O mercado imobiliário vem sofrendo com o Fisco, mais precisamente com o entendimento da fiscalidade quanto aos limites de enquadramento do Regime Especial de Tributação – RET às receitas obtidas com as vendas das unidades incorporadas.
O RET é um “regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação.” (Art. 1º da Lei 10.931/2004). Nos termos da Lei, é opcional ao contribuinte e a opção será efetivada quando atendidos cumulativamente dois requisitos: entrega do termo de opção ao RET na Secretaria da Receita Federal; e afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária. A Receita já se posicionou que, mesmo iniciada a obra, também será possível a opção da incorporação imobiliária no RET, hipótese em que o recolhimento dos tributos, na forma do regime especial, deverá ser feito a partir do mês da opção. As regras do RET estão disciplinadas nos Arts. 1 a 10 da Lei 10.931/2004, sem que se faça qualquer menção de limite de tempo quanto ao aproveitamento do benefício fiscal, ainda mais em razão de venda ocorrida em obra ou em unidades já finalizadas. E o debate entre incorporadora e Fisco se dá, justamente, em cima disso, tendo em vista o disposto no §2º do Art. 2º da Instrução Normativa RFB nº 1.435/2013.
Com o RET e para cada incorporação submetida ao regime, a incorporadora passa a pagar o equivalente a 4% (quatro por cento) da receita mensal recebida, ou 1% (um por cento) para os projetos de incorporação de imóveis residenciais de interesse social (§6º do Art. 4º da Lei 10.931/2004). A alíquota unificada do RET corresponde ao pagamento mensal de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. Na incidência normal, a alíquota somaria 6,73%, representando o RET uma economia de 2,73% para as incorporadoras.
Para o aproveitamento do benefício fiscal do RET, a Lei estabelece uma série de contrapartidas, obrigações ou restrições, constituindo verdadeiros ônus às incorporadoras em benefício da segurança jurídica dos adquirentes e fornecedores e da arrecadação tributária. São elas: impossibilidade de sujeitar os créditos de RET a parcelamento fiscal (Art. 6º da Lei 10.931/2004); escrituração contábil segregada para cada incorporação (Art. 7º da Lei 10.931/2004); e, talvez o mais importante, a criação de patrimônio de afetação (Art. 31-A a 55 da Lei 10.931/2004) com todas as obrigações decorrentes disso tal como a constituição de uma Sociedade de Propósito Específico.
Vale dizer que a Lei 10.931/2004 foi criada no contexto dos crimes cometidos pela ENCOL no mercado imobiliário nos idos dos anos 80 onde se viu desde sonegação de impostos, desvio de dinheiro até contabilidade paralela (caixa dois) e créditos em contas de empresas abertas em paraísos fiscais e transferência de ativos das subsidiárias do grupo para diretores e familiares de Souza). O golpe imobiliário da ENCOL culminou na falência do grupo em 2010 e um prejuízo à sociedade que superou a casa de R$ 1,8 bilhão, atingindo mais de 50 mil pessoas diretamente.
Com a Sociedade de Propósito Específico, o patrimônio de afetação e a responsabilidade pessoal do incorporador quanto aos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação (§2º do Art. 31-Aº da Lei 10.931/2004), a Lei entendeu garantida também a consecução da incorporação correspondente e a entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. A constituição do patrimônio de afetação se dá pela averbação de termo firmado pelo incorporador e, quando for o caso, também pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno, no Registro de Imóveis, de acordo com as normas que rege a matéria. Averbado e escriturado à parte, o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva, inclusive as tributárias, como se observa do Art. 4º [1] da Instrução Normativa RFB nº 1.435, de 2013.
Em resumo, a Lei 10.931/2004 impõe que se crie um CNPJ específico para o empreendimento e as receitas e despesas ficam restritas àquela obra. Não podem ser afetados, dessa forma, caso a holding ou outro empreendimento da mesma empresa passe por problemas financeiros. Em contra-partida a essas garantias aos adquirentes e obrigações societárias e imobiliárias, que geram um custo grande à incorporação, a Lei 10.931/2004 buscou compensar as incorporadoras com o RET, reduzindo a carga tributária em 2,73% sobre o total das receitas obtidas.
No âmbito da Receita Federal, o Regime do RET – instituído pelo art. 1º e seguintes da Lei nº 10.931/2004 – foi regulamentado pela Instrução Normativa RFB nº 934, de 27 de abril de 2009, posteriormente revogada pela vigente Instrução Normativa RFB nº 1.435, de 2013. A atual normativa secundária – que não possui caráter de lei diga-se de passagem – prevê no §2º do Art. 2º da IN SRF nº 1.435/2013, em repetição ao que previa o §2º do Art. 1º da IN SRF nº 934/2009 o seguinte: “Estende-se a condição de incorporador aos proprietários e titulares de direitos aquisitivos que contratem a construção de edifícios que se destinem à constituição em condomínio, sempre que iniciarem as alienações antes da conclusão das obras.” É nesta parte final que a receita estabelece o limite temporal quanto ao benefício tributário. O entendimento atual do Fisco é de que só há aplicação do RET até o “habite-se”, documento que comprovaria a situação prevista no §2º do Art. 2º da IN SRF nº 1.435/2013, qual seja, “conclusão das obras”. Assim, pela interpretação da Receita, com base no §2º do Art. 2º da IN SRF nº 1.435/2013, somente as vendas realizadas durante a obra se sujeitam ao RET, mesmo que a empresa receba esses valores depois de a obra já estar pronta.
Diante desse panorama, onde se observa uma interpretação restritiva fundada em instrumento normativo secundário, sem qualquer limitação do gênero na lei, verifica-se que o contexto econômico problematiza ainda mais o tema ao se perceber que, com a crise do país, o mercado imobiliário vem sofrendo com os grandes volumes de distratos e estes, quando acontecem, na maioria esmagadora o imóvel é devolvido para revenda depois que a obra já está concluída. O novo estoque de unidades gerado será, portanto, novamente comercializado pelas incorporadoras em alíquota que, segundo entendimento da Receita, é de 6,73%, causando um aumento da carga tributária para as incorporadoras e minando o “bônus” que a Lei nº 10.931/20 havia instituído em face dos inúmeros ônus previstos em contrapartida.
Vale dizer que a própria Receita em 2014 mostrou dúvidas quanto a correta aplicação da normativa. Num primeiro momento, fez prevalecer o §2º do Art. 2º da IN SRF nº 1.435/2013 em detrimento do art. 1º e seguintes da Lei nº 10.931/2004, limitando o RET às vendas realizadas antes do “habite-se”:
“A opção da incorporação imobiliária no Regime Especial de Tributação (RET), instituído pelo art. 1º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, será considerada efetivada quando atendidos os requisitos previstos no art. 2º dessa lei, e na Instrução Normativa da RFB vigente. É possível a opção da incorporação imobiliária no RET, ainda que iniciada a obra, hipótese em que o recolhimento dos tributos, na forma do regime especial, deverá ser feito a partir do mês da opção. Não existe previsão legal para opção retroativa pelo RET. Considerando que a opção pelo regime é irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis da incorporação, o RET será adotado em relação às receitas recebidas após a efetivação da opção, referentes às unidades vendidas antes da conclusão da obra, as quais componham a incorporação afetada, mesmo que essas receitas sejam recebidas após a conclusão da obra ou a entrega do bem. Não se sujeitam ao RET as receitas decorrentes das vendas de unidades imobiliárias realizadas após a conclusão da respectiva edificação.”
Posteriormente, no mesmo ano de 2014, o Fisco mudou de opinião e se posicionou favoravelmente ao contribuinte, fazendo cumprir os termos da Lei nº 10.931/2004, sem atribuir qualquer limite ao aproveitamento do RET. Essas são as conclusões da Solução de Consulta nº 7045/2014:
“É irrelevante, para efeito de submissão ao RET e, por conseguinte, de realização do pagamento unificado dos tributos devidos à razão de 4% (quatro por cento) da receita mensal auferida com as vendas de todas as unidades imobiliárias do empreendimento, o momento em que estas são realizadas, se antes ou depois da extinção do regime de afetação por meio da averbação da sua baixa no competente Registro de Imóveis.”
Nos termos do entendimento consolidado nesta Solução de Consulta, cumprida as exigências legais, mais precisamente constituída a Sociedade de Propósito Específico e o patrimônio de afetação, a alíquota de 4% se aplica a todas as receitas originárias dos imóveis comercializados, sem limitação temporal em face à conclusão da obra ou à expedição do “habite-se”. Vale o benefício fiscal para venda realizada durante a obra ou depois de sua conclusão.
Por esses dias, nova mudança jurisprudencial se colocou em Solução de Consulta publicada em 27/08/2018. Novamente, o posicionamento interno da Receita mudou, agora em prejuízo às incorporadoras. A Solução de Consulta Disit/SRRF nº 2009/2018, vinculando-se ao entendimento esposado à Solução de Consulta COSIT nº 244/2014, reforçou a necessidade de obra para o aproveitamento do RET e limitou a alíquota única às receitas originárias de vendas realizadas antes do “habite-se”, ainda que recebidas posteriormente:
“(…) o RET será adotado em relação às receitas recebidas após a efetivação da opção, referentes às unidades vendidas antes da conclusão da obra, as quais componham a incorporação afetada, mesmo que essas receitas sejam recebidas após a conclusão da obra ou a entrega do bem. Não se sujeitam ao RET as receitas decorrentes das vendas de unidades imobiliárias realizadas após a conclusão da respectiva edificação.”
Ora, ainda que a Solução de Consulta seja instrumento normativo secundário e com efeito vinculante perante a Receita Federal, estas respaldam o contribuinte que as aplicar. A mudança de posicionamento do Fisco quanto ao tema mostra o quanto é tormentoso o assunto, internamente à Receita inclusive. Ademais, em termos de segurança jurídica e imputação de penalidades, as diferentes posições devem ser levadas em consideração, não podendo o Fisco imputar penalidades no período em que vigia posicionamento diverso do ora firmado, sob pena de infringir a norma geral dos Arts. 100, III, e 112 ambos do CTN (Lei 5.172/66)
O fato é que, no tópico, o §2º do Art. 2º da IN SRF nº 1.435/2013 extrapolou, trazendo limite fático (“conclusão da obra”) que inexiste nos dispositivos legais que tratam sobre o RET na Lei nº 10.931/2004. Em outras palavras, o §2º do Art. 2º da IN SRF nº 1.435/2013 contrariou a Lei nº 10.931/2004, infringindo o princípio da legalidade, em completa dissonância com o Art. 97 do CTN e o Art. 150, I, da Constituição Federal. A ilegalidade da IN SRF nº 1.435/2013 foge inclusive à função extrafiscal da Lei que instituiu o RET para equacionar os custos das demais obrigações estabelecidas às incorporadoras para a garantia do bom funcionamento do mercado imobiliário. Com este desequilíbrio, a IN SRF nº 1.435/2013 gera uma carga tributária excedente de 2,73% às incorporadoras, além dos custos operacionais já criados pela Lei nº 10.931/2004. A sugestão é que as incorporadoras ingressem com ação no Judiciário, exigindo o restabelecimento da legalidade e o aproveitamento do RET. Falo diretamente em judiciário, uma vez que, em face do argumento constitucional, os Órgãos Administrativos não poderão se manifestar contra a ilegalidade e a inconstitucionalidade da IN SRF nº 1.435/2013 em face dos limites de conhecimento da competência administrativa. Assunto, o processo administrativo representará mais custos para as incorporadoras e não dará a solução que o problema merece.
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[1] Art. 4º O terreno e as acessões objeto da incorporação imobiliária sujeita ao RET, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, não responderão por dívidas tributárias da incorporadora relativas ao Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), à Contribuição para o PIS/Pasep e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), exceto as calculadas na forma do art. 5º sobre as receitas recebidas no âmbito da respectiva incorporação.
Parágrafo único. O patrimônio da incorporadora responderá pelas dívidas tributárias da incorporação afetada.
Florence Haret - Sócia da área tributária do NHM Advogados. Conselheira do Conselho Municipal de Tributos. Professora de pós-graduação em direito tributário em diversas instituições.
Fonte: Jota
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