A avaliação das consequências da atual e inédita situação vivenciada globalmente pela humanidade consistiria em perigoso exercício de futurologia. Se, por um lado, não se pode admitir que o remédio venha a matar o paciente, por outro, também pode ser danosa a demora na adoção de medidas.
Nesse contexto, ganha especial relevância o Projeto de Lei do Senado n. 1.179/2020, de autoria do Senador Antonio Anastasia, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).
As alterações propostas correspondem, em sentido geral, às necessidades de segurança jurídica e estabilidade nas relações, especialmente em um momento de dúvidas e incertezas1.
Aspecto importante que merece ser destacado é justamente o acertamento federativo que a possível norma trará, desestimulando eventuais investidas – inconstitucionais, diga-se – dos Estados em legislar sobre direito privado. Não é demais lembrar que a competência para legislar sobre direito civil, comercial ou processual é privativa da União (art. 22, I, da Constituição de 1988).
Nesse mesmo sentido, o afastamento dos prazos prescricionais permite a concentração das atenções nas questões mais urgentes, sem prejuízo da possibilidade de se resolver o conflito no futuro. O projeto de lei responde, assim, aos problemas suscitados por Rodrigo Mazzei e Bernardo Azevedo2.
Outro aspecto relevante diz respeito à possibilidade de realização de reuniões remotas (seja em condomínios edilícios ou para assembleias de pessoas jurídicas). Para além da prevenção sanitária, novas modalidades decisórias serão incorporadas à vida do brasileiro e esse movimento tende a se consolidar com o retorno à normalidade.
A saudação de algumas medidas, todavia, não significa que alguns pontos não possam ser objeto de discussão e estejam a exigir melhor reflexão.
Em tempos de crise, se a paralisia não é desejada, igualmente não se deve ceder à tentação da busca de soluções gerais em momento no qual os efeitos humanitários da pandemia (inclusive os econômicos) ainda são totalmente imprevisíveis. Nesse cenário, a tomada de decisões precipitadas (seja no nosso próprio dia a dia, seja legislativamente), muitas vezes replicando comportamentos e regras adotadas para equacionar problemas que emergiram em outros tempos e sem ponderações sobre suas repercussões futuras, pode ser mais danosa que a própria inação momentânea. Crises sempre são fontes de problemas que, embora possam parecer semelhantes, são em verdade absolutamente novos, pois se revelam em uma sociedade que já não é mais a mesma da anterior. Logo, novos problemas exigem para sua solução também novas estratégias.
São tempos de muita serenidade e prudência e, diante da completa imprevisibilidade dos efeitos da pandemia que serão globais, soluções traçadas de lindes fixos podem ser um futuro grande problema.
A partir dessa premissa, merece cuidadosa atenção o artigo 7º do Projeto que define os efeitos da pandemia que não constituiriam “fatos imprevisíveis” para autorizar a rescisão/revisão contratual. São eles: o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário. Essa é a regra que nossos Tribunais, em interpretação às disposições da lei civil, adotaram para resolver as questões contratuais que emergiram, por exemplo, de sucessivos planos econômicos.
O remédio que agora se deseja ministrar é, pois, o mesmo do passado. Foi utilizado com eficiência para equacionar problemas internos oriundos do planejamento governamental. Mas será o remédio genérico adequado para essa crise sem precedentes e cujos efeitos são totalmente incertos e desconhecidos para todo o mundo?
É prudente considerar que a pandemia, que assola todo o globo e tem paralisado os povos e suas economias, alcançará todos os estratos sociais e toda a cadeia produtiva organizada (interna e externa) e as redes contratuais. Assim, haverá uma grande heterogeneidade de situações que exigirão remédios específicos, alguns que ainda sequer foram concebidos e precisam ser analisados caso a caso. Pode ser que remédios antigos e genéricos não sejam os melhores para tratar adequadamente os efeitos que serão variados. Cada um de nós, e por conseguinte o próprio Direito, terá um grande desafio pela frente e precisa estar aberto, inclusive para pensar novos caminhos para reconstrução da sociedade e das relações pós-pandemia.
É a partir dessa diretriz que o presente texto se volta à discussão do Capítulo VI do Projeto de Lei, que trata Das Locações de Imóveis Urbanos.
Já foi noticiada a retirada do Projeto, ainda no Senado, da previsão do art. 10, que contemplava a possibilidade de suspensão do pagamento de alugueres vencíveis entre 20 de março e 20 de outubro de 2020, nas locações residenciais, quando os locatários sofressem alteração econômico-financeira decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração.
A solução originária seria o parcelamento dos valores não pagos, adicionando-se o percentual de 20% dos alugueres vencidos à prestação mensal a partir de 30 de outubro de 2020. Ou seja, os inquilinos poderiam ter que pagar, se optassem pelo exercício do direito protestativo previsto na lei, parcela que poderia corresponder a mais que o dobro do valor originariamente pactuado, durante vários meses (20% do total de dívida, que poderia chegar a sete meses). Tal situação traria em si o risco de não resolver o problema, mas adiá-lo, possivelmente em condições mais gravosas. Além disso, a solução não atenderia ao anseio de redução de demandas, uma vez que não se mostraria mecanismo efetivo para a solução do conflito, mas somente levaria a seu adiamento.
É preciso ter em mente que, ao contrário das soluções que ampliam prazos, criam direitos ou concedem faculdades, as intervenções no domínio contratual alteram o equilíbrio que havia sido estabelecido pelas partes. Nesse domínio, para alguém ganhar, o outro terá que perder.
O pano de fundo da crise pela qual se atravessa não parece favorável à adoção de antigas soluções, como já destacado. A novidade e a magnitude dos problemas que se apresentam demandam a análise cuidadosa da racionalidade e da proporcionalidade das medidas. O quadro atual não é indicativo de que, em todos os domínios, alguém tenha perdido para o outro ganhar. Pelo contrário, os indícios são de que todos irão perder. É preciso, mais do que nunca, confiar na capacidade do ser humano de se organizar e adotar medidas que apelem ao senso de solidariedade para resolução dos conflitos, em vez de adiá-los.
Por isso, questiona-se a conveniência de manutenção também do art. 9º do referido Projeto, que veda a concessão de liminar de desocupação de imóveis urbanos em ações de despejo até 31 de dezembro de 2020. Isso significaria que o inquilino não poderia ser despejado por falta de pagamento até o final deste ano, independentemente de qual seja a razão da inadimplência. Ocorre que, sem pagamento e extinção do vínculo, os problemas continuam e deverão ser solucionados no próximo ano. Só que maiores.
Apesar dos objetivos da medida, questiona-se se seria adequada a adoção de um critério geral para solução de todos os problemas, em locações residenciais e comerciais. O perfil do locador imobiliário brasileiro não é uniforme. Podem sim ser sociedades patrimoniais, potencialmente mais resistentes à falta de pagamento, mas podem ser também pessoas que fizeram da aquisição de imóvel um meio de poupança, incluindo idosos que têm na locação sua garantia de subsistência. Também estariam sujeitos à regra os locatários de quartos ou os ocupantes de habitações coletivas multifamiliares? Como aplicá-la nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center? Não é possível fazer escolhas gerais quando todos importam.
A opção legislativa não parece sinalizar em favor da solução consensual, que poderia incluir a redução de valores, a suspensão temporária dos pagamentos ou a repactuação de prazos, uma vez que concederia ao inquilino posição de primazia que o desestimularia a negociar. O remédio estaria, assim, na contramão dos avanços por que tem passado a sociedade brasileira diante dos estímulos à emancipação e ao empoderamento dos indivíduos na busca de tratamentos mais adequados ao conflito, por meio dos métodos consensuais. A crise decorrente da pandemia talvez possa ser o momento de avançar no sentido da consolidação desses métodos e busca de sua maior eficiência.
Não se pode esquecer que, apesar das restrições à liminar de despejo, não há suspensão da obrigação: a dívida existe e é exigível. Eventual despejo que não tenha ocorrido poderá voltar em seus contornos plenos no próximo ano, quando a dívida será maior e o problema agravado. Por fim, anota-se que a solução não trata dos acessórios da locação, como tributos e despesas condominiais, que poderão recair cumulativamente sobre o proprietário que suportar a inadimplência.
Ainda quanto à inadequação da determinação da proibição genérica de liminares nas ações de despejo, tem-se que várias hipóteses previstas nos incisos do artigo 59 da Lei n. 8.245/91 não guardam qualquer relação com a própria ratio indicada na exposição de motivos do projeto. A título meramente exemplificativo podemos citar o inciso V (a permanência do sublocatário no imóvel, extinta a locação, celebrada com o locatário) e o inciso VI (o disposto no inciso IV do art. 9o, havendo a necessidade de se produzir reparações urgentes no imóvel, determinadas pelo poder público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário, ou, podendo, ele se recuse a consenti-las). Em ambos os exemplos não haveria sentido em se proibir a concessão de liminar em ação de despejo em razão da pandemia, sem que se reconheça que estar-se-ia suspendendo direitos individuais.
Assim, a análise do Projeto no estado atual, quando ainda não é possível avaliar a extensão dos efeitos da crise, não se mostra favorável à adoção de medidas que importem a redução de direitos no âmbito privado por meio da mudança da alocação de responsabilidades nos contratos de locação imobiliária. Em face da impossibilidade de previsão de uma regra geral, a intervenção viável seria aquela que fomentasse as soluções consensuais e a consolidação de redes de solidariedade.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)
1 Cf. https://www.migalhas.com.br/quentes/323252/flavio-tartuce-apoia-pl-que-altera-relacoes-de-direito-privado-mas-defende-ajustes e https://andersonschreiber.jusbrasil.com.br/artigos/827105547/o-projeto-de-lei-de-regime-jurídico-emergencialetransitorio-do-covid-19. Acesso em 1º de abril de 2020.
2 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323091/prescricaoodireito-nao-socorre-aos-que-dormem-eaos-que-se-isolam. Acesso em 1º de abril de 2020.
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Edgard Audomar Marx Neto é doutor em Direito e professor na Faculdade de Direito da UFMG.
Juliana Cordeiro de Faria é advogada; doutora em Direito; e professora na Faculdade de Direito da UFMG.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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