O ordenamento jurídico brasileiro admite limitações ao direito de propriedade que podem, além das hipóteses previstas em lei, ser originadas pelo interesse privado. Nessa hipótese, havendo o ato de disposição voluntária, é possível que cláusulas restritivas sejam apostas em bens de terceiros quando da ocorrência dos fenômenos da doação ou do testamento.
As cláusulas restritivas ao direito de propriedade que podem ser gravadas em bens doados ou legados são: inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, possuindo os conceitos abaixo destacados:
INALIENABILIDADE | IMPENHORABILIDADE | INCOMUNICABILIDADE |
Visa proibir a alienação do bem, tornando-o, por via de consequência, indisponível. Isso assegura que o bem recebido por doação ou por legado não pode ser alienado, seja a título gratuito ou oneroso. | Busca impor condições a fim de que o bem recebido a título de doação ou testamento permaneça no patrimônio do beneficiário apesar da existência de credores e/ou dívidas de qualquer natureza. | Tem como objetivo excluir o bem da comunhão, permitindo que o cônjuge beneficiário tenha direito exclusivo sobre o bem que receber por doação ou legado, não se sujeitando ao patrimônio comum do casal. |
O Código Civil de 2002, no capítulo das Disposições Testamentárias, disciplina, no artigo 1911, que a cláusula de inalienabilidade, quando imposta por ato de vontade aos bens, implica, automaticamente, impenhorabilidade e incomunicabilidade.[1]
Diante disso, pode-se concluir que a cláusula de inalienabilidade compreende as demais, possuindo maior força restritiva, conforme entendimento da Súmula 49 do Supremo Tribunal Federal[2]. Contudo, nada impede que as cláusulas sejam gravadas de forma autônoma ou revogadas isoladamente.
O objetivo principal dos gravames dos bens recebidos por doação ou testamento é cumprir sua função de garantia do patrimônio daquele que o receberá. Contudo, na mesma esteira, apor tais cláusulas restritivas limita o direito de propriedade do possuidor, de modo que estará impossibilitado de dar função social à propriedade em razão da existência desses gravames.
Isto porque, quando falamos na restrição de inalienabilidade, têm-se um severo cerceamento ao direito de propriedade, visto que o proprietário estará restrito meramente ao uso e gozo do bem, estando impossibilitado de dispor livremente da coisa e conceder-lhe função social.
Desta maneira, a doutrina e jurisprudência majoritária entendem que, embora a vontade do doador/testador ao instituir as cláusulas restritivas deva ser respeitada, o direito de propriedade do beneficiário também deve ser levado em consideração e merece a devida proteção quando os gravames se mostrarem injustificados.
Nesse sentido, os doutrinadores Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery[3] ponderam que:
Cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade sobre os bens da legítima. O CC 1848 estabelece a possibilidade de o bem da legítima ser gravado pelo testador com cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, excepcionalmente: apenas incide quando exista justa causa. Em outras palavras, o que determina a validade da cláusula não é mais a vontade indiscriminada do testador, mas a existência de justa causa para a restrição imposta voluntariamente pelo testador. Pode ser considerada justa causa a prodigalidade, ou a incapacidade por doença mental, que diminuindo o discernimento do herdeiro, torna provável que esse dilapide a herança.
Apesar de não haver disposição legal que autorize a baixa dos gravames, o ordenamento jurídico brasileiro caminha no sentido de compreender que as cláusulas restritivas não podem ser uma proibição absoluta, visto que vão em sentido contrário à garantia de finalidade social da propriedade devidamente expressa no texto constitucional (Art. 5ª, inciso XXII e XXIII da Constituição Federal)[4].
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1631278/PR[5], proferiu acórdão autorizando o cancelamento de cláusulas de inalienabilidade após a morte dos doadores e instituidores dos gravames em respeito à função social da propriedade. Ao proferir seu voto, o relator do caso entendeu que, não havendo justa causa para manutenção do congelamento do bem e tendo a vontade do instituidor sido respeitada enquanto vivo, não há motivo para que se mantenham as cláusulas de inalienabilidade e, consequentemente, impenhorabilidade e incomunicabilidade no bem imóvel.
Desta forma, têm-se atualmente o entendimento de que, embora as cláusulas, quando instituídas, tenham como objetivo a proteção do patrimônio do beneficiário, esse resguardo não pode ser interpretado como direito absoluto e perpétuo, uma vez que o direito à propriedade do beneficiário também merece ser respeitado sob a ótica da função social da propriedade.
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[1] Art. 1911: A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.
[2] Súmula 49 do STF: A cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens.
[3] Código Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 1.580-1.581.
[4] Art. 5º, inciso XXII: é garantido o direito de propriedade;
Art. 5º: inciso XXIII: a propriedade atenderá a sua função social.
[5] STJ. Recurso Especial nº 1631278 – PR (2016/0265893-1). Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Terceira Turma. Data de Julgamento: 19/03/2019.
Tatiane Bagagí Faria - Advogada do escritório Marcos Martins Advogados
Fonte: Marcos Martins Advogados
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