O desenvolvimento urbano, combinado à necessidade de aproveitamento máximo do espaço e ao crescimento da atividade empresarial de incorporação imobiliária, tem suscitado riqueza de discussões jurídicas em torno dos condomínios edilícios. Embates vários já emanavam com frequência de sua composição mista, concebida pela justaposição entre, de um lado, a propriedade individual e exclusiva da unidade autônoma, e, de outro, a propriedade coletiva sobre as partes comuns, que efetivamente o identificam em regime condominial. O sistema de titularidades e a disciplina operacional do condomínio edilício, regulado nos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil (CC), e representado pela simbiose orgânica e indissolúvel da propriedade exclusiva da unidade com a copropriedade das áreas comuns,1 desenvolviam-se e aprimoravam-se de maneira salutar, propiciando a concretização de interesses dos condôminos.
Abruptamente, todos fomos surpreendidos com as consequências devastadoras provenientes da pandemia do novo coronavírus, que impactam os mais diversos setores da vida. Como em várias outras partes do mundo, também no Brasil a recomendação é no sentido de não sair às ruas sem que haja necessidade cabal, visando-se conter, tanto quanto possível, a circulação do vírus e, consequentemente, o colapso do sistema de saúde. A política de distanciamento social se fez sentir sobretudo no regime condominial dos edifícios de apartamentos e similares, construções compostas, muitas vezes, por centenas de unidades, em que os condôminos foram chamados a reorganizar-se e adaptar-se às providências e recomendações de especialistas e autoridades competentes.2
A vida condominial se viu substancialmente afetada pela covid-19, de modo que incrementou-se na pauta a discussão sobre a utilização de áreas comuns, como playgrounds, elevadores, e complexos esportivos, e, de modo ainda mais sensível, intensificou-se o debate acerca dos limites e contornos de restrições à utilização de cada unidade autônoma por seus titulares exclusivos. A rigor, os tempos atuais importam em grandes desafios ao funcionamento dos condomínios edilícios, especialmente no que tange às limitações ao exercício do direito de propriedade, à atuação do síndico e os poderes que lhe são conferidos na administração do condomínio no momento de crise, e à forma de realização das assembleias condominiais, reconhecidamente necessárias a seu bom e democrático funcionamento.
Os impasses e as limitações de ordem física aos espaços cujo acesso era antes quase irrestrito, são responsáveis, no âmbito do condomínio edilício, por ocasionarem comportamentos voluntários e dialogados – e é bom que assim o seja –, mas também repercutem intensamente no Judiciário brasileiro e impulsionam propostas doutrinárias e atos normativos com o escopo de oferecer respostas às contendas atuais. Diante desse cenário, foi aprovado recentemente, no Senado Federal, o projeto de lei 1.179/20, já remetido à Câmara dos Deputados. Essa proposta legislativa versa sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET), dentre as quais se insere a matéria dos condomínios edilícios. O tema tem gerado repercussões no âmbito jurídico, em razão da extensão das competências do síndico, para além das já previstas no art. 1.348, CC.3
Sob essa perspectiva, o art. 11, incisos I e II, desse projeto atribui ao síndico competência para “restringir a utilização das áreas comuns para evitar a contaminação do Coronavírus”, bem como autoridade para “restringir ou proibir a realização de reuniões, festividades, uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos.” Desse modo, por meio de uma comparação entre esses poderes e os elencados, de forma não taxativa,4 no art. 1.348, CC, infere-se que a atuação do síndico de forma autônoma – independente da realização de assembleia – deixaria de constituir-se em ato ordinário de administração, necessário à defesa dos interesses comuns dos condôminos, e passaria a interferir de forma incisiva no exercício do direito de uso das áreas comuns e no âmbito das unidades autônomas, excetuando-se as restrições apenas a casos como “atendimento médico, obras de natureza estrutural ou a realização de benfeitorias necessárias”, conforme destaca o parágrafo único do dispositivo.
O supramencionado projeto regula, ainda, no art. 12, a possibilidade, em caráter emergencial, de realização de assembleia condominial em meio virtual e a viabilidade de prorrogação dos mandatos de síndico vencidos até 30 de outubro de 2020, se restar configurada a inexequibilidade da assembleia de condomínio, fato que, inclusive, já foi reconhecido por decisão judicial.5 O art. 13, por sua vez, reitera o entendimento segundo o qual a prestação de contas é obrigação do síndico, sob pena de sua destituição. Esse dispositivo se mostra desnecessário, na medida em que o art. 1.348, VIII, CC já prevê a necessidade de prestação de contas pelo síndico.6 Parece que o legislador objetivou ratificar que, a despeito das consequências geradas pela covid-19, dentre as quais se insere a inviabilidade de realização de assembleia presencial, o dever prestação de contas permanece imperativo. Vale dizer, da codificação civil já se pode depreender que o síndico deve prestar contas não só na assembleia, como também “quando exigidas”; sendo o art. 13 do projeto, portanto, dispensável.
Em paralelo ao trâmite do PL 1.179/20, o Poder Judiciário é acionado para solucionar diversas demandas envolvendo o exercício de administração, por vezes arbitrário, do síndico, que se pauta no argumento legítimo da necessidade de contenção da propagação do novo coronavírus, mas acaba excedendo suas competências, de modo a restringir, de modo desarrazoado, o exercício do direito de uso das unidades autônomas dos condôminos. A título exemplificativo, merecem destaque dois casos. O primeiro, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, relaciona-se com o pleito de um casal que obteve o impedimento da entrada da babá e da empregada doméstica no próprio apartamento pelo síndico. Como o casal exercia atividade profissional fora de casa e possuía filhos ainda crianças, foi considerado imprescindível o auxílio das trabalhadoras na residência. Ao permitir a entrada da empregada e da babá no prédio, a magistrada enfatizou que, no caso concreto, a proibição de ingresso de empregados no condomínio não era proveniente de uma deliberação em assembleia, mas sim de um ato isolado do síndico, o qual deveria se limitar a regular o acesso às áreas comuns do edifício, e não às unidades autônomas.7
O segundo caso, ao seu turno, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, envolve uma locatária de apartamento, com o contrato ainda vigente, que foi impedida pela síndica de adentrar à unidade autônoma para buscar os seus bens e realizar mudança para outro imóvel. O pleito da autora foi concedido, isto é, ela pôde ter livre acesso ao imóvel e realizar a mudança, tendo em vista que cada condômino, nos termos do art. 1.314, CC, pode usar a coisa conforme a sua destinação e a proibição de mudança “por quem exerce a função de síndico, não encontra amparo em lei”, como destacou a magistrada do caso.8 Diante dessas decisões, é possível constatar que, sobretudo no atual cenário, faz-se imprescindível o exercício da função de síndico de forma valorada axiologicamente em consonância com os valores consagrados no ordenamento jurídico, isto é, espera-se que o síndico exerça sua atividade de forma não abusiva e conforme os ditames da boa-fé objetiva.
Nesse contexto, mesmo perante as repercussões do novo coronavírus, deve-se privilegiar o caráter comunitário das decisões, ou seja, a regra é que ocorram deliberações assembleares e, na sua ausência ou impossibilidade, cabe ao síndico, baseado em normas e orientações do Poder Público, zelar pelas áreas comuns do condomínio, tomando as medidas necessárias e plausíveis para evitar o contágio da covid-19.9 Neste ponto, se as medidas adotadas autonomamente pelo síndico não obtiverem oposições expressas dos condôminos, caberia a aplicação analógica do art. 1.324, CC10 (pertinente ao condomínio voluntário) ao condomínio edilício, razão pela qual os atos de administração do síndico seriam tacitamente referendados pelos condôminos, desde que merecedoras de tutela à luz do ordenamento jurídico.11
Elementar, nesse sentido, que, mesmo diante da atribuição legal de poder diretivo ao síndico no âmbito da limitação do exercício da propriedade (comum ou exclusiva) no condomínio edilício, sua atuação encontre amparo na legalidade constitucional. Imprescindível que se avalie detidamente os vetores de seu comportamento com máxima cautela, com fins de evitar quaisquer atuações discriminatórias ou autoritárias, direcionadas a um ou outro condômino, sob o pretexto de contenção da propagação da pandemia. Como todos os atos jurídicos, também as ações praticadas pelo síndico exigem justificação axiológica, à luz da complexidade normativa do ordenamento,12 em exame acerca de seu merecimento de tutela.
Dessa maneira, não se deve perder de vista a finalidade visada pelo ato restritivo, que necessariamente deve tencionar os interesses objetivos comuns da vida condominial, e se revestir da forma mais dialogada possível. Nessa importante tarefa valorativa, lança-se o intérprete, que terá essencial papel na avaliação ativa e consciente dos atos realizados durante o período da pandemia do novo coronavírus, de maneira atenta aos valores consagrados na tábua axiológica constitucional. Neste desafio, o magistrado apresenta papel fundamental de ponderar os interesses relevantes vislumbrados no caso concreto.
Para tanto, coloca-se à sua disposição a técnica da razoabilidade, não como mero apoio dogmático às impressões subjetivas do juiz, mas sim com base em parâmetros objetivos de aplicação, diante de sua autonomia conceitual, em que figure como “balizador do exame de legitimidade dos interesses em confronto”, para fins de concretizar uma nova segurança jurídica.13 Afasta-se, assim, de um sistema estático, ancorado no silogismo lógico, e associado à técnica da subsunção, insuficiente para solucionar os problemas que se colocam no mundo contemporâneo. A rigor, por mais clara e completa que seja a lei emergencial, não dará conta, ela sozinha, de regular a complexidade de situações multiplicadas de forma exponencial nessa fase crítica.
Necessário dizer que, conquanto benfazeja a edição de lei emergencial a regular, em caráter democrático, as situações em torno do condomínio edilício durante o momento pelo qual se estender a pandemia, garantindo previsibilidade à solução de controvérsias, não se pode olvidar a complexidade do sistema jurídico posto, que já possui institutos e opções suficientemente densas a responder os conflitos que se manifestam. Ilustrativamente, destaque-se os arts. 1.336, § 2º e 1.337, caput e parágrafo único, CC, que possuem forte potencial sancionatório dos condôminos que descumprem os deveres que lhe são atribuídos por norma jurídica, além do inciso IV do mesmo art. 1.336, CC, que prevê como dever do condômino a utilização do condomínio de forma a não prejudicar a salubridade e segurança de todos os possuidores.
O cenário atual, de dimensões jamais experimentadas antes, traz consigo, não se pode negar, desafios de grande magnitude, como os aqui identificados no âmbito do condomínio edilício. Ensejam, contudo, bom momento para, muito além de engendrar esforços em prol de novas soluções, dar azo às respostas sofisticadas que já se podem vislumbrar em nosso complexo sistema jurídico. Além do mais, a situação, de todo preocupante, demanda esforço geral de concretização do princípio da solidariedade, que se faz reconhecer em soluções consensuais e dialogadas, como também no afastamento de oportunismos e discricionariedades em tempos de crise.
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1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 166, cujo autor foi responsável pela elaboração da lei 4.591/64 que regulou durante muito tempo o condomínio edilício, tendo sido revogada com o advento do Código Civil de 2002.
2 Ilustrativamente, a portaria 188 do Ministério da Saúde, de 3 de fevereiro de 2020, declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, indicando tratar-se de situação que demanda o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, nos moldes do art. 2º do decreto 7.616/11. Na mesma linha, a lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispôs sobre as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto evidenciado.
3 “Art. 1.348. Compete ao síndico: I - convocar a assembleia dos condôminos; II - representar, ativa e passivamente, o condomínio, praticando, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns; III - dar imediato conhecimento à assembleia da existência de procedimento judicial ou administrativo, de interesse do condomínio; IV - cumprir e fazer cumprir a convenção, o regimento interno e as determinações da assembleia; V - diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores; VI - elaborar o orçamento da receita e da despesa relativa a cada ano; VII - cobrar dos condôminos as suas contribuições, bem como impor e cobrar as multas devidas; VIII - prestar contas à assembleia, anualmente e quando exigidas; IX - realizar o seguro da edificação.”
4 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin (Coords.). Código civil interpretado: conforme a Constituição da República. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, vol. 3, p. 719.
5 Prorrogou-se o mandato de um síndico em decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, sendo ressalvado pela magistrada a necessidade de realização do processo eleitoral se fosse viável a implementação desse procedimento por meio virtual: “De fato, com o atual estado de pandemia, proporcionar um processo eleitoral de sucessão no condomínio seria incompatível com as recomendações de saúde expedidas pelas autoridades competentes, em especial com a do isolamento. (...) Logo, em assim sendo, defiro o pedido formulado para prorrogar o atual mandato de gestão do condomínio enquanto durar o estado de pandemia, quando os trâmites de sucessão deverão ser iniciados, em obediência ao estatuto da pessoa jurídica interessada. Destaco que esses mesmos trâmites deverão ser iniciados mesmo em estado de pandemia, se houver possibilidade de promovê-los em ambiente virtual, isto é, sem aglomeração presencial de pessoas - embora se possa pressupor que, atualmente, não é possível proceder dessa forma (caso contrário, a ação sequer teria sido proposta) (TJ/RN. Processo 0812544-89.2020.8.20.5001. Juíza: Thereza Cristina Costa Rocha Gomes. 14ª Vara Cível da Comarca de Natal. Julgamento monocrático em 03.04.20).
6 A crítica também é feita por André Luiz Junqueira: “É plenamente compreensível que o interesse do legislador tenha sido o de ratificar o dever do síndico e que o momento que a sociedade passa não é uma ‘carta branca’ para que ele cometa excessos em nome da prevenção e combate à pandemia. Contudo, entendemos que essa disposição poderá ser interpretada como redução do prazo de prestação de contas ou, pior, que outros deveres do síndico não mais seriam exigidos em tão nebuloso período.” (JUNQUEIRA, André Luiz. Os impactos do PL 1.179 nos condomínios durante o coronavírus. In: Migalhas. Disponível: Clique aqui).
7 TJ/MT. Processo 1014173-08.2020.811.0041. 8ª Vara Cível. Juíza: Ana Paula de Veiga Carlota Miranda. Julgamento em 27.03.20.
8 TJ/SC. Processo n. 5003619-30.2020.8.24.0090. Juíza: Ana Luisa Schmidt Ramos. Juizado Especial Cível do Norte da Ilha dos Santos. Julgamento em 10.04.20.
9 Sobre o tema, v. ANDRÉ, Diego Brainer de Souza. Coronavírus e responsabilidade civil no condomínio. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo et al (Coords.). Coronavírus e responsabilidade civil. São Paulo: Foco, 2020, p. 429 e ss.
10 “Art. 1.324. O condômino que administrar sem oposição dos outros presume-se representante comum.”
11 Nesse sentido, v. BRITO, Rodrigo Toscano; GOMIDE, Alexandre Junqueira. O impacto do coronavírus nos condomínios edilícios: Assembleia e limitações ao direito de uso à propriedade. In: Migalhas. Disponível em: Clique aqui.
12 “Não se pretende confinar as leis especiais fora do sistema: a interpretação sistemática postula valorações que se inspiram nos valores que são o fundamento do ordenamento”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito na legalidade constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 628) Desse modo, ainda que lei especial (ou, aqui, o PL n. 1.179/2020) não traga todas as minúcias que podem surgir no caso concreto, e é natural que assim seja, caberá ao intérprete a função de levar em conta a complexidade do ordenamento e pluralidade de fontes, à luz da unidade desempenhada pelos princípios e garantias constitucionais, para, em ato contínuo e ininterrupto, realizá-la verdadeiramente como normas nos casos concretos.
13 TEPEDINO, Gustavo. A razoabilidade na experiência brasileira. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coords.). Da dogmática à efetividade do Direito Civil: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil Constitucional – IV Congresso do IBDCivil, 2 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 31.
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Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora da clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.
Danielle Tavares Peçanha é mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do escritório Gustavo Tepedino Advogados.
Fonte: Migalhas
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