Texto de autoria de Luiz Augusto Haddad Figueiredo
Leis, medidas provisórias, decretos, instruções normativas, resoluções, provimentos, portarias, dentre outros, muitos são os instrumentos jurídicos que têm sido adotados como suporte ao combate à disseminação do coronavírus e com a intenção de atenuar os reflexos danosos daí advindos para a economia e a sociedade em geral.
A pandemia de covid-19 tem levado à imposição de medidas de isolamento social e quarentena mundo afora, as quais acabam por impactar, consideravelmente, as atividades e o cotidiano de empresas, pessoas e instituições em geral.
No Estado e cidade de São Paulo, por exemplo, foram editados pelo governador e pelo prefeito, respectivamente, o decreto 64.881, em 22/3/2020, e o 59.298, em 23/3/2020, com o propósito de restringir, temporariamente, o acesso presencial de público a estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, excetuados aqueles voltados a atividades definidas como essenciais.
Igualmente, por autorização das autoridades judiciárias competentes, os serviços notariais e de registro tiveram seu funcionamento afetado mediante suspensão ou redução de atendimento presencial, implantação de regime de plantão, prática de atos por meio virtual ou remotamente (telefone, e-mail, WhatsApp, Centrais Eletrônicas etc.), rodízio de funcionários e suspensão de alguns prazos.
Durante o plantão, o tráfego de documentos físicos é admitido através dos Correios ou mensageiros, desde que mantido o devido controle de recebimento e devolução. Em caso de atendimento presencial, uma série de medidas de prevenção à infecção devem ser observadas.
É possível, ainda, a transmissão eletrônica de títulos e documentos nato-digitais e daqueles digitalizados com observância dos padrões técnicos, inclusive nos moldes do decreto Federal 10.278/2020 (ressalvada eventual exigência quanto à posterior apresentação do original).
Salvo algum tratamento particular decorrente da competência normativa das Corregedorias locais, estas são as diretrizes gerais constantes dos Provimentos 91/2020 e 94/2020 expedidos pela Corregedoria Nacional de Justiça, órgão integrante do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), assim como, em território paulista, dos Provimentos 07 e 08 de 2020 oriundos da Corregedoria Geral de Justiça, órgão responsável no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado1.
As novas regras, cuja vigência é temporária e vinculada à situação emergencial de saúde, atingem, sobretudo, os usuários das Serventias Extrajudiciais, especialmente no que diz respeito aos prazos para a prática dos atos cartoriais.
Tanto é que as normas editadas versam sobre o assunto (ex.): No âmbito da CGJ/TJSP, previu-se, inicialmente, a contagem em dobro (com pontuais exceções) para prazos "de validade do protocolo, de qualificação e de prática dos atos notariais e de registro" (art. 2º do Prov. CG 07/2020) e, em seguida, estipulou-se que os prazos relativos a atos de notas e registro não terão curso "durante o período de suspensão do expediente" (art. 2º do Prov. CG 08/2020).
Neste contexto, uma importante questão se coloca: Como fica o andamento dos prazos de validade do registro e de carência de empreendimentos objeto de incorporação imobiliária, previstos expressamente nos arts. 33 e 34 da lei 4.591/1964 (combinado com o art. 12 da lei 4.864/1965)?
O poder-dever normativo do Poder Judiciário acerca da fiscalização, organização e disciplina dos serviços delegados de cartório encontra amparo nos arts. 103-B, § 4º, III, e 236, § 1º, da Constituição Federal, mas está limitado aos contornos estabelecidos por lei.
Isto significa que, como normas administrativas infralegais, estas podem buscar aperfeiçoar o sistema, harmonizar procedimentos e conferir a melhor interpretação à legislação, a fim de proporcionarem eficiência e segurança jurídica na prestação dos serviços aos usuários.
Na dicção do inciso XIV do art. 30 da lei 8.935/1994, os notários e oficiais de registro devem observar as normas técnicas fixadas pela autoridade judicial competente.
Portanto, as regras contidas nos aludidos Provimentos não podem contrariar, modificar ou inovar a lei, ou seja, não poderiam, em princípio, dilatar os referidos prazos da Lei de Incorporações Imobiliárias.
Ocorre que, na prática, o regular cumprimento de prazos, notadamente quanto a exigências formuladas em notas devolutivas, resta prejudicado por circunstâncias de força maior, como reconhecido nos Provimentos 91 e 94 da CNJ (arts. 2º e 11, § 2º, respectivamente).
Note-se que o citado Prov. 91 menciona suspensão de "prazos legais dos atos submetidos ao notário, registrador ou responsável interino pelo expediente".
Ainda que se possa argumentar que o prazo da lei suspenso está circunscrito a ato a ser realizado pelo delegatário, o fato é que o prazo referente a ato de incumbência do usuário também foi atingido indiretamente (a validade do protocolo e o período para qualificar refletem no tempo para cumprir exigências) ou, até, de modo direto, como deixa transparecer o parágrafo único do art. 2º do Prov. CG 07/2020, ao elencar as hipóteses não sujeitas a prorrogação de lapso temporal.
Mesmo assim, seria arriscado concluir que houve extensão do prazo de validade do registro de incorporação já efetuado.
No entanto, a revalidação do registro, legalmente admitida, pode ser impactada pela nova normatização, de maneira a ampliar o prazo total de validade ora examinado, o que, em tese, poderia repercutir no prazo de carência concedido ao incorporador para desistir do empreendimento, a depender das condições estipuladas no memorial de incorporação (art. 34, § 2º, da lei 4.591/1964).
Isto é, o prazo de carência, normalmente, acompanha o prazo de validade (ou revalidado) do registro da incorporação, como já decidido em processo de dúvida registral apreciada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul2.
Eis aí outra relevante questão: As normas administrativas poderiam definir a forma de contagem dos prazos no campo registral?
Em relação ao prazo de carência propriamente dito, cuida-se de mecanismo destinado a mitigar os riscos quanto à inviabilidade econômico-financeira do empreendimento (o futuro insucesso e os prejuízos daí derivados), sendo útil a todas as partes envolvidas no negócio: incorporador, construtor, adquirentes, terrenistas e agentes financiadores.
Neste período de carência, a rigor improrrogável (§ 6º do art. 34 da lei 4.591/1964), é lícito ao incorporador desistir de levar adiante a incorporação quando presentes certas condições, desde que assim declarado e regulado no memorial arquivado junto ao Registro de Imóveis. Em tal hipótese e sob as penas da lei, após denunciada e averbada a desistência, deverão ser restituídas aos pretendentes à aquisição de unidades as quantias por estes desembolsadas.
Contudo, no atual momento, vale lembrar apenas a título exemplificativo, os Decretos municipal e estadual de São Paulo impedem a abertura de estandes de vendas ao público, como divulgado por entidades empresariais do setor imobiliário (Abrainc e Secovi-SP)3.
Esta e outras restrições, acrescidas aos demais percalços socioeconômicos resultantes do estado de calamidade pública, alteram a velocidade de venda dos imóveis, a despeito de haver outros canais de oferta disponíveis (internet etc.). É o que sinaliza, inclusive, recente pesquisa apurada entre empreendedores dos setores imobiliário e turístico (Adit Brasil e Grupo Prospecta)4.
Ora, se a lógica de existir um prazo de carência é justamente ter a chance de mensurar, com enfoque especial, a adesão à comercialização das unidades integrantes de um empreendimento, resta evidente que o alcance desta finalidade sofrerá distorções diante da nova realidade surgida.
Além disso, há outros aspectos que podem afetar, notadamente num cenário de pandemia, a análise de viabilidade de uma construção em sua fase inicial: escassez ou aumento excessivo dos custos de material e mão de obra, conjuntura econômica, interferências no ritmo das obras, disponibilidade de equipamento e maquinário etc.
Estas circunstâncias fáticas indicam que a natural fluência do prazo de carência, no contexto ora vivido, pode acabar por frustrar a utilidade deste mecanismo legal de proteção ao mercado.
Assim, sem prejuízo das ponderações já suscitadas a respeito da dilação de prazos na esfera correicional, seria apropriado (e juridicamente mais seguro) a edição de medida provisória destinada a permitir a temporária suspensão dos prazos de validade do registro e de carência de empreendimentos objeto de incorporação imobiliária, dando adequado tratamento a uma situação igualmente atingida pelas negativas consequências provocadas pela crise atual.
Cuida-se de providência coerente com tantas outras já adotadas, tais como: a). a Resolução 152/2020 do Comitê Gestor do Simples Nacional, que estipula novas datas para pagamento de tributos federais no âmbito daquele regime; b). a Portaria Conjunta RFB/PGFN 555/2020, que prorroga a validade de certidões negativas e positivas com efeitos de negativas de débitos; e c). a MP 927/2020, que diferiu o recolhimento de FGTS, facultando o pagamento parcelado livre de encargos.
Isso permitiria, a um só tempo e com segurança jurídica, o desenvolvimento racional de uma atividade tão importante para a sociedade (moradias, empregos, tributos etc.), com a adequada proteção aos adquirentes de imóveis, preservando, enfim, a saúde do mercado imobiliário.
Luiz Augusto Haddad Figueiredo é mestre em Direito pela PUC/SP. Membro do IBRADIM. Advogado e sócio do escritório Tavares, Haddad e Vanetti Advogados Associados.
__________
2 "REGISTRO DE IMÓVEIS. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. PEDIDO DE REVALIDAÇÃO DE REGISTRO DE INCORPORAÇÃO E PRAZO DE CARÊNCIA. Inexistindo vedação legal, é legítimo o interesse do incorporador em cancelar a incorporação. Ao revés, a própria lei de regência (Lei n º 4.591/64, artigos 32, alínea 'n', 33, 34 e seus parágrafos e art. 36), autoriza a revalidação do prazo de registro do empreendimento. Diante do caso concreto, revela-se viável a revalidação do prazo de registro da incorporação, bem como de prorrogação do prazo de carência, pois, na espécie, a incorporação se concretiza ou se efetiva quando: 1) vencido o prazo de carência, sem denúncia da incorporação ou pedido de prorrogação; 2) as condições de mercado resultarem na comercialização de um número mínimo razoável de unidades autônomas a sustentar o custo inicial do empreendimento, bem como sinalizar o sucesso de sua integral realização. DÚVIDA JULGADA IMPROCEDENTE. UNÂNIME." (TJRS, 18ª Câm. Cível, Apel. 70014283279, rel. Des. Mario Rocha Lopes Filho, j. 24.8.2006).
3 Disponível aqui. Acesso em 30/3/2020.
4 Disponível aqui. Acesso em 30/3/2020.
Fonte: Migalhas dos leitores
Nenhum comentário:
Postar um comentário