sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA INVERSA?


Indiscutivelmente, o processo de aquisição de um imóvel é rodeado de detalhes e minúcias que devem ser compreendidos pelo adquirente antes da formalização do contrato.

Contudo, o que qualquer pessoa sabe é que o comprador tem a obrigação de realizar o pagamento integral do preço pactuado no contrato e, em contrapartida, o vendedor tem a obrigação de realizar a entrega do imóvel ao adquirente.

Uma vez adimplido integralmente o valor do imóvel, surge a obrigação do vendedor de outorgar a escritura definitiva de compra e venda, instrumento hábil para ser levado ao registro para fins de efetivar a transferência do domínio do imóvel ao comprador, nos termos do art. 1.245 do Código Civil.

Caso o vendedor se recuse a realizar a outorga da escritura, o comprador poderá requerer em juízo que seja suprida a manifestação de vontade por meio da ação de adjudicação compulsória, conforme prevê o art. 1.418 do Código Civil. A sentença, transitada em julgado, da ação de adjudicação compulsória valerá como título aquisitivo para fins de registro e transferência da propriedade.

Contudo, e se o comprador se recusar a lavrar a escritura definitiva e proceder com o registro do título? Será que poderia o comprador lavrar a escritura e leva-la a registro no momento que achasse conveniente? Seria, assim, apenas um direito potestativo do comprador e não um dever?

Para se chegar a uma resposta a estas questões, é fundamental iniciar esclarecendo a diferença que existe entre a promessa e compromisso de compra e venda.

Segundo valiosa lição de José Osório de Azevedo Jr. "a simples promessa é 'contrato preliminar próprio', e o compromisso de compra e venda é contrato preliminar impróprio" (AZEVEDO JR, p.22/23).

O jurisconsulto segue explicando:

"Nestes [compromisso], as partes não se obrigam a uma nova manifestação de vontade e sim a reiterar, a reproduzir, a manifestação anterior, pois foi neste momento anterior que o consentimento foi dado de forma cabal e irreversível [...]"(AZEVEDO JR., p.23).

Citando Orlando Gomes, José Osório assim arremata a explicação:

"[...] a mera promessa de contratar, que se destina 'apenas a criar a obrigação de um futuro contrahere', geralmente como possibilidade de arrependimento e solução em perdas e danos; [...] o compromisso de compra e venda propriamente dito, que traz a 'possibilidade, prevista na lei, de se substituir o contrato definitivo por uma sentença constitutiva' e pela ‘atribuição, ao promitente comprador, de um direito real sobre o bem que se comprometeu a comprar" (AZEVEDO JR., 22).

Percebe-se, portanto, que o compromisso é um contrato definitivo de eficácia imediata, acompanhado de uma promessa (obrigação de fazer) de reproduzir o consentimento em momento posterior.

Além do mais, é importante atentar-se que com a celebração do compromisso de compra e venda, o vendedor conservou apenas uma das faculdades da propriedade (jus abutendi – a faculdade de dispor do bem), sendo transferidas todas as faculdades da propriedade ao compromissário comprador.

Dessa forma, e em outras palavras, o objeto do contrato de compromisso de compra e venda será o próprio domínio do imóvel que se busca adquirir, acompanhado da promessa de dar o consentimento no contrato definitivo quando do pagamento do preço.

Assim sendo, é fato que não basta a manifestação de apenas uma das partes. Essa manifestação deverá partir de ambos os contratantes, ou seja, é uma obrigação de fazer recíproca, juridicamente fungível ante a possibilidade de suprimento judicial do consentimento.

Segundo comentários do Desembargador do TJSP, Francisco Eduardo Loureiro, quando da análise do art. 1.417 do CC, "na visão contemporânea do direito obrigacional, o pagamento, em sentido amplo, é não somente um dever, mas também um direito do devedor para liberar-se da prestação" (LOUREIRO, p.1.413) (grifei).

João de Matos Antunes Varela complementa o entendimento do Desembargador ensinando que "o pagamento não comporta exame monolítico e merece ser examinado em tríplice aspecto: (a) a satisfação dos interesses do credor; (b) a liberação do devedor; (c) o dever de prestar" (ANTUNES VARELA, p.158).

Veja que estudiosos do direito das obrigações não limitam o pagamento como um direito exclusivamente do credor para satisfazer suas pretensões, mas também um direito do devedor de liberar-se da obrigação.

No caso da outorga da escritura, que representa, em um primeiro momento, uma obrigação de fazer do vendedor diante do pagamento integral do preço pelo comprador, também deve ser considerada um direito desse mesmo vendedor de liberar-se da obrigação e, consequentemente, das diversas obrigações de natureza propter rem que terá que suportar enquanto o imóvel estiver sob seu domínio.

Além do mais, as relações contratuais devem, necessariamente, ser pautadas pela boa-fé contratual, observando os deveres de cooperação e lealdade. Quanto ao tema, nas palavras de Judith Martins-Costa:

"todo e qualquer contrato instaura entre as partes, ainda que temporariamente, um conjunto de interesses (positivos e negativos, interesses à prestação e interesses à proteção contra danos, interesses convergentes, por vezes; por outas contrapostos) que se hão de harmonizar em vista do adimplemento, sob pena de o contrato não atingir o seu fim [...] no Direito das Obrigações, centrado na noção de prestação como conduta humana devida, ela [a cooperação] é nuclear, inafastável e concretamente verificável: por meio da relação obrigacional 'o interesse de uma pessoa é prosseguido por meio da conduta doutra pessoa’ sendo a colaboração entre os sujeitos ‘uma constante intrínseca das situações'" (MARTINS-COSTA, p. 575/576).

Resumidamente, é indiscutível que o princípio da boa-fé objetiva impõe a ambos os contratantes os deveres laterais de conduta, no sentido de colaborar para a conclusão do negócio.

As partes que, num determinado momento, se aproximaram para celebrar um negócio jurídico, cujo objeto seria a transferência da propriedade de bem imóvel mediante o recebimento do pagamento, deverão agir respeitando a boa-fé,

O adquirente que adimple sua obrigação e recusa o recebimento da prestação que cabe ao vendedor, age em manifesta afronta à boa-fé contratual, ao impedir que o devedor se libere de suas obrigações.

Assim sendo cabe também ao promitente vendedor o ajuizamento da ação de obrigação de fazer (ou adjudicação compulsória inversa) para que o judiciário supra a ausência do consentimento do comprador, proferindo sentença que substitua a escritura injustamente negada pelo adquirente.

Aliás, esse entendimento é inclusive reconhecido pelos Tribunais pátrios, a exemplo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que em diversas ocasiões se manifestou no sentido de afirmar a possibilidade da obrigação de fazer ajuizada pelo promitente vendedor.

"Obrigação de fazer – imóvel vendido - outorga de escritura – direito do vendedor em regularizar o ato - culpa do adquirente reconhecida – mora evidente – multa diária e prazos arbitrados com moderação - decisão confirmada – apelo desprovido. (TJSP - Acórdão Apelação 1017392-06.2017.8.26.0562, Relator(a): Des. Giffoni Ferreira, data de julgamento: 17/05/2018, data de publicação: 17/05/2018, 2ª Câmara de Direito Privado)".

"MANUTENÇÃO. INTERESSE DO PROMITENTE VENDEDOR. RESPONSABILIDADE DO ADQUIRENTE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. APELAÇÃO DO RÉU NÃO PROVIDA. 1. Sentença que julgou procedente a ação de obrigação de fazer movida pelo promitente vendedor do imóvel, para compelir o réu (comprador), a providenciar o necessário para o registro do imóvel, no prazo de 30 dias, sob pena de multa diária de R$ 200,00 até o limite do valor do imóvel atualizado. Manutenção. 2. Interesse do vendedor em compelir o adquirente a providenciar o necessário para a outorga da escritura de compra e venda e o respectivo registro. 3. Responsabilidade do adquirente. Princípio da boa-fé objetiva. É dever de ambas as partes contribuir para a conclusão do negócio jurídico. Falta de condições financeiras que não isenta o comprador do cumprimento da obrigação. 4. Prazo de 30 dias mantido. Decurso de mais de 3 anos desde a propositura da ação, e mais de 1 ano da prolação da sentença. 5. Astreintes. Manutenção. Finalidade de assegurar a efetividade da decisão (medida coercitiva). Razoabilidade do valor arbitrado. 6. Apelação do réu não provida.” (Apelação nº 0051698-46.2012.8.26.0577, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, j. em 26/04/2016)".

No Tribunal de Justiça de Minas Gerais não é diferente. O TJMG reformou sentença que extinguiu ação proposta pelo promitente vendedor, reconhecendo a adequação da via eleita e a plena legitimidade ativa do promitente vendedor, quando do ajuizamento de uma "adjudicação compulsória [inversa]".

"APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA - DEMANDA AJUIZADA PELO PROMITENTE VENDEDOR - INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - ILEGITIMIDADE ATIVA - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO - INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS - PRETENSÃO DEDUZIDA COM BASE NOS ARTIGOS 466-A, 466-B E 466-C DO CPC/73. Não se há de falar em inadequação da via eleita e ilegitimidade ativa se a parte autora, promitente vendedora, embora tenha intitulado a ação de "adjudicação compulsória", utilizou, como fundamento jurídico para a sua pretensão - de obrigar a promissária compradora a realizar a transferência, para o nome dela, do imóvel objeto de compromisso de compra e venda firmado entre as partes - não somente os artigos 15 e 16 do Decreto-Lei n.º 58/1937, mas, também, os artigos 466-A, 466-B e 466-C, todos do CPC/73. (TJMG - Acórdão Apelação Cível 1.0209.15.001779-3/001, Relator(a): Des. José de Carvalho Barbosa, data de julgamento: 29/11/2018, data de publicação: 07/12/2018, 13ª Câmara Cível)"

Diante da possibilidade da propositura da ação de obrigação de fazer para suprir o consentimento do comprador, imediatamente surge o questionamento acerca do pagamento do ITBI, das custas e dos emolumentos devidos na ocasião da transferência do bem imóvel.

Segundo o desembargador Francisco Loureiro, haveria duas formas de resolver a situação. A primeira delas seria o promitente vendedor custear o pagamento dos impostos e taxas e, em seguida, exigir a restituição dos valores do Compromissário Comprador; ou, o promitente vendedor poderia requerer ao juízo que fixasse multa cominatória — com fundamento nos arts. 139, IV; 497 a 500; 536, §1º; e 537 do CPC — até que o comprador promovesse o recolhimento das citadas verbas e o registro do título aquisitivo.

Pois bem! Demonstrada está a superação do entendimento de que a outorga da escritura representa exclusivamente um direito do adquirente. Resta claro, portanto, que também possui a natureza de obrigação do compromissário comprador (dever anexo), decorrente da boa-fé contratual. O devedor – promitente vendedor – tem o direito de pagar, de liberar-se das obrigações assumidas, não podendo o credor se negar injustificadamente a receber. Esse é o entendimento doutrinário, legal, e respaldado pela jurisprudência pátria.

Bibliografia

AZEVEDO JR., José Osório. Compromisso de Compra e Venda. 6ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em Geral. 10. Ed. Coimbra: Almedina, 2003, v. I.

LOUREIRO, Francisco Eduardo. Art. 1.417 e 1.418 — Titulo IX: Do Direito do Promitente Comprador. In: Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. et al: PELUSO, Cesar (Org.). 11ª. ed. São Paulo: Manole, 2017. p. 1.408/1.428.

MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
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Eduardo R. Vasconcelos de Moraes é advogado especialista em Direito Imobiliário pela FGV/SP.
Fernando Flamini Cordeiro é advogado, pós-graduando em Direito Imobiliário.
Fonte: Migalhas Edilícias

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