domingo, 20 de setembro de 2020

Declaração Negativa de atividades suspeitas no mercado imobiliário e o novo ordenamento jurídico


Todos que trabalham no mercado imobiliário são obrigados a entregar a declaração anual negativa, documento indispensável para o exercício regular das atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis.

A declaração negativa, também conhecida como declaração de não-ocorrência nada mais é do que a manifestação por escrito da pessoa jurídica ou física de que durante todo o ano inexistiram transações suspeitas que deveriam ter sido declaradas ao poder público. A declaração deverá ser entregue até 30 dias após o fim do ano civil[1] perante o órgão responsável pela sua análise, que no presente caso é o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (COFECI).

O intuito da declaração negativa é suprir uma deficiência no sistema de comunicações de atividades ou transações suspeitas por parte das empresas, mas qual é a importância deste documento, que existe há décadas em nosso ordenamento, nos dias de hoje?

A resposta está na evolução legislativa e tecnológica do compliance corporativo, do criminal compliance e de como o Estado está se preparando na era da tecnologia e a intercomunicação de dados.

A cultura do compliance é um tema novo no nosso país. Seu debate remonta apenas aos últimos 20 anos, com maior ênfase na última década o que pode parecer muito, mas não em quando se fala em legislação.

Se pensarmos que nosso Código Penal é de 1940 e o de Processo Penal um ano mais novo que o primeiro, então começaremos a ter um panorama mais claro de que a atividade legislativa é um processo lento que exige anos, senão décadas para se aperfeiçoar. A Lei 10.406/02, mais conhecida por todos pelo novo Código Civil, teve sua aprovação pela Câmara dos Deputados no ano de 1984, cujo projeto foi apresentado à Mesa da Câmara no - PL 634/1975.

Não somos um país que se adequa facilmente a novas leis, ainda mais quando elas se imiscuem em nossa meio pessoal ou profissional. Assim como o processo legislativo, o Brasil possui uma cultura arraigada na informalidade, que aos poucos vem mudando drasticamente. É o chamado jeitinho brasileiro.

O direito é conhecido por ser uma ciência em constante evolução, muitas vezes fruto do anseio da população, do clamor público, outras tantas na busca por igualdade e justiça ou simplesmente pela vontade de alguns.

Entretanto, nenhuma lei impacta tanto um país como aquelas que ingressam em nosso sistema através de tratados ou convenções internacionais, onde o consenso é global, não mais se restringindo a fronteiras físicas ou ideologias, mas um pensamento harmonizado, fruto de décadas de debate.

É nesse contexto nasce a lei de lavagem de dinheiro[2], a primeira a dispor sobre o compliance corporativo (já que num primeiro momento a lei comportava somente as pessoas jurídicas[3] como aquelas sujeitas ao mecanismo de controle), criando um parâmetro a ser seguido até hoje e definindo pela primeira vez as atividades comerciais sujeitas ao mecanismo de controle, conhecidos como gatekeepers.

Ocorre que, muito embora a lei vinculasse os mais diversos setores considerados como “sensíveis”, apenas alguns seguiam suas regras e uma das mais importantes é a obrigatoriedade de comunicar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) qualquer transação (c. consumado) ou proposta (c. tentado) suspeita realizada no âmbito interno da empresa, em razão desta atividade sensível, que não precisaria ser a principal, mas acessória e nem praticada em caráter permanente, mas também eventual.

Longos anos se passaram e como a tecnologia não acompanhava a vontade do poder público, as comunicações ficaram restritas quase que exclusivamente ao setor bancário, que seguiam à risca esta imposição, cuja cultura foi trazida por estes grandes bancos que já implementavam técnicas de compliance por força de suas atuações em outros países onde era exigido.

Contudo, outros setores resistiram por muito tempo antes de aderir a esta cultura, como é o caso do fomento mercantil (factoring).

Em entrevista[4] ao presidente do COAF na época - Antônio Gustavo Rodrigues (2006) – explicou que em 2005 o setor de factoring, após sofrer fiscalização – passou de 27 (sim, vinte e sete) para 12.000 (doze mil) comunicações.

Nesse mesmo ano de 2006 o setor imobiliário foi responsável pelo irrisório número de 750 (setecentos e cinquenta) comunicações no ano todo.

O número é minúsculo se compararmos a quantidade de transações imobiliárias que acontecem todos os anos no território brasileiro, ainda mais quando o mercado é o predileto dos traficantes de drogas que veem nos imóveis um modo fácil de recolocar dinheiro limpo no mercado financeiro.

A lógica é simples: se o empresariado estava se omitindo em fazer as comunicações, então agora será incumbido pela declaração negativa, transferindo-se a este a obrigação de declarar que não houve ocorrências suspeitas durante o ano inteiro.

Enquanto atualmente a regra é que o empresário apresente a declaração negativa, logo será a exceção.

O primeiro indicador disso decorre do avanço tecnológico que enfrentamos (que só ficou maior com a chegada da Covid-19). Somos movidos a internet. Estamos conectados com o mundo e é exatamente essa interligação com que faz tão fácil o acesso à informação.

Um segundo fator é que o Poder Público soube se valer dessa tecnologia para criar órgãos de coleta e análise destas informações. Este modelo que antigamente se restringia ao imposto de renda, hoje é muito mais do que isso. A criação de Unidades de Inteligência Financeira (UIF) são um prefácio do que está por vir. No Paraná, a cidade de Foz do Iguaçu conta o primeiro Centro Integrado de Operações de Fronteira (CIOF), atuando principalmente para conter o tráfico de armas e drogas, crimes cibernéticos, assim como fazendo o monitoramento de movimentações financeiras ilegais, em parceria com a Unidade de Inteligência Financeira (UIF)[5].

Na era da tecnologia é ressabido que informação é tudo, cuja estratégia está sendo adotada pode público na prevenção de ilícitos e recuperação de ativos. Como consequência disso cada vez mais veremos agências públicas interligadas entre si convergindo para o mesmo objetivo: acesso amplo à informação, seja ela qual for.

Um exemplo que comporta ambos fatores expostos acima é a entrada em vigor do Provimento n. 88/2019[6], do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre os mecanismos adotados pelos notários e registradores visando a prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo.

Segundo dados repassados pelo CNJ[7] e informados pelo COAF, em apenas um mês da entrada em vigor o órgão recebeu 70.000 (setenta mil) comunicações de atividades suspeitas de parte dos cartórios e tabelionatos ao COAF.

Aponte-se que em fevereiro de 2020, o Provimento n. 88 teve algumas normas alteradas pelo Provimento 90/2020[8], atinente a prazo de comunicação e apreciação das atividades suspeitas pelos notários e registradores.

O aumento das comunicações por parte das empresas e instituições administrativas - seja por uma questão de transparência, seja por imposição – produz um efeito dominó nas demais e deste modo criando a cultura do compliance, onde não há mais espaço para declarações negativas ou de não-ocorrência, fardadas à extinção.

Sobre a declaração negativa leia-se o disposto no artigo 12, da resolução 1.336/2014:
Art. 12. Caso não sejam identificadas durante o ano civil transações ou propostas a que se referem os artigos 8º, 9º e 12, as pessoas referidas no artigo 1º deverão declarar tal fato ao COFECI/CRECI, até o dia 31 de janeiro do ano seguinte.

Ao leitor desapercebido cabe ressaltar que a comunicação obrigatória ao COAF do qual o ato administrativo em comento deverá ser feita mesmo que não se formalize a transação. Segundo a resolução transações ou propostas, são passíveis de comunicação onde estas últimas poderão configurar o crime tentado de lavagem de dinheiro ou outro ilícito penal, quando admissível a tentativa.

O grande problema reside no fato de que muitas empresas não acompanham a evolução legislativa e tecnológica, tornando-as obsoletas e mais suscetíveis à responsabilização administrativa (e criminal) que, a depender do grau de gravidade e incidência dos atos não declarados, importará em consequências mais nefastas para o administrador e a pessoa jurídica do que se pode imaginar.

Por isso que é tão importante que aqueles que praticam a promoção e venda imobiliária estejam sempre informados e atualizados de modo a acompanhar o avanço da tecnologia, mas também saibam detectar possíveis transações suspeitas e quais são suas hipóteses, o que fica para o próximo artigo.
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[1] 31 de janeiro.

[2] Lei 9.613/1998,

[3] Art. 9º Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: (...) – revogado pela Lei n. 12.683/2012.

[4] Jornal do Brasil. Entrevista concedida ao jornalista Hugo Marques em 12/02/2006, apud DONINI, Antonio Carlos. Normas do COAF – combate à lavagem de dinheiro para o setor imobiliário. 1ª ed. Editora Klarear. São Paulo, 2007. Págs. 57 e 58.





David Hayashida - Especialista em Direito Criminal
Advogado Criminal atuante na área há mais de 13 anos na Cidade de Foz do Iguaçu/PR e região. Formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e com especialização em crimes contra a administração pública, economia popular e contra o sistema e financeiro, dentre outros.
Fonte: Artigos JusBrasil

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