quarta-feira, 22 de abril de 2020

O REAJUSTE DE ALUGUEL PREVISTO EM CONTRATO PODE TORNAR-SE INEXIGÍVEL SE NÃO COBRADO OPORTUNAMENTE


É muito comum, em contratos de locação, a previsão do reajuste do valor do aluguel após o um certo período, mediante a aplicação de determinado índice de correção monetária, normalmente o Índice Geral de Preços - Mercado (IGP-M), do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE).

Há ainda contratos que preveem um aluguel progressivo no tempo, ou mesmo uma alteração significativa na forma de cálculo do mesmo, após alguns meses (isso acontece com certa frequência em locações de espaços em shoppings centers).

Sem embargo, o locador ou a imobiliária que administra o contrato por vezes deixa de cobrar o reajuste previsto, mesmo depois que esse se torna exigível, apercebendo-se do equívoco somente muitos meses (às vezes anos) mais tarde.

Diante disso, a questão a ser enfrentada neste brevíssimo estudo é: os acréscimos provenientes do reajuste do aluguel, previsto em contrato, que não foram cobrados nos respectivos vencimentos, podem ser cobrados ulteriormente?

Antes de tudo, é importante observar que a pretensão de cobrança de débitos de aluguéis se sujeita a prazo prescricional diferenciado de três anos, a teor do artigo 206, § 3º, inciso I, do Código Civil brasileiro:

Art. 206. Prescreve: [...]
§ 3º Em três anos:
I - a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos; [...]

Assim, apenas sob o enfoque prescricional, seria possível a cobrança posterior das diferenças geradas pela não aplicação dos acréscimos, ou pela não alteração da forma de cálculo, a aluguéis vencidos há menos de três anos, posto que os anteriores estariam prescritos.

Todavia, além da prescrição, há outra importante circunstância a considerar: o possível comprometimento da exigibilidade do débito, em razão das expectativas despertadas no locatário à vista da conduta do locador que tenha, reiteradamente, cobrado o aluguel sem o reajuste previsto em contrato. Vejamos:

Sabe-se que o exercício de direitos subjetivos está sujeito a uma série de limitações, como a própria prescrição, já mencionada, e também a regra da vedação à autotutela, conduta que o Código Penal tipifica como delito de Exercício arbitrário das próprias razões (art. 345).

Dentre essas limitações, ocupa lugar de destaque a vedação ao abuso de direito, que ocorre quando o sujeito, embora cumpra todos os requisitos lógico-formais para exercitar um direito, o faz com violação aos valores que justificam o reconhecimento desse mesmo direito pelo ordenamento jurídico[1].

A proibição ao abuso de direito foi positivada no artigo 187 do Código Civil brasileiro, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

O texto legal enfocado evidencia a íntima conexão entre a teoria do abuso de direito, a função social dos direitos e a boa-fé objetiva, esses princípios jurídicos que se pode extrair de vários dispositivos legais, dentre os quais o art. 421 e 422 do Código Civil, assim vazados:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. [...]
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Na primorosa lição de Teresa Negreiros, “O princípio da boa-fé e a teoria do abuso de direito complementam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular, e nesta medida abusivo, se consubstanciar quebra de confiança e frustração de legítimas expectativas”[2].

Tudo isso posto, ao ver os aluguéis serem cobrados por vários meses sem o reajuste previsto no contrato, ou sem a alteração do método de cálculo, é razoável que o locatário passe a crer que tais acréscimos ou modificações foram dispensandos pelo locador, tornando-se abusiva a cobrança posterior do valor equivalente a eles, justamente por implicar a quebra de uma expectativa legítima criada no locatário, por conduta omissiva prolongada do locador.

Esse foi o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em ao menos dois julgados, cujas ementas seguem parcialmente transcritas:

[...] 2. Cinge-se a controvérsia a definir se, não tendo exercido o direito de reajustar os aluguéis durante o período de 5 (cinco) anos, com base em cláusula contratual expressa, pode o locador exigir o pagamento de tais valores, inclusive de retroativos, após realizada a notificação do locatário. 

[...] A supressio decorre do não exercício de determinado direito, por seu titular, no curso da relação contratual, gerando para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação

[...] 7. No caso, a solução que mais se coaduna com a boa-fé objetiva é permitir a atualização do valor do aluguel a partir da notificação extrajudicial encaminhada ao locatário e afastar a cobrança de valores pretéritos.

8. Recursos especiais não providos.
(REsp 1803278/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/10/2019, DJe 05/11/2019) 

[...] 5. O princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título da diferença, que sempre foram dispensados, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual pela recorrida.

6. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 1323404/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 05/09/2013)

Vê-se que, no julgado mais recente, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Corte considerou que seria abusiva a cobrança dos valores equivalentes aos acréscimos não aplicados aos aluguéis já vencidos, porém reconheceu como legítima a aplicação prospectiva dos reajustes aos aluguéis vincendos, solução que nos parece a mais adequada, eis que seria exagerado considerar que a conduta reiterada do locador teria provocado a completa aniquilação da cláusula de reajuste.

De mais a mais, é prescindível a apuração de culpa ou dolo do locador pela omissão que deu causa à expectativa do locatário, já que o princípio da boa-fé impõe deveres objetivos de conduta, que se anexam àqueles explícitos no contrato, cuja violação gera consequências jurídicas, mesmo diante da ausência de culpa do contratante que o fez.

A propósito, vale a pena observar os enunciados 24 e 37 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:

Enunciado 24
Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.

Enunciado 37
A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

Assim, não deve prosperar, por exemplo, a alegação de que o locador é analfabeto, e portanto nem sequer sabia que o contrato previa o reajuste dos aluguéis; ou, v.g., de que o locador faleceu e os herdeiros custaram a ter acesso ao instrumento contratual, de cujo conteúdo somente depois se inteiraram. A ausência de culpa do locador pela não aplicação do reajuste é desimportante.

Registro ainda ser insuficiente para afastar a abusividade desse tipo de cobrança tardia a simples existência de cláusula que estabeleça que a eventual omissão na cobrança de encargos contratuais não impedirá o locador de fazê-lo depois. Esse tipo de disposição, muito recorrente nos contratos de locação (até porque presente em vários modelos genéricos disponíveis na internet), não pode se sobrepor à realidade, afinal, na maior parte dos casos, não será a existência dessa cláusula que impedirá a criação de legítimas expectativas no locatário, baseadas no comportamento reiterado do locador, ao qual se deve atribuir relevância muito maior, quando se examina esse tipo de questão.

A confirmar esse raciocínio, o inciso I do § 1º do artigo 113 do Código Civil, incluído pela Lei nº 13.874 de 2019, dispõe que o comportamento das partes, após a celebração do contrato, deve balizar a interpretação do negócio:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) [...]

É claro que, no caso concreto, pode haver circunstâncias que descaracterizem a abusividade da cobrança, como, por exemplo, a manifestação posterior do locatário se dizendo ciente do débito oriundo da não aplicação do reajuste aos aluguéis já pagos.

Por tudo o que se disse, é importante que os locadores de imóveis se mantenham atentos às condições do negócio, durante toda a sua execução, para que não vejam os seus direitos perecerem em razão de sua inércia.

[1] CARPENA, Heloísa. O abuso do Direito no Código de 2002: relativização de direitos na ótica civil-constitucional. In A parte geral do Novo Código Civil. 2ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 381.

[2] NEGREIROS, Teresa. Teoria dos contratos. 2ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 141

Yago de Carvalho Vasconcelos - Advogado; Bacharel em Direito pelo Instituto Camillo Filho, Teresina-PI. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela LFG, e em advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial pela UNISC.
Fonte: Artigos JusBrasil

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