terça-feira, 19 de maio de 2020

Moratória dos contratos de locação: a resposta portuguesa para o Covid-19 pela lei 4-C, de 6/4/2020, como um paradigma (in)adequado para a realidade brasileira


Texto de autoria de Bruno Casagrande e Silva, Jânio Urbano Marinho Júnior e Ricardo Alves de Lima

Em dezembro de 2019 a realidade como conhecíamos até então deixou de existir. A OMS declarou que um vírus originado na China tomou proporções de pandemia, com potencial de repetir o efeito devastador da gripe espanhola do começo do século XX, uma das mais mortais pandemias que o mundo já havia experimentado.

José Fernando Simão1, em precisa reflexão, propõe que vivíamos uma Belle Époque – que ele se refere como a Realidade A – que acabou, no Brasil, no dia 11 de março de 2020, quando passamos a viver uma nova realidade, a Realidade B, temporária e fugaz, porém fortemente marcada pelos efeitos da Covid-19 em toda a sociedade, nos diversos ramos contratuais inclusive.

Os efeitos econômicos da paralisação da humanidade são evidentes e dispensam aprofundados estudos para a sua constatação. Os seus efetivos impactos somente serão apurados no futuro, porém há impactos imediatos que já são sentidos por todos. Assim, não tardou a distribuição de processos judiciais, em sua maioria empresariais, visando postergar ou revisitar os contratos até então vigentes no afã de se precaver de eventuais problemas financeiros ou mesmo visando benefícios oportunistas.

Se aqui, no Brasil, ainda estamos discutindo o PL 1.179, de 2020, nossos irmãos portugueses rapidamente declararam estado de emergência, em 18 de março de 2020, e aprovaram a Lei nº 4-C, em 6 de abril de 2020, buscando solucionar alguns dos problemas relativos aos arrendamentos de imóveis habitacionais ou não-habitacionais2, impondo uma moratória contratual indiscriminada aos contratos lá celebrados já aplicável às rendas vencidas a partir de 01 de abril de 2020.

Segundo o artigo 1º da lei 4-C, trata-se de "um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação epidemiológica provocada pela doença Covid-19", que se aplica, em linhas gerais, no caso de arrendamento habitacional, quando ocorrer uma redução da renda familiar do arrendatário superior a 20% e comprometimento percentual dessa renda acima de 35% (artigo 3º).

A moratória, também, é aplicável ao arrendamento urbano não habitacional nas hipóteses do artigo 7º da mesma lei, que se refere basicamente às situações de suspensão das atividades empresárias em razão da COVID-19, podendo, nos termos do artigo 8º, o pagamento ser diferido para depois do término do período emergencial, com o pagamento sendo feito parceladamente, em 12 meses, no grão mínimo de um duodécimo mensal.

O regime excepcional português proíbe a cobrança de mora, de indemnização (multa)e a resolução de contratos, sendo que a caducidade3(fim de vigência)dos contratos de arrendamento urbano habitacional também foi suspensa por 3 meses, para não prejudicar as famílias arrendatárias.

Não se olvide, em primeiro lugar, que a doutrina brasileira já vem defendendo a necessidade de uma lei para estabilizar o mercado e dar tranquilidade ao cidadão. Uma primeira tentativa, como já dito, está se dando no PL 1.179, de 2020, que foi aprovada no Senado Federal e tramita na Câmara dos Deputados em uma espécie de fast track, afastando a concessão de liminar para desocupação em algumas hipóteses, entre elas, o termo do contrato por tempo (artigo 59, §1º, incisos VIII e IX da lei 8.245, de 1991). Sob esse aspecto, não se pode negar a ousadia do legislador português em trazer uma ampla regulamentação do tema em tão breve período.

O projeto brasileiro, que foi originalmente proposto pelo Senador Antonio Anastasia, propunha "suspender, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueres vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020", quando os locatários residenciais eventualmente experimentassem alteração econômico-financeira decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração (artigo 10 do projeto original). Esse dispositivo não consta do texto aprovado no Senado Federal e enviado para a Câmara dos Deputados, mudança que desde já, consideramos positivas, pelos motivos que passamos a tecer.

Já se pode perceber, quer pela solução dada em Portugal, quer pela atual discussão legislativa no Brasil, que a possibilidade de moratória ou mesmo a suspensão parcial do contrato de locação residencial é polêmica4. José Fernando Simão afirma que "a pandemia que gera desemprego ou redução de remuneração não altera o sinalagma contratual e não é motivo (em termos jurídicos) para a revisão contratual", pois não há restrições ao uso do imóvel5.

A par da discussão, o fato é que já se tem notícia de dezenas de decisões judiciais, ora sendo extremamente benevolentes com os locatários, ora adotando uma linha mais restritiva. No caso brasileiro, observando a produção das decisões judiciais organicamente, nos parece que se caminha para uma busca de solução mais casuística, diversamente da opção portuguesa.

Se o problema da moratória irrestrita, adotada por Portugal, parece ser o engessamento da mesma solução frente a situações, certamente diferentes juridicamente, no Brasil, a discussão caminha para uma busca de critérios mais adequados para os diferentes casos assemelhados que já começam a assoberbar o Poder Judiciário, ainda que com muitos equívocos.

À guisa de exemplo de opções equivocadas, com a devida vênia, apresentamos a decisão da 8ª Vara Cível da Comarca de Campinas, em São Paulo, que concedeu medida liminar em favor um restaurante localizado em praça de alimentação de shopping suspendendo o pagamento do aluguel mínimo mensal e do fundo de promoção e propaganda enquanto o shopping permanecer fechado por determinação do poder público6. Note-se, por exemplo, que nesse caso, ainda que se trate de tutela provisória, a magistrada impõe moratória que, se repetida na totalidade de lojistas, pode comprometer a própria existência do shopping como um todo. A situação não seria menos grave que, ao arrepio da realidade atual - onde o diálogo e transação são as melhores soluções aos problemas, a magistrada decide pela não realização de audiência de conciliação por pressupor a impossibilidade de composição consensual entre as partes, sem sequer ouvir a parte ex adversa.

Um ponto que deve ser observado no modelo brasileiro é que as locações residenciais e não-residenciais são influenciadas por princípios diversos do Direito. Enquanto nas locações residenciais são regidas pelo direito fundamental à moradia, oportunamente previsto no caput do artigo 6º da Constituição Federal, a locação não-residencial deve ser analisada à luz do princípio da preservação da empresa.

Portanto, de fato, não parece ser razoável conferir a mesma solução jurídica, de forma indiscriminada, para as locações residenciais, que - como dito - não traz restrições ao uso do imóvel, e para as locações não residenciais, em que o próprio Poder Público impôs restrições duras aos empresários.

Certamente, um aspecto que merece ser considerado na moratória irrestrita é o possível incremento da crise econômica que pode causar (ou que possivelmente ocorrerá) e que não pode ser ignorado pelo Direito brasileiro, até mesmo porque, segundo o artigo 20 da LINDB, atualmente, "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

Sob outro aspecto, não se deve ignorar que a locação residencial se relaciona com o direito constitucional à moradia. Ainda que, de fato, não haja alteração no sinalagma contratual, o Direito não pode desprezar esse aspecto, que parece ter sido considerado pelo projeto de lei ao limitar a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo (artigo 9º). A questão que se coloca, portanto, é se isoladamente esse instrumento processual seria capaz de adequadamente equilibrar as situações econômico-financeiras das partes no contrato de locação.

Em coluna eletrônica, Anderson Schreiber7 aponta aquele que acreditamos ser o melhor caminho a ser seguido no Brasil, a adoção cautelosa na análise do contrato, casuisticamente, observando-se a boa-fé objetiva e o dever de indenizar.

Acreditamos que a medida mais adequada é que, considerando a disponibilidade dos bens tutelados, não seria um modelo semelhante ao português, que – com uma solapada indiscriminada – impôs uma moratória que necessariamente depende de prova de situação fática para ser aplicável, o que com certeza, em razão da nossa cultura negocial brasileira, resultaria no mesmo volume de demandas para comprovação dos fatos questionados perante o Poder Judiciário, gerando uma avalanche processual de mesma intensidade caso a opção fosse pela inércia legislativa.

O incentivo e desenvolvimento da mediação e da arbitragem é a solução que nos parece mais oportuna, buscando, nesse período de instabilidades a busca de um contrato de "soma zero", onde nem locador nem o locatário saiam em posição de vantagem ou prejuízo. Isso somente será possível se os magistrados compreenderem que a mediação é uma solução indispensável, diferentemente da opção que vem sendo adotada em liminares pelo Brasil, e não partirem da presunção de que os contratos de locação não poderão ser cumpridos, onerando apenas os locadores.

Como lembrado por Flávio Tartuce, "chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade"8.

Na busca de uma solução, Flávio Tartuce, José Fernando Simão e Maurício defendem a edição de medida legislativa, tendo efetivamente proposto uma possível emenda ao PL 1.179, de 2020, fixando um pagamento mínimo de 30% do valor devido e parcelando-se o saldo "pelos seis meses seguintes à data do vencimento"9. Propõem, também a possibilidade de extensão da moratória aos empresários individuais, empresas individuais de responsabilidade limitadas e por sociedades empresariais qualificadas como micro empresas e empresas de pequeno porte. O interessante da proposta de Tartuce, Simão e Bunazar – que devemos deixar evidente – é que a base jurídica para fundamentar a opção legislativa já se encontra positivada no Direito Brasileiro, no artigo 916 do Código de Processo Civil, sendo reconhecida a sua plena eficácia e constitucionalidade.

Com as mais devidas vênias, acreditamos que o caminho proposto pelos autores, cuja solução se apresenta em patamares fixos, seja a melhor a ser adotada. Note-se que os próprios autores, cientes das dificuldades que envolvem a casuística, fizeram constar uma norma de salvaguarda do locador, nos seguintes termos: "O juiz deverá levar em consideração a condição econômico-financeira do locador para, se for o caso, deixar de aplicar o disposto neste artigo ou mitigar equitativamente sua aplicação".

De outra banda, acreditamos louvável e digna de reflexão a ideia de Marco Aurélio Bezerra de Mello10, que propõe uma lei federal de natureza excepcional e temporária, impondo um dever colaborativo em nível de direito material, dentro de uma roupagem diversa da proposta anterior, porém bastante promissora. Realmente, uma normativa que imponha às partes o dever de renegociar colaborativamente talvez tenha o condão de atuar educativamente, promovendo um consenso privado, até mesmo dispensando a intervenção de terceiros e reforçando a autonomia da vontade dos envolvidos.

Ambas propostas têm méritos, buscando uma solução segura e justa em momento em que, sem dúvidas, há pressa. A primeira, se alicerça em um patamar processual testado e firme, porém incompatível com a liberdade de contratar. A outra, busca a solução mais próxima da liberdade de contratar, porém demanda atuação processual. A vantagem da segunda sobre a primeira reside, tão somente, no fato em que - havendo acordo - evita-se a judicialização e se acelera o resultado, preservando a autonomia da vontade.

Não havendo acordo, em um segundo momento, a moratória compulsória deve ser considerada, conforme proposta supra, até porque, inclusive, serve como patamar mínimo e prévio, com um efeito educativo de incentivar a renegociação, mas não absoluto, já que existe a ressalva que permite o afastamento da regra geral conforme for o caso concreto do locador.

A nosso ver, a soma dessas duas propostas funciona como um guia de resolução de conflitos, uma tentativa de instilar bom senso às massas, que acabam partindo para a beligerância sem ter a real compreensão do custo - humano e financeiro - de uma demanda judicial.

O direito de propriedade é considerado essencial, remontando à primeira geração de direitos fundamentais. Ele deve ser conformado pela principiologia contemporânea do Direito Civil Constitucional, que busca assegurar o Direito à moradia e a preservação da empresa, porém uma medida de moratória compulsória deve ser aplicada cum grano salis, sob pena de inviabilização generalizada do próprio instituto da locação no Direito brasileiro por um período longo de tempo, causando um mal ainda maior – jurídico e econômico – do que aquele que se busca combater.

*Bruno Casagrande e Silva é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito e especialista em Direito Processual Civil pela FADISP. Coordenador e professor do Curso de Direito da Faculdade de Nova Mutum (FAMUTUM). Membro do IBDCont, IBDCivil e IBERC. Advogado e consultor jurídico.
**Jânio Urbano Marinho Júnior é mestre em Direito pela FADISP. Defensor Público Federal. Vice-Diretor da Escola Nacional da Defensoria Pública da União. Professor do Curso de Direito das Faculdades Integradas Campos Salles.
***Ricardo Alves de Lima é doutorando em Direito pela FADISP. Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra/USP. Especialista em Direito Empresarial pela UCB/INPG. Diretor Acadêmico da EXCELSU Educacional. Coordenador de cursos de pós-graduação lato sensu. Avaliador do INEP/MEC. Advogado inscrito na OAB/SP n.º 204.578.
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2 Na legislação portuguesa os nossos contratos de locação de imóveis são denominados arrendamentos. O termo locação é mais apropriado para bens móveis.

3 As questões sobre a resolução e a caducidade dos contratos de arrendamento são tratadas em diversos artigos no CC Português, por exemplo: artigos 1047º e ss, 1051º e ss, 1083 e ss. Assentando algumas controvérsias na aplicação do instituto da caducidade o Tribunal da Relação do Porto, firmou posicionamento por acórdão unânime em 11 de janeiro de 2018, nos autos da Apelação 4075/16.2T8MTS-C.P1, com relatoria do Des. Aristides Rodrigues de Almeida. Acesso em:08 mai. 2020.

4 Para um aprofundamento dessa polêmica, recomenda-se consultar artigo publicado nesta mesma seção do Migalhas pelo Professor Flávio Tartuce: TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27.03.2020. Acesso em:08 mai. 2020.




8 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27.03.2020. Acesso em: 08 mai. 2020.

9 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; BUNAZAR, Maurício. Da necessidade de uma norma emergencial sobre locação imobiliária em tempos de pandemia. Migalhas Contratuais. Migalhas, 11 maio 2020. Acesso em: 11 maio 2020.

10 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19. Migalhas Contratuais. Migalhas, 27 abr. 2020. Acesso em: 08 mai. 2020.

Fonte: Migalhas

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