766/79 trataram dos contratos cuja obrigação seja a de concluir contrato de promessa de venda ou cessão. Trata-se de avença preliminar a outro contrato preliminar. Inadimplindo o promitente alienante essa obrigação, o credor poderá notificar o devedor para outorgar escritura, ou oferecer impugnação em 15 dias. Essa notificação é efetuada pelo Cartório de Títulos e Documentos ou pelo Cartório de Imóveis (art. 49).

Importa, porém, deixar ressaltado que a promessa de compra e venda, a par de conceder o direito à outorga de escritura definitiva após a quitação do preço, pode englobar várias obrigações inseridas no instrumento, como a posse precária em favor do adquirente, as obrigações referentes a despesas, taxas etc., os imóveis loteados. A cláusula resolutória expressa é ineficaz perante a Lei n º 6.766/79, porque o art. 32 determina que o contrato será rescindido 30 dias após constituído em mora o devedor. Este deverá ser intimado pelo oficial do registro imobiliário para saldar o débito. Não purgada a mora, considera-se rescindido o contrato, mas não se prescinde da declaração judicial. Isto porque, embora a lei tenha declarado a rescisão de pleno direito, o devedor não teve oportunidade de apresentar defesa, podendo fazê-lo em juízo. "O processo adotado não previu nenhuma forma de contraditório: o devedor é interpelado para pagar e nada mais, sem poder dar razões do retardamento" (Azevedo Jr., 1979:83). No mesmo sentido, disciplinava o art. 14 do Decreto-lei n º 58/37. Veja, a respeito, o disposto nos arts. 32 e seguintes da Lei nº 6.766/79, os quais regulam as disposições procedimentais cartoriais na hipótese de inadimplemento do devedor em pagar e do credor em receber as prestações.

Na tentativa de espancar dúvidas referentes aos compromissos disciplinados pelo art. 22, relacionadas aos compromissos de imóveis não loteados, o Decreto-lei n º 745/69 foi expresso ao considerar ineficaz cláusula resolutória expressa inserida nos instrumentos, assim dispondo no art. 1 º :

"Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-lei n º 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que deles conste cláusula resolutiva expressa, a constituição de mora do promissário comprador depende de prévia interpelação, judicial ou por intermédio do cartório de títulos e documentos, com quinze (15) dias de antecedência."

Para os imóveis loteados, a lei previu, portanto, forma diversa de purgação de mora, exigindo os efeitos da mora ex persona . Pelas dicções legais, percebemos que o adquirente de imóvel não loteado estaria mais protegido do que o de imóvel loteado, o que reforça entendimento da necessidade de pronunciamento judicial em ambos os casos, permitindo-se a emenda da mora em juízo (Azevedo Jr., 1979:84). Também é dessa opinião Agathe Elsa Schimidt da Silva (1983:110).

"Havendo necessidade de recorrer-se ao Judiciário para resolução do contrato por inadimplemento contratual, e se o réu-compromissário- devedor quiser purgar a mora no prazo legal que lhe compete para resposta, é de aceitar-se, desde que o pagamento seja acrescido das cominações contratuais e legais."

Uma vez necessária a intervenção judicial, é mais equânime entender que em juízo também pode ocorrer a emenda da mora. No entanto, a matéria continua polêmica, havendo julgados que adotam tese oposta e obstam a purgação nessa oportunidade. No entanto, é de notar que a letra do Decreto-lei n º 745/69 não é expressa em considerar o compromisso rescindido de pleno direito. Por outro lado, será julgado carecedor de ação o alienante que deixar de notificar previamente o promitente-comprador. A notificação nessa hipótese é condição de procedibilidade.

Oportuno lembrar ainda que o Código de Defesa do Consumidor, Lei n º 8.078/90, estabeleceu a questão polêmica no art. 53:

"Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado."

Evidente que o intuito do legislador foi evitar o enriquecimento injusto. Por outro lado, a celeuma está em situar exatamente o que pode ser deduzido na devolução das quantias pagas, porque a lei apenas veda a perda total . A matéria merece longa digressão, imprópria neste momento. No entanto, qualquer que seja a interpretação, não se pode admitir a dedução que nulifique o alcance da norma nem que o montante da devolução seja quantia que proporcione vantagem ao devedor inadimplente ou desistente. Defendemos, por outro lado, que essa devolução, por medida de justiça, deve ser feita na mesma proporcionalidade inversamente temporal das parcelas pagas. A situação é crucial nas incorporações imobiliárias, tendo porém interesse no compromisso ora examinado.

Dentro dos princípios gerais, que igualmente almejam evitar o injusto enriquecimento, o compromissário comprador que devolve o imóvel tem direito a indenização por benfeitorias, com direito de retenção, pois há de ser presumida sua boa-fé (Rizzardo, 1987:132). Pelos princípios protetivos do consumidor, serão nulas por abusivas as cláusulas que dispuserem em sentido contrário (art. 51 do Código de Defesa do Consumidor). Mesmo antes do advento da lei do consumidor, essa posição já era defensável como corolário dos princípios gerais de boa-fé e impedimento ao injusto enriquecimento.

Outras questões sobre a mora, cláusula de arrependimento, cláusula penal, extinção do compromisso, bem como o exame detalhado dos requisitos contratuais, benfeitorias e perda das parcelas pagas devem ser completadas no estudo dos contratos. Procurou-se aqui destacar apenas o aspecto do compromisso mais relacionado com os direitos reais.

Nesta matéria, como reiteramos, aguarda-se a pronta intervenção do legislador, senão dos tribunais, para que permitam que, sem maiores exigências, o compromisso de compra e venda registrado e com prova de quitação total possa ser averbado no registro imobiliário, como propriedade plena.

BIBLIOGRAFIA

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WALD, Arnoldo. Direito das coisas. 8. ed. São Paulo: RT, 1991.

Autor: Sílvio de Salvo Venosa
Ex-magistrado de carreira, aposentado pelo Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo.
Professor e autor da obra Direito Civil em sete volumes pela Editora Atlas e de várias outras sobre Direito Privado. Consultor, Palestrante e Parecerista.


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