Uma das mais relevantes conquistas da nossa ordem jurídica, implantada em nosso país após o advento da Constituição Federal de 1988 e recepcionada e ampliada pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Código Civil de 2002, foi a introdução, em todos os negócios jurídicos, das “cláusulas gerais” de boa-fé objetiva e da função social do direito, que passam a lhes ser implícitas.
Isso permite que o juiz, quando provocado, “penetre” no interior dos contratos, levantando a ponta do véu que os encobre, na feliz expressão dos doutrinadores alemães, para aferir se estão eles a produzir efeitos positivos, inclusive para a sociedade como um todo, e se a conduta das partes em todas as suas fases, desde as tratativas, é a que teriam pessoas honestas.
A boa-fé, que no passado constituía mera exortação ética que se dirigia aos contratantes, converteu-se em dever jurídico, desempenhando no Código Civil de 2002 uma tríplice função: a hermenêutica, ao se transformar em método de interpretação dos negócios jurídicos (artigo 113); a de fiscal da conduta das partes, na sua execução (artigo 422); e a de equilibradora da equação econômica dos contratos (artigo 478).
Como figuras parcelares da boa-fé negocial, e a ela inerentes, surgiram os princípios da lealdade, da confiança e da preservação dos contratos, que constituem, hoje, o oxigênio da segurança jurídica, sem a qual nenhum mercado sobrevive.
A enorme densidade econômica e social de que se revestem os negócios imobiliários, que tornam realidade o mais acalentado sonho de todos os brasileiros, que é o de adquirir a casa própria, está a exigir, cada vez mais, que eles se alicercem na transparência, na lealdade e, principalmente, na mais absoluta segurança jurídica.
E acreditamos que três pilares ajudem a construir esse resultado:
• a segurança jurídica de todos os envolvidos (do dono do terreno ao adquirente final), de forma a garantir que todos recebam, na proporção combinada, o retorno do investimento feito;
• a garantia de que os negócios sejam sustentáveis, ou seja, possuam viabilidade econômica definida com base em padrões validados pelo mercado;
• a transparência integral desde a fase de planejamento.
A preocupação prioritária do comprador e do investidor, especialmente estrangeiro, é com a segurança e a sustentabilidade do empreendimento, e não mais com a inflação, já que, quanto a esta, foram criados remédios econômicos, mas nenhuma panaceia contra a insegurança jurídica.
Ao lado dos cálculos matemáticos para que se sustente a estrutura do edifício, o mercado tem que passar a construir, desde os seus alicerces, a segurança jurídica do empreendimento no interesse majoritário dos incorporadores, construtores, corretores e adquirentes de unidades.
Para pavimentar essa estrada, alguns elementos nos parecem extremamente úteis:
• o patrimônio de afetação;
• no caso de operações complexas, como as operações hoteleiras e de built to suit, a celebração prévia de todos os contratos que serão necessários, tais como construção, gestão hoteleira, etc.;
• as regras de governança corporativa;
• as cláusulas de remuneração atrelada ao desempenho.
Como a conscientização maior dos direitos, e dos instrumentos para defendê-los e exercê-los por parte de uma sociedade cada vez mais informada, pode inundar o Poder Judiciário por uma oceânica avalanche de ações, a preocupação com o equilíbrio ético e econômico dos contratos é missão de todos, inclusive dos advogados que atuam no mercado imobiliário.
É importante louvar e ressaltar a relevância do paciente e produtivo trabalho que vem se desenvolvendo, reunindo magistrados, membros do Ministério Público, advogados e empresários do setor imobiliário, em sucessivos encontros, com o objetivo de encontrar melhores práticas para a formatação dos contratos imobiliários, na esperança de, pelo menos, mitigar os conflitos que hoje ainda existem no mercado.
Divergências que antes pareciam irreconciliáveis, entravando o crescimento do setor, foram pacificadas, sendo algumas delas convertidas em súmulas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Sobre aquelas em que ainda não se logrou um consenso, foram criadas comissões mistas, que prosseguem nos debates.
Essa proposta coincide com o movimento necessário de desjudicialização da sociedade brasileira, para que se alivie a asfixia a que está condenado o Poder Judiciário em razão direta do volume quase incontrolável da demanda.
A tendência saudável do mercado é a de criar práticas uniformes, que se submetam aos princípios já referidos da boa-fé e da função social, velando pelo equilíbrio ético e econômico dos contratos.
Estamos fortemente convencidos de que o desenvolvimento do mercado imobiliário, tão importante para a sociedade, passa, necessariamente, pela confiança recíproca entre incorporadores, investidores e adquirentes de unidades.
Para usar uma expressão da moda, “as vozes das ruas” e dos canteiros de obras clamam por segurança jurídica, e o mercado imobiliário não se fez, perdoem o trocadilho inevitável, imóvel, mas, ao contrário, antecipou-se e tem dado provas de que caminha a passos firmes nessa direção.
Como advogado com profundas e inabaláveis raízes, alegra-me essa consciência, e me encho de orgulho por participar, de alguma forma, dessa construção típica dos novos tempos: um mercado imobiliário seguro, ético e sustentável.
Sylvio Capanema - Membro do Conselho Editorial e Desembargador aposentado do TJERJ.
Fonte: Justiça & Cidadania
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