sexta-feira, 22 de maio de 2020

A relevância prática do escopo jurídico que legitima a renovação compulsória de locação comercial


Dentre as mais importantes e conhecidas disposições da Lei 8.245 de 1991 (Lei do Inquilinato) está o do artigo 51, que permite ao locatário a renovação compulsória de locação comercial, desde que atendidas certas exigências.

Trata-se de norma cogente que, portanto, não pode ser suprimida ou restringida por contrato, sob pena de nulidade da cláusula, como expressamente previsto no artigo 45 do mesmo diploma legal. Isso se dá porque normas como essa interessam diretamente à ordem pública, à organização social, o que justifica a proibição de que as partes elidam a sua incidência[1].

Mas qual seria o fim social que legitima a existência e o exercício do direito à renovação compulsória da locação comercial? E, antes disso, existe mesmo alguma relevância prática em se investigar tal finalidade, como promete o título, ou esta seria só mais uma discussão acadêmica inócua?

Por razões lógicas, enfrentaremos logo a segunda questão, posto que dela depende o interesse na primeira.

Com efeito, a conexão entre a finalidade de disposição legal e a sua aplicação prática é algo de que há muito se ocupa a hermenêutica jurídica. No início do século passado, Carlos Maximiliano já nos ensinava que o fim inspirador do dispositivo serve de base para compreender e delimitar o conteúdo da norma, retificando e complementando os caracteres da hipótese legal e auxiliando a precisar as situações que nela se enquadram, de modo que a aplicação da norma satisfaça aquele propósito[2].

Contemporaneamente, a hermenêutica crítica, muito embora se insurja duramente contra os métodos interpretativos tradicionais (dentre eles o teleológico) – por entender que seriam utilizados de forma assistemática, como meros “álibis teóricos” para justificar decisões baseadas nas crenças que orientam a aplicação do Direito[3] – não refuta o caráter finalístico do Direito, e a importância desse elemento teleológico para a sua compreensão/interpretação/aplicação.

A revés, Lênio Streck, um dos maiores expoentes nacionais da hermenêutica crítica, sustenta que “interpretar não conduz ao conhecimento de algo que pertence a um texto intrinsecamente, essencialmente. Qualquer texto é sempre objeto relacional que se constitui no decurso de um jogo hermenêutico, ou seja, dos objetivos e propósito a que com ele e através dele se visam”. Sem embargo, adverte que “uma hermenêutica jurídica não pode contentar-se seriamente em empregar, como padrão de interpretação, o princípio subjetivo da ideia e intenção originárias do legislador[4].

Assim, ao invés de investigar o que pretendeu o legislador, ou qual bem jurídico buscou proteger com certa disposição, o hermeneuta deve mudar o foco e expandir o seu campo de visão para – à luz da Constituição Federal, na qualidade de “topos hermenêutico que conformará a interpretação do restante do sistema jurídico”, e do “horizonte de sentido”, fornecido pela doutrina e jurisprudência – compreender de que modo e com que finalidade deve ser aplicada a norma, para que essa realize (na maior medida possível) os princípios constitucionais aos quais está submetida, afinal, “não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela”[5].

E para complementar nossa resposta a essa primeira questão, não poderíamos deixar de aludir ao artigo 187 do Código Civil brasileiro, a teor do qual “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Isso posto, não se pode, em hipótese alguma, afirmar a licitude do exercício de qualquer direito subjetivo sem que se tenha previamente identificado, a partir de uma perspectiva constitucional, a sua finalidade socioeconômica.

Temos de concluir, pois, pela grande relevância prática da finalidade socioeconômica dos institutos jurídicos, posto que ela atua, a um só tempo, como fundamento de validade (constitucionalidade) e pressuposto de exercibilidade dos direito subjetivos.

Dito isso, estamos aptos a adentrar o objeto principal deste estudo: a análise do fundamento legitimador do direito de renovação compulsória da locação empresarial e a sua relevância no julgamento de casos concretos.

Como ocorre com todos os direitos não universais, a identificação de sua finalidade legitimadora deve perpassar pelo exame das condições que justificam (ou não) o tratamento legal diferenciado conferido ao grupo de indivíduos que detêm essa posição jurídica de vantagem, sob pena de vulneração do princípio constitucional da igualdade. Além disso, tal condição deve ser de tal importância que legitime a restrição da autonomia privada dos contratantes - tendo em vista que, como dito acima, as partes não podem afastar contratualmente o direito de renovação – e também do direito fundamental de propriedade do locador, que fica impedido de utilizar o imóvel como queira, por força de uma renovação contratual indesejada.

O direito de renovação compulsória da locação mercantil foi inserido no Direito brasileiro pela Lei de Luvas (Decreto nº 24.150 de 1934). Sílvio Venosa ensina que, embora fossem tempos ditatoriais, “nunca se entendeu que essa invasão do Estado no âmbito contratual fosse desmensurada” posto que “ao tempo de sua promulgação caíam os velhos dogmas do individualismo liberal, cedendo espaço a uma legislação mais socializante, que procurava colocar a propriedade a serviço de finalidade social”[6].

Com efeito, a doutrina é praticamente uníssona ao reconhecer que a utilização de imóvel para exercício de atividade mercantil dá origem a um bem incorpóreo, componente do estabelecimento comercial e do fundo de comércio, denominado ponto comercial, que seria “o lugar do comércio, em determinado espaço, em uma cidade, por exemplo, ou na beira de uma estrada, em que está situado o estabelecimento comercial, e para o qual se dirige a clientela”[7].

A constituição do ponto comercial agrega valor ao imóvel, porém tal valorização só é vista pela lei como digna de tutela jurídica após a satisfação de certos requisitos, quando exsurge para o locatário o direito de proteger esse bem imaterial através da ação de renovação compulsória da locação, sendo-lhe garantida, alternativamente, a indenização do ponto comercial, caso o exercício do direito de renovação seja obstado pelo locador, que poderá fazê-lo apenas nas hipóteses taxativamente elencadas pela lei[8]. Ressalte-se que esse direito de indenização pela perda do ponto comercial (e consequente depreciação do fundo de comércio) está condicionado ao preenchimento dos requisitos da ação renovatória[9].

Nessa linha, Rubens Requião explica que a lei partiu do princípio de que “o valor incorpóreo do fundo de comércio se integra em parte no valor do imóvel, trazendo destarte pelo trabalho alheio benefícios ao proprietário” e que “não seria justo atribuir exclusivamente ao proprietário tal quota de enriquecimento com o empobrecimento do inquilino que criou o valor”, o que geraria enriquecimento sem causa do locador, em detrimento do locatário[10].

De modo semelhante, André Luiz Santa Cruz Ramos leciona:

[...] Quando o empresário se estabelece num ponto alugado e permanece naquele local um determinado tempo, ele faz investimentos para ganhar o respeito dos consumidores, passar a ser conhecido e a adquirir, consequentemente, uma clientela fiel. Por essa razão, o regime jurídico-empresarial reconhece a esse empresário o chamado direito de inerência ao ponto, consubstanciado na prerrogativa de permanecer naquele local mesmo na hipótese de o locador não pretender mais a renovação do contrato locatício [...][11]

A seu turno, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que a ação renovatória visa “garantir os direitos do locatário face às pretensões ilegítimas do locador de se apropriar patrimônio imaterial, que foi agregado ao seu imóvel pela atividade exercida pelo locatário, notadamente o fundo de comércio, o ponto comercial”[12].

De mais a mais, a Lei do Inquilinato buscou temperar a restrição ao direito de propriedade do locador, por um lado exigindo do locatário a comprovação do fiel cumprimento do contrato, no período que antecedeu a renovação; e por outro concedendo ao locador o direito de elidir a renovação do contrato, em certas circunstâncias, como na hipótese de pretender realizar obras que aumentem significativamente o valor do negócio ou da propriedade, ou para utilização pessoal do imóvel, ou ainda para transferência de fundo de comércio do locador (ou de sociedade em que tenha a maioria do capital social) existente há mais de um ano, desde que a atividade empresarial não pertença ao mesmo ramo da do locatário (art. 52, LI).

Sobre o tema, Fábio Ulhoa Coelho destaca que esse “temperamento” decorre da supremacia constitucional, posto que o legislador ordinário não poderia “assegurar ao inquilino um direito que importe o esvaziamento da propriedade, porque isto seria inconstitucional”, de forma que foi necessário viabilizar a retomada do imóvel por certos motivos, mesmo satisfeitos os requisitos para a renovação forçada, compensando-se o locatário, neste caso, com a indenização do ponto comercial[13].

Considerando todos esses aspectos, resta claro que o direito de renovação compulsória da locação não deve ser aplicado mediante simples análise dos requisitos listados no texto legal, sem atenção às especificidades do caso concreto e à sua interação com o fundamento legitimador do instituto.

A nosso sentir, a satisfação dos requisitos legais para o surgimento do direito de renovação – contrato escrito com prazo determinado, com duração mínima de cinco anos e exploração do mesmo ramo de comércio por ao menos três anos, etc. – cria, em favor do locatário, uma presunção relativa de criação de ponto comercial tutelável, a qual, no entanto, deve ser afastada diante de prova em contrário, eis que, de outro modo, estar-se-ia subvertendo os fins sociais que balizam o direito de renovação, gerando assim, se não uma inconstitucionalidade, pelo menos um ato ilícito, por abuso de direito (art. 187, CC).

Nesse sentido, André Santa Cruz advoga a tese de que “a renovação compulsória do contrato de locação, só deve ser assegurada ao empresário que realmente tenha agregado valor ao local onde exerce suas atividades, transformando-o em fator atrativo da clientela”[14].

Ainda no ano 2000, ao apreciar o Recurso Especial 243.401/SP, o STJ proferiu decisão emblemática, na qual negou a existência de direito de renovação forçada de locação, por entender que o locatário apenas se aproveitara de fundo de comércio (do qual o ponto comercial é elemento central) já constituído previamente pela locadora e a ela pertencente:
[...] Não detendo as locatárias a propriedade do fundo de comércio, carece de legitimidade para ajuizar ação renovatória. Na hipótese, conquanto o estabelecimento hospitalar tenha interposto aquele remédio legal, o fundo de comércio é pertencente à locadora e anterior à locação, impondo-se, em conseqüência, a extinção do feito sem julgamento do mérito (art. 267, VI do CPC) [...]Os artigos 51 e 53 da Lei 8.245/91 exigem interpretação sistemática e teleológica, buscando na mens legis a sua inelutável expressão social. [...][15].

Mais recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão com base em fundamento bem semelhante, como se observa do excerto abaixo:
[...] Outro ponto relevante a ser considerado decorre de o imóvel objeto da lide ter sido locado quando lá já existia área de alimentação mantida pela própria locadora. Destarte, ainda se admita a possibilidade de aumento da clientela em razão da profissionalização do serviço prestado, fato que justificaria o acréscimo de fregueses estranhos ao complexo hospitalar, por certo é que a inquilina, em verdade, sustenta a constituição de fundo de comércio com base em clientela proporcionada essencialmente pela própria locadora e que já existia à época da contratação. [...][16]

Todavia, causou-nos perplexidade recente decisão do STJ, em que a Corte considerou que empresa de telefonia locatária de imóvel, que nele instalara “estação rádio base” (ERB), tinha direito ao manejo de ação renovatória, sob o argumento de que “o cabimento da ação renovatória não está adstrito ao imóvel para onde converge a clientela, mas se irradia para todos os imóveis locados com o fim de promover o pleno desenvolvimento da atividade empresarial, porque, ao fim e ao cabo, contribuem para a manutenção ou crescimento da clientela”[17].

Com todo o respeito a opiniões diferentes, nos parece inadequada essa interpretação ampliativa do direito de renovação compulsória, que o desvincula da noção de ponto comercial, pois a necessidade de preservação do ponto é o único escopo legitimador de tal direito, já que, dentro do sistema jurídico, não nos parece haver outra finalidade socioeconômica capaz de justificá-lo. Em se adotando o fundamento utilizado no julgado em foco, ter-se-ia de estender o direito de renovação, por exemplo, às locações de imóveis destinados à mera estocagem de produtos, e até mesmo ao uso de sócios ou funcionários da empresa locatária (art. 55, LI), posto que tais contratos também são celebrados “com o fim de promover o pleno desenvolvimento da atividade empresarial”, o que redundaria em restrição desproporcional (e, assim, inconstitucional) do direito de propriedade.

Destarte, concordamos com a ratio decidendi do acórdão proferido há poucos meses pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que segue na contramão do posicionamento da Terceira Turma do STJ:
[...] Está pacificado na doutrina e na jurisprudência que a ação renovatória demanda a existência do fundo de comércio a ser protegido, sem o qual resta insubsistente a pretensão de renovação do aluguel para fins mercantis. 2 O fator "clientela" é essencial e indispensável para se confirmar o fundo de comércio, e, por certo, antenas de transmissão de dados instaladas em terreno ou topo de prédio locado apenas para esse fim não são suficientes para se afirmar que a empresa formou seu fundo empresarial - e agregou clientes -, logo, porque indiscutível a inviabilidade da pretensão renovatória pela inequívoca ausência de fundo de comércio a ser tutelado [...][18]

Seja qual for a sua conclusão sobre o entendimento adotado no último julgado do STJ a que aludimos, ou sobre qualquer posicionamento que tenhamos defendido neste (não tão) breve texto, esperamos tê-lo convencido (ou confirmado a sua convicção prévia) sobre a importância prática de se ter presente o fundamento de legitimidade do direito de renovação compulsória da locação, assim como de qualquer outro instituto jurídico, já que ele influirá decisivamente em sua aplicação.
_______________________________

[1] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 32ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v1. p. 16

[2] SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 125.

[3] WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: Fabris, 1994. p.89.

[4] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise.11ed. ebook. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.p. 1.557-1.582.

[5] Idem. p. 1.540.

[6] VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada. 13ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 238

[7] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 31ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v1.p. 272.

[8] SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 8ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 360.

[9] Cf. REsp 1060300/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Rel. p/ Acórdão Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2011, DJe 20/09/2011; e TJSP, Apelação Cível 1001269-21.2017.8.26.0565; Relator (a): Alfredo Attié; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Caetano do Sul - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/02/2020; Data de Registro: 06/02/2020.

[10] REQUIÃO, Rubens. op. cit. p. 273.

[11] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial. 7ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 162

[12] REsp 1323410/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/11/2013, DJe 20/11/2013

[13] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 16ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v1.p. 130.

[14] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. op. cit. p. 163

[15] REsp 243.401/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 02/03/2000, DJ 27/03/2000, p. 134

[16] TJSP; Apelação Cível 0228132-53.2009.8.26.0007; Relator (a): Artur Marques; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VII - Itaquera - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/09/2013; Data de Registro: 17/09/2013

[17] REsp 1790074/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 28/06/2019.

[18] TJSC, Apelação Cível n. 0302498-54.2018.8.24.0023, da Capital, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 22-10-2019.

Yago de Carvalho Vasconcelos - Bacharel em Direito pelo Instituto Camillo Filho, Teresina-PI. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela LFG, e em advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial pela UNISC.
Fonte: Artigos JusBrasil

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