“Todos somos responsáveis de tudo, perante todos”. A assertiva de Fiódor Dostoiévski nunca se fez tão atual. O mundo está diante da maior crise ocorrida desde a 2ª Guerra Mundial1, em razão da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus. A covid-19 tem gerado milhões de vítimas ao redor do planeta e com a finalidade de evitar um colapso na área da saúde, representantes do Poder Público de diversos países têm implementado medidas para a contenção da propagação da doença. Tais medidas abarcam, a título exemplificativo, restrições na circulação de veículos e de transportes públicos, fechamentos de empresas e lojas que exerçam atividades consideradas não essenciais, restrições à circulação de pessoas nas ruas e, em casos extremos, a determinação de “lockdown” em municípios, cidades e estados. Diante desse cenário, inevitavelmente, tais ações repercutem em diversos setores da sociedade e a multipropriedade não é uma exceção.
A multipropriedade imobiliária, ou time sharing na acepção norte-americana, surgiu, pela primeira vez, na França, e consiste na “relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua.”2 A singularidade da multipropriedade reside, dessa forma, na relação com o tempo, isto é, trata-se de direito de propriedade que incide sobre uma fração espaço temporal. Assim, na multipropriedade o tempo atua como elemento de individualização do bem.
A inserção das operações de multipropriedade, no Brasil, mesmo à mingua de legislação específica sobre a matéria, começou a se desenvolver a partir da década de oitenta.3 Dessa forma, em que pese a insegurança jurídica existente relacionada com esse investimento imobiliário, em razão da ausência de instrumento normativo sobre o tema para orientar questões controvertidas como gestão, execução de dívidas e divisão despesas, a multipropriedade continuou ganhando espaço, com a ampliação do potencial de utilização dos bens imóveis, especialmente em áreas de veraneio ou recantos de férias.4 Além dessas questões controvertidas, não havia consenso acerca da natureza jurídica da multipropriedade, tendo em vista que, para muitos, tal figura jurídica abarcava simultaneamente características de direitos reais e de direitos obrigacionais. O aspecto de direito real se justificaria devido aos poderes exercidos pelo multiproprietário sobre o imóvel. Ao passo que a característica de direito obrigacional guardaria relação com o contrato de aquisição.
Nesse contexto, tem-se o julgamento do REsp 1.546.165/SP como marco jurisprudencial acerca dessa matéria. Nesse julgado, divergiram os Ministros justamente sobre a natureza jurídica da multipropriedade imobiliária, tendo prevalecido o entendimento exarado no voto-vista do min. João Otávio de Noronha, segundo o qual a multipropriedade possuiria natureza jurídica de direito real, porque, nas palavras no magistrado, “com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.”5 A matéria, finalmente, passou a ser regulamentada pelo legislador, por meio da lei 13.777 de 2018, que reconheceu a multipropriedade como unidade autônoma delimitada no tempo e no espaço, com uma matrícula própria no RGI, de modo a proporcionar a segurança jurídica necessária para o implemento de investimentos imobiliários. A lei ainda suscita questões controvertidas na seara doutrina, e diante da atual conjuntura gerada pela pandemia, torna-se relevante a reflexão sobre o tema.
À luz das recentes medidas impostas por entes federativos, sobretudo aquelas incidentes sobre locais turísticos, torna-se possível (e até previsível) que o uso e gozo das frações de tempo de determinados multiproprietários restem simplesmente inviabilizados. Basta pensar em casos de “lockdown”, como o que ocorreu recentemente no Maranhão6, com restrição da entrada e saída de veículos de determinados municípios, admitindo-se apenas a passagem ligada àquelas atividades consideradas essenciais (de abastecimento e saúde). Medidas como essa certamente impactam a possibilidade de que, mesmo sendo proprietário de determinado imóvel (ou de uma fração temporal do mesmo), o titular exerça a posse do mesmo, direta ou indiretamente.
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1 “Pandemia de coronavírus é maior desafio desde a 2ª Guerra Mundial, diz ONU”. Exame. Disponível clicando aqui.
2 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 1.
3 Sobre o desenvolvimento da multipropriedade no Brasil, v. TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, pp. 43-50.
4 Sobre o tema, v. SCHREIBER, Anderson. “Multipropriedade Imobiliária e a Lei 13.777/18”. Carta Forense. Disponível clicando aqui.
5 STJ. REsp nº 1.546.165/SP. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Relator p/ Acórdão: Min. João Otávio de Noronha. 3ª Turma. Julgamento em 26.04.16.
6 O “lockdown” se concretizou a partir de decisão judicial proferida em sede de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado do Maranhão em face do próprio Estado e do Município de São Luis. A íntegra da decisão pode ser consultada em: clique aqui. Acesso em 05.05.20. Casos de “lockdown” também se verificaram no Estado do Pará e do Ceará, envolvendo municípios estratégicos (clique aqui). Acesso em 05.05.20.
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Marcos de Souza Paula é mestre e Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Assessor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Associado do IBRADIM-RJ.
Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.
Fonte: Migalhas
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