sábado, 3 de outubro de 2020

Usucapião – A crise sistêmica que mitiga a efetivação social do direito


O registro legal primordial da Usucapião ocorreu no período arcaico na Ordem Jurídica do Império Romano. Pedro Nunes, (Apud BARRUFFINI, 1998), em sua obra “Usucapião”, afirma: a origem da usucapião remonta a Lei das XII Tábuas. Também conhecida como Lei Decenviral, elaborada no século V, antes da era Cristã, pelos Decenviri Legibus scribundi, um marco histórico para a civilização romana.

Vale dizer, os romanos após observarem as consequências sociais da incerteza jurídica relacionada ao domínio, passaram a operar a transmudação do estado de fato em situação jurídica. Dessa forma, o instituto passou a representar uma importante forma de aquisição da propriedade. Para tanto, eram exigidos a comprovação da posse, o estado de fato, e o atendimento aos demais requisitos determinados pelo código civil romano, ius civile.

Na civilização romana primitiva era possível reconhecer uma determinada garantia jurídica à Posse após certo interstício de tempo, fundamentada no instituto jurídico da “usus auctoritas” (uso com autoridade), como se dono fosse.

É incontroverso que os romanos criaram e aprimoraram a usucapião. Justiniano, ao ascender ao poder, unificou a prescrição aquisitiva e o instituto “usus auctoritas” fazendo nascer a usucapio. Assim como, estendeu-o aos estrangeiros e aos bens provinciais. Determinou que o Usucapião dos imóveis se operasse em dez anos entre os presentes, e, em vinte anos, entre ausentes; que o dos móveis se verificasse em três anos. Criou ainda a prescrição extraordinária (praescriptio longissimi temporis), de trinta anos para os móveis e imóveis em geral; e, de quarenta anos para os bens do Estado e da Igreja, a princípio imprescindíveis.

No Brasil, a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850 foi a primeira norma a tratar da usucapião, tendo sido sancionada por D. Pedro II, também conhecida como Lei de Terras. Posto que, havia interesse social e político do governo imperial em disciplinar questão da posse e da prescrição.

O primeiro Código Civil brasileiro, de 1916, obra de Clóvis Beviláqua, disciplinava o Usucapião em vários artigos dentre os quais destaca-se o artigo 530, in verbis:


Adquire-se a propriedade imóvel:

I - Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel.

II - Pela acessão.

III - Pelo Usucapião.

IV - Pelo direito hereditário.

(Norma revogada pelo Código Civil de 2002 - Lei 10.406, de 10-01-2002)

Por sua vez, a Lei nº. 2437/55 trouxe alterações aos comandos normativos que dispunham sobre a Usucapião, quais sejam, os artigos 550, 551, 619 e 698, todos do corpo legislativo supracitado. A principal inovação foi a diminuição dos prazos prescricionais, o que gerou grande controvérsia jurídica na época, tendo o Supremo Tribunal Federal pacificado a questão com a edição da Súmula 445.

Na sequência, o legislador constitucional, na Carta de 1934, previu usucapião pro labore, em outras palavras, a usucapião especial rural, que tinha como finalidade fixar o homem no campo, aplicando o princípio da função social da propriedade, ainda que de forma tímida.

Art. 125/CF1934 - Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

(Norma revogada)

Hodiernamente a carta política brasileira, contempla expressamente duas hipóteses de Usucapião, quais sejam, os especiais urbano e rural, respectivamente nos artigos 183 e 191, que por via oblíqua funcionam como verdadeiros princípios-vetores para todo arcabouço jurídico atual, que prevê diversas modalidades de Usucapião.

É inegável que o instituto da usucapião vem evoluindo com o decurso do tempo, foram criados procedimentos específicos para usucapião, como por exemplo, lei nº. 10.257 de 10 de julho de 2001, Estatuto das Cidades, que disciplina a política urbana brasileira. Outrossim a lei nº. 12.424 de 2011, que trata do Programa Minha Casa Minha Vida e da regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, devendo-se frisar a importância do artigo 1.240-A que instituiu a usucapião pro família, que busca tutelar a mulher e a unidade da familiar. Além do usucapião extrajudicial, criado recentemente, dentre outras modalidades.

Contudo, há questões inerentes a prática processual que mitigam sobremaneira os efeitos da evolução do direito material, inobstante a cristalina vontade do legislador em tornar mais célere a aplicação direta do instituto da usucapião, o que prestigiaria a função social da propriedade e promoveria a pacificação social.

Passa a esclarecer, cabe ao direito material a atribuição de bens e garantias na vida das pessoas, além de definir o dever ser, regras de convivência e conduta para a sociedade. Entretanto, para sua concretização o Estado impõe uma série de critérios, ritos e normas que funcionam em conjunto, formando um arcabouço instrumental solene destinado aos operadores do direito.

As normas instrumento são e devem ser o meio processual para efetiva aplicação das regras substantivas em todas as hipóteses previstas nestas. Logo, as soluções para os anseios da sociedade estão no direito material e os meios de impô-las estão no direito processual.

No ordenamento jurídico pátrio, em relação à ação de Usucapião, existe um descompasso entre o direito substantivo e sua aplicação em concreto por força das normas processuais. Inevitavelmente, este fato ocasiona prejuízos para o prescribente, para a sociedade e para o próprio Estado.

Na prática, o direito processual impõe ao jurisdicionado uma série de exigências que inviabilizam a aplicação do direito material. Ainda que, malferindo as diversas leis que disciplinam o assunto, além de comandos e princípios constitucionais, tais como, função social da propriedade, direito à moradia, acesso à justiça e dignidade humana; apesar destas ultimas serem normas hierarquicamente superiores que as leis instrumentais.

Neste sentido, em regra as normas que instituem modalidades de Usucapião, trazem em seu texto legal os requisitos autorizadores do instituto, em cada caso específico. Bastando ao prescribente atender a todos os pré-requisitos para adquirir a propriedade do bem ou outro Direito Real pleiteado. Para exemplificar, passaremos a tratar sobre a usucapião especial urbano que tem como requisitos para a concessão: a) a posse pacífica, contínua e pessoal, para sua moradia ou de sua família; b) o decurso do tempo de 5 anos; c) intenção de ser dono, de ter a coisa para si; d) imóvel deve ser usucapível; e) área urbana não superior a duzentos e cinquenta metros quadrados f) o usucapiente não pode possuir outro imóvel urbano ou rural. Dessa forma aquele que atender aos requisitos supralistados automaticamente adquire a propriedade.

A ação de Usucapião é declaratória de um direito preexistente, não tendo, caráter constitutivo, uma vez que a Usucapião se consubstancia desde o momento em que o usucapiente consegue reunir todos os requisitos estabelecidos na lei para esse fim. Dentre esses requisitos não se encontram nem a sentença nem o seu registro, pois a primeira simplesmente declara um direito preexistente (aquisição da propriedade ou de um Direito Real pela Usucapião, por parte do prescribente) e o segundo serve para dar publicidade à aquisição originária operada pela Usucapião, resguardando a boa-fé de terceiros, possibilitando, por parte do usucapiente, o exercício do jus disponendi e assegurando, ainda, a continuidade do registro.

Noutro ponto, a aquisição originária do direito de propriedade, característica da Usucapião não permitiria que o pedido judicial tivesse natureza constitutiva. Posto que, seria o mesmo que reconhecer período a posse do proprietário anterior e operar suposta transmissão de direitos. A aquisição pelo Usucapião é originária e independente de qualquer transmissão. Daí a ultratividade do comando sentencial, que retroage até o início da posse do usucapiente, desconstituindo a matrícula anterior, bem como todos os gravames e ônus existentes sobre ela.

Nesta toada, vele frisar que o decisum declaratório da usucapião gera efeitos erga omnes, isto é, faz coisa julgada oponível contra todos, valendo de modo integral, o que se revela uma condição essencial para o direito de propriedade o que se implementa com a nova matrícula que será registrada. Por impulso, ostenta eficácia direta e indireta, para melhor esclarecimento, a eficácia direta de uma sentença vincula, unicamente, as pessoas que foram partes no processo. Já a eficácia indireta é ampla, opõe a força do comando judicial em face de todos.

A prolação da sentença, com seu trânsito em julgado, faz surgir o efeito da coisa julgada material; trazendo assim, estabilidade, certeza e segurança jurídica para o estado de fato, eliminando toda e qualquer dúvida sobre o domínio do bem.

A decisão que declara o domínio, direito preexistente, é documento hábil a ser registrado no cartório de registro de imóveis da circunscrição e seus efeitos retroagem à propositura da ação. A realização de tal ato, qual seja, registrar a sentença de Usucapião, opera diversos efeitos práticos, a saber: a) transmissibilidade do domínio a terceiros, bem como dispor do bem de outras formas; b) publiciza o ato; c) acrescenta o bem usucapido ao patrimônio do usucapiente; d) agrega valor econômico a propriedade pela existência do título.

Contudo, na prática, para obter a “declaração” da propriedade pelo poder judiciário o jurisdicionado deverá satisfazer diversos pré-requisitos de caráter formal e processual, muitas vezes suprimindo o direito pré-constituído, segundo o direito material. Exigências, dentre outras: a) planta georeferenciada, elaborada por engenheiro inscrito no CREA (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura); b) ART (Anotação de responsabilidade técnica); c) memorial descritivo; d) overlay da prefeitura (imóveis urbanos); e) cópias da planta e do memorial para todas as partes do processo; f) certidão expedida pelos cartórios de imóveis relacionada ao imóvel usucapiendo; g) certidão expedida pelos cartórios de imóveis em relação ao usucapiente (dependendo do tipo de Usucapião). Em regra, indispensáveis a propositura da ação, guardada a adequação para cada espécie do Instituto. Em consequência, os custos elevados, a saber, a) contratação de engenheiro; b) pagamento de taxa para emissão da ART ; c) certidões nos cartórios de registro de imóveis; d) cópias; e) transporte para órgãos e escritório dos profissionais; f) tributos; g) reconhecimentos de firma e autenticação de documentos; h) publicações; i) contratação de advogado, e etc.

Em resumo, sabe-se que grande parte do povo brasileiro não pode arcar financeiramente com os elevados custos para e com o processo, o que inviabiliza a aplicação do instituto. Noutro ponto, muitas ações de Usucapião se perpetuam no tempo, fazendo volume nas prateleiras e nas estatísticas negativas de produtividade dos tribunais, dada morosidade e ineficiência estatal. Tudo isso somado a dificuldade no acesso à justiça.

ALEXANDRE BARBOSA COSTA, advogado, fundador do Escritório Alexandre Costa Advocacia, Esp. em Direito e Processo Civil; Direito Médico e da Saúde.
Fonte: Artigos JusBrasil

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