1- Já tive a oportunidade de dizer que “os centros urbanos pagam um tributo elevado, que decorre da visão pouco dilatada daqueles que assumiram a gestão da coisa pública. A inexistência de uma politica urbana, de uma disciplina de uso e ocupação do solo, desembocou na situação extremamente penosa em que vivemos: a diminuição da qualidade de vida”. (Marco Aurelio S. Viana, Condomínio Fechado e Condomínio Horizontal, pág. 17).
Alia-se a esse fenômeno a insegurança que se alastra cada vez mais, o que impele o cidadão a buscar meios de proteção para a família, e uma desses meios é justamente um lugar seguro para morar. Não se tem retorno dos altos impostos que são pagos, em setor algum.
Com a Constituição Federal de 1988 destaca-se a função social da propriedade, trazendo a preocupação com o não proprietário, e abrindo capítulo para a política urbana. O art. 182 da Lei Maior enfatiza que a “política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
A Lei nº 10.275/2001 (Estatuto da Cidade) estabelece as diretrizes gerais da política urbana, fornecendo “uma base instrumental a ser utilizada em matéria urbanística”, como adverte Carlos Alberto Dabus Maluf, In Comentários à Constituição Federal de 1988, pág.2029.
Acrescente-se o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que o art. 225 da Constituição Federal consagra, considerando-o bem de uso comum do povo, elemento essencial à sadia qualidade de vida,
Nesse ambiente é compreensível que a Lei nº 6.766/79 avançasse, preocupando-se com a modernização da utilização do solo urbano sob a forma de loteamento ou desmembramento, de forma a adequar a legislação infraconstitucional aos novos rumos da vida urbana. Dento dessa ótica constitucional ela foi alterada pela Lei nº 13.465/2017, que introduz na cidadela do direito positivo, com caráter geral, o denominado loteamento de acesso controlado. (art. 2º, § 8º)
Anteriormente, já se encontrava o fechamento de ruas, ou de quadras de loteamentos já implantados, ou a aprovação de loteamentos sob a forma de loteamento fechado.
Ocorre que nem todos os Municípios admitiam tal solução, em que pese se tratar de matéria urbanística, e ser atribuição municipal a ordenação do desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana (art. 2º, caput do Estatuto da Cidade), e disporem de instrumentos de política urbana, entre eles o planejamento municipal, que envolve o plano diretor e a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo. (art. 4º, III do Estatuto da Cidade)
O exame da doutrina, que não cabe nos limites do presente trabalho, revela o esforço para se alcançar o consenso a respeito de novas formas de parcelamento do solo, os denominados loteamentos fechados e o loteamento horizontal, que conheciam outras denominações, e que nada mais faziam do que revelar que a atividade econômica ligada ao parcelamento do solo, decorrente dos serviços que o proprietário podia obter no exercício do direito de propriedade, ia muito além do que se fazia até então. A doutrina e a jurisprudência desenvolveram as bases conceituais para que o direito positivo acolhesse, em forma de norma geral, novas modalidades de loteamentos.
2- Não se confunda o loteamento fechado com o loteamento de acesso controlado.
O loteamento fechado distingue-se do loteamento tradicional porque a gleba é subdividida em lotes, como qualquer loteamento, são abertas vias de circulação, logradouros públicos etc., atendendo em tudo os requisitos urbanísticos para o loteamento. (art.4º da Lei nº 6.766/79) O acesso ao loteamento é controlado e a gleba é cercada. Ocorre que, na etapa material do loteamento, que se desenvolve perante a Prefeitura ou o Distrito Federal, conforme o caso, o loteador informa que o loteamento será fechado, ficando as vias internas de circulação, as praças dentro dele, espaços livres de uso exclusivo dos proprietários.
Essa outorga pelo Município é feita pela permissão de uso ou concessão de uso, o que significa que da aprovação do loteamento já consta esse ponto, que integrará o ato administrativo, que concede ou permite o uso, a ser apresentado ao oficial do registro de imóveis.
O contrato-padrão que integra a documentação que é entregue ao registro imobiliário (art. 18 da Lei nº 6.766/79), além das indicações previstas no art. 26 da Lei citada, fará menção a respeito da existência da permissão ou concessão de uso. E isso porque o adquirente deverá arcar com despesas para manutenção das vias de circulação e logradouros que integram o loteamento, e outras, que podem ser exigidas segundo a estrutura do loteamento.
Nessa linha, loteamento fechado, em que pese não existir condomínio nas vias de comunicação, praças e espaços livres que integram o loteamento, que são de propriedade do município, há comunhão incidente no uso dessas vias e espaços livres. (Elvino Silva Filho, Loteamento Fechado e Condomínio Deitado, Revista de Direito Imobiliário, nº 14)
O que caracteriza o loteamento fechado é que o proprietário do lote exerce direito de propriedade como todo e qualquer proprietário de loteamento tradicional, com as restrições seguintes: a) a gleba é cercada ou murada em seu perímetro; b) o acesso é feito por um único local, como regra, mas nada impede que haja mais de um, havendo sempre portaria ou portão, com porteiro, estando o acesso interno submetido a identificação prévia; c) as ruas, praças e vias de comunicação e outros logradouros ou espaços livres têm seu uso limitado aos proprietários dos lotes, mediante permissão ou concessão de uso, outorgado pelo Município; d) as vias de comunicação , praças e espaços livres continuam sendo propriedade do Município, alterando-se apenas o direito de uso, que é retirado da coletividade e assegurado somente aos moradores do local. Estabelece-se uma comunhão relativamente ao uso; e) há domínio comum sobre determinados bens, tais como a cerca, o alambrado ou muro que cerca o loteamento, a portaria, as quadras de esporte, piscina etc., enfim, serviços e coisas que pertencem a todos; f) necessária a manutenção e conservação das vias de comunicação, praças e espaços livres, quando o Município não se incumba disso; g) o mesmo ocorre com relação à manutenção de portaria, serviço de vigilância e segurança, além daquelas com serviços e partes comuns, como serviços de coleta de lixo, rede elétrica e de iluminação, rede de água e esgoto, pavimentação, telefone, etc., quando o Município ou a concessionária do serviço não se incumbe dessa obrigação; h) finalmente, reclama-se uma administração, que se incumbirá das tarefas afetas ao funcionamento interno do loteamento, da gestão do dinheiro necessário à manutenção e conservação das partes comuns, serviços e outras necessárias à vida do loteamento.
No loteamento com acesso controlado não se assegura aos proprietários dos lotes permissão ou concessão de uso, permanecendo as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, na propriedade do Município. Isso quer dizer que os bens pertencem ao Poder Público municipal, com uso assegurado a qualquer um do povo, conforme a natureza do bem público.
Mister atentar que essa modalidade de parcelamento só alcança o loteamento (§ 1º do art. 2º da Lei nº 6.766/79)
O art. 99, I do Código Civil estatui que são bens públicos os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças. Tais espaços estão franqueados a qualquer um do povo, com fruição assegurada a todos, segundo sua destinação, abertas à utilização pública e não dependem de permissão ou autorização. Como foi dito por DIÓGENES GASPARINI, “todos os locais abertos à utilização pública adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo”. (Diógenes Gasparini, apud Marco Aurelio S. Viana, Código Civil Comentado – Parte Geral, pág. 209)
Na parte final do § 8º do art. 2º da Lei nº 6.766/79 esse ponto fica bastante claro, porque está dito que é “vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados”.
O que se controla é o aceso ao loteamento, mas não perdem o caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do povo, repetindo o magistério de DIÓGENES GASPARINI.
A utilização dos bens comuns, que integram o loteamento, continua franqueada a qualquer um do povo, com a uma diferença: o acesso só se permite, em se tratando de não residentes, sejam condutores ou pedestres, mediante prévia identificação ou cadastramento.
Obviamente, o pedido o pedido para se dar ao loteamento o perfil citado deve vir na etapa material, que se desenvolve junto à Prefeitura municipal, quando o loteador solicita a definição das diretrizes para uso do solo, traçados dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário. (art. 6º da Lei nº 6.766/79)
Cabe ao Poder Público municipal regulamentar o controle de acesso, o que se faz em função do planejamento municipal, em especial o plano diretor.
A meu ver nada impede que na regulamentação o Município exija contraprestações, voltadas para o interesse público, como medidas que assegurem o meio ambiente ecologicamente equilibrado, tais como a manutenção de área verde, se existente no loteamento, a captação de água pluvial etc.
Falando em controle de acesso e permitindo-o a não residentes, reclamando apenas que sejam identificados ou cadastrados, fica claro que há despesas a ser suportadas, com a manutenção de porteiros e procedimentos visando a identificação e o cadastramento dos não proprietários.
É possível, ainda, que no regulamento que seja elaborado pelo Poder Público municipal haja exigências que desembocam em despesas para os proprietários.
Entendo que o loteador, segundo as diretrizes traçadas pelo Município no regulamento, que impliquem em despesas para os adquirentes e futuros proprietários de lotes, faça constar no compromisso de compra e venda, além das indicações mínimas, previstas no art. 26, I a VI da Lei nº 6.766/79, as despesas que os adquirentes deverão suportar para atendimento do regulamento do Município, e outras que decorram de restrições convencionais, para a devida publicidade.
Agindo nesse sentido, cria-se despesa que assume o caráter de obrigação propter rem, porque elas não se resumem ao adquirente, mas terceiros que venham a adquirir, de comprador originário, o lote. A presença da previsão e obrigatoriedade de contribuir para tais despesas produz eficácia em relação a terceiros. Tais despesas ficam vinculadas ao lote e não ao seu titular, ou seja, o direito de propriedade, como direito real, é acompanhado da faculdade de reclamar uma prestação pessoal do seu titular, que fica submetido à sua satisfação. (Marco Aurelio S. Viana, Manual do Condomínio Edilício, pág. 89)
Há um ponto que não encontra disciplina legal específica no § 8º do art. 2º da lei sobre parcelamento do solo urbano, que é a gestão da vida interna dessa modalidade de loteamento. A questão que se põe é estabelecer como se fará a cobrança das despesas, quem representará os proprietários em relação a terceiros, visando a contratação de pessoal e mão de obra, quando necessário, e como se fará a escolha do administrador, entre outras. Tais matérias não podem ser objeto do regulamento da Prefeitura, porque não envolvem direito urbanístico, mas direito civil, fora, portanto, da sua competência legislativa.
O melhor será que o loteador crie uma associação, constando tal matéria no compromisso de compra e venda, de forma tal que o adquirente sabe que a aquisição implica na vinculação à associação com todos os seus efeitos legais. Com essa solução há a necessária publicidade e não se poderá alegar depois que não se sabia ou desconhecia a situação jurídica existente, afastando demandas futuras, como ocorreram e ocorrem em loteamentos fechados.
O fundamento legal está no art. 36-A da Lei nº 6. 766/79, incluído pela lei nº 13.465/17, que disciplina as atividades pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados.
Em julgamento para efeitos repetitivos (art.543-C do CPC/1973), REsp. 1.439.163 – SP, com relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cuevas, ficou assentado que “as “taxas”, contribuições de manutenção ou de conservação criadas por associação de moradores ou administradora de loteamento só podem ser impostas a proprietário de imóvel adquirido após a constituição da associação ou que a ela se tenha associado ou aderido ao ato que instituiu o encargo”.
O adquirente adere à associação com a aquisição do lote, exercendo o direito de associar-se, e sabe que ao imóvel adere uma obrigação propter rem, que vincula o lote e não o seu proprietário. O direito real de propriedade, como direito real, é acompanhado da faculdade de reclamar uma prestação pessoal do seu titular, impondo-lhe sua satisfação. Há sujeição do titular ao cumprimento de uma obrigação.
BIBLIOGRAFIA.
FILHO, Elvino Silva, Loteamento Fechado e Condomínio Deitado, Revista de Direito Imobiliário, nº 14.
LOPES, João Batista. Condomínio. 10ª. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais.
MALUF, Carlos Alberto Dabus. Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio: Forense, 2009, coord. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra.
VIANA, Marco Aurelio S., Condomínio Fechado e Condomínio Horizontal. Rio: Aide, 1991.
Manual do Condomínio Edilício,. Rio: Forense, 2009.
Comentários ao Novo Código Civil. 4ª. ed., Rio: Forense, v. XVI, 2013.
Marco Aurelio S. Viana - Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Publicou dezenas de obras sobre todos os temas do Direito Civil. Realiza palestras e conferências em todo o Brasil. Como advogado, atua no contencioso, bem como elaborando pareceres, consultas presenciais e virtuais, prestando assessoria e consultoria em todas as áreas do Direito Civil, com mais de quatro décadas de experiência.
Fonte: Artigos Jus Navigandi
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