quinta-feira, 2 de julho de 2020

Os novos procedimentos de gestão e alienação dos imóveis públicos


Não são raras as notícias de imóveis públicos, geradores de despesas, desprovidos de finalidade e/ou abandonados, o que eleva a probabilidade de que estejam a descumprir o princípio constitucional da função social, comando constitucional que também alcança a propriedade pública.

A exposição de motivos da MP 915/19 reconhecia a existência de um "conjunto importante de imóveis em risco iminente de colapso, colocando em risco a vida de pessoas, a destruição do meio ambiente e a perda do patrimônio público", indicando, a título de exemplo, o Edifício Wilton Paes de Almeida, que colapsou em maio de 2018.

A MP 915/19 e agora a Lei 14.011/20 oferecem, nem sempre de forma original, ferramentas que o gestor poderá utilizar, sem impor a alienação como saída única aos problemas vivenciados. Ao contrário, a melhoria da gestão dos bens públicos, especialmente por meio do contrato de que trata o art. 7 º da Lei, poderá desincentivar a opção pela transferência patrimonial.

A alienação de bens públicos, por meio de distintos procedimentos, não é novidade.

A Lei 9636/98, mesmo antes de ser alterada, já prescrevia que à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) caberia pronunciar sobre a oportunidade e conveniência da alienação, a ocorrer quando não houvesse interesse público, econômico ou social em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniência quanto à preservação ambiental e à defesa nacional, no desaparecimento do vínculo de propriedade. A Lei 8.666/93 também cuida do tema, com destaque para o art. 17.

O que chama atenção no novo regramento é a intenção em acelerar e flexibilizar o procedimento que conduz à alienação. Não se transferem bens públicos sem que se observem passos importantes, ainda que se cuide de doação. Logo, ponto crucial envolve saber o valor do bem, etapa que demanda tempo e, quase sempre, custos. Há muito a comentar sobre isso, diante do teor da Lei.

Devemos, todavia, no que toca à alienação, concentrar no que estabelece a nova redação do art. 24-A da Lei 9.636/98, diante dos parágrafos que a ele foram acrescidos pela MP 915/19, agora Lei 14.011/20.

A redação é sofrível, em especial porque não há uma sintonia imediata entre os dispositivos. O art. 24-A caput permite a venda direta de bens na hipótese de concorrência ou leilão deserto ou fracassado. Assim, o insucesso do procedimento licitatório anterior já permitiria a venda direta dos bens.

Entretanto, o novo §1º do mesmo artigo prevê, diante da mesma realidade (licitações desertas ou fracassadas), a possibilidade de se realizar uma segunda concorrência ou leilão público com desconto de 25% sobre o valor de avaliação vigente.

A hipótese de venda direta é mencionada apenas no §2º, que a condiciona a prévia realização de um segundo procedimento licitatório “mal sucedido”. Ou seja, a venda direta de bens imóveis da União, nos moldes desenhados pela nova lei, apenas se viabilizaria após dois procedimentos licitatórios.

Logo, mesmo que se possa extrair do caput do art. 24-A uma autorização para a venda direta, após exaurida uma tentativa de licitar, a interpretação de todos os dispositivos seria a de que a venda direta pressuporia duas experiências não exitosas anteriores.

Ora, se a ideia era flexibilizar e imprimir maior velocidade, a venda direta já poderia suceder uma tentativa de fazê-la via procedimento licitatório, o que de resto não seria algo muito distante, na essência, do que já autoriza o art. 24, V, da Lei Geral de Licitações e Contratos.

A crítica mais importante, porém, não é essa. A principal observação diz respeito ao percentual de 25% de desconto sobre o valor da avaliação vigente. Novamente, de se destacar a imprecisa redação que gera uma avalanche de dúvidas, impossíveis de serem todas elas expostas aqui.

O que se pode afirmar é que o §1º do art. 24-A prevê a incidência do desconto de 25% na segunda licitação. A diminuição do valor do bem impulsionaria a atratividade do certame e facilitaria a consumação da venda. Não se nega a lógica segundo a qual valores mais baixos poderiam potencializar a participação na licitação. Mas essa lógica é aderente apenas aos casos de certames desertos, assim definido pela ausência de interessados. Casos em que houve interessados na licitação, mas todos colapsaram, hipótese que configuraria licitação fracassada, não deveriam autorizar o desconto.

A isso se soma o fato de que a lei estabelece, tanto na segunda licitação, quanto na venda direta, um percentual de 25% como desconto aplicável.

Pela literalidade dos dispositivos (§1º e §2º do art. 24-A), não se trata de teto máximo, o que permitiria às autoridades competentes analisar o apetite do mercado e então quantificar, motivadamente, qual o percentual a ser utilizado, travado em 25%.

Claro que se pode cogitar de uma infelicidade do legislador que desejava apenas impor um limite, sem, contudo, ditar um único percentual. Pode até ser defendida tal intepretação. Mas fato é que a Lei não trouxe a mágica e importante palavra “até” .

O desconto, na literalidade da regra, é de 25% e não de até 25%, o que soa inapropriado porque impede que a União possa eventualmente alcançar o resultado desejado (venda) com menor sacrifício, o que, naturalmente, privilegiaria o interesse público .

A situação assume um ar ainda mais curioso, quando se verifica que o § 5º do mesmo art. 24-A, tratando especificamente do leilão eletrônico para a venda dos bens, retoma a lógica do desconto, mas deixa claro que 25% são um patamar máximo. O legislador prevê, para o caso de leilão eletrônico, descontos sucessivos até a trava final.

Ora, qual a explicação possível para que em casos de concorrências/leilões presenciais ou vendas diretas o desconto fosse de 25%, enquanto esse mesmo percentual é o ponto de chegada para descontos em leilões eletrônicos? Vale dizer: está a se tratar dois leilões de maneira distinta. Pior: está a se dar mais desconto na venda direta, e de plano/ de imediato, do que a venda antecedida por um leilão eletrônico.

De pronto, devemos registrar que o incômodo não está em se reduzir o valor do bem. Situações concretas podem justificar concluir que os custos com a manutenção do bem ou com reformas que se revelam imperativas. O incômodo está em cravar um único percentual como o adequado, desprezando as circunstâncias várias do caso concreto. O incômodo está em se tratar licitações desertas e fracassadas como se traduzissem, nos dois casos, uma reação do mercado ao valor inicialmente apresentado pela União. Se são descuidos, deveriam ter sido corrigidos, evitando que a Lei 14.011/20 repetisse a MP 915/19. Como tal não foi feito, só resta a correção ao intérprete.

Já em relação à gestão dos imóveis públicos, entende-se que a Lei 14.011/19 trouxe em seu art. 7º um significativo avanço. Esse dispositivo trata do que a Lei denominou de "contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos". Inicialmente, cabe dizer que essa espécie de contrato não faz parte da categoria “contrato de gestão”, previsto no art. 51, II, da Lei 9.649/98 (Agências Executivas) e na Lei 9.637/98 (Organizações Sociais). Trata-se de instituto totalmente diverso.

A definição dessa espécie de contrato é posta no § 1º do art. 7º da Lei 14.011/20, que o aponta como um único contrato no qual são reunidos os diversos serviços necessários para o gerenciamento, uso e manutenção dos imóveis onde funcionam as repartições públicas. A rigor, esse é o conhecido modelo de contrato de facilities. Ou seja, o “contrato de gestão para ocupação” é um contrato administrativo, nos termos do art. 54 e seguintes da Lei 8.666/93, cujo objeto preponderante são serviços como os de limpeza, recepcionista, copeiragem, vigilância, brigadista, manutenção predial e outros.

Essa espécie de contrato já é bastante difundida na iniciativa privada e vem ganhando espaço no setor público. No âmbito do próprio Tribunal de Contas da União, já havia o Acórdão 1214/13 — Plenário, que expressamente admitia a reunião de diversos serviços necessários para o funcionamento dos órgãos e entidades públicas em um único contrato.

Acontece, entretanto, que esse modelo admitido no emblemático Acórdão 1214/13 ainda era um tanto quanto tímido, pois não transferia para a empresa contratada o gerenciamento desses serviços, assim como não compreendia que a prestação desses serviços deve estar integrada com a gestão do imóvel no qual funciona a unidade da Administração Pública. Esse modelo mais avançado de contratação de facilities, conhecido como falicities management, foi admitido pelo TCU nos Acórdãos 929/17 — Plenário e 10264/18 — 2ª Câmara.

Ainda assim, entendemos que o legislador andou bem ao prever tal instituto na legislação. Embora haja algumas críticas à redação do art. 7º da Lei 14.011/20, deve-se destacar sua relevância por dois aspectos positivos: a) a cristalização no ordenamento jurídico da possibilidade de contratação do modelo acima indicado; b) e o aprimoramento do modelo pela possibilidade de inclusão no escopo do contrato de equipamentos, materiais e obras.

Quanto à possibilidade jurídica de contratação nos moldes indicados no art. 7º, § 1º, da Lei 14.011/19, é importante notar que a reunião de serviços em um único contrato é sempre controversa no ordenamento jurídico pátrio em razão da regra do parcelamento do objeto, prevista no art. 23, § 1º, da Lei 8.666/93. Nesse aspecto, andou muito bem a norma ao consolidar tal possibilidade na legislação. Porém, na linha do que orienta o TCU nos Acórdãos retromencionados, deve sempre o gestor fazer uma profunda análise de mercado e, se constatada a deficiência das empresas de isoladamente atenderem a demanda, admitir no edital a presença de consócios e/ou de subcontratação, com limites claros para tanto.

De outra banda, entendemos que a interpretação literal do dispositivo pode gerar algumas restrições na aplicação do instituto, diminuindo os seus potenciais ganhos para a Administração Pública brasileira.

Nesse ponto, em nossa leitura, não cabe restringir a aplicação do art. 7º aos órgãos e entidades federais. A única linha de argumentação que poderia indicar essa interpretação é a que se apega à ementa da Lei 14.011/20, cujo conteúdo enuncia que o diploma se refere ao aprimoramento dos procedimentos de gestão e alienação dos imóveis da União.

Ora, a prevalecer tal hermenêutica, o art. 7º em estudo sequer seria aplicado às autarquias e fundações públicas federais. O fato é que, considerando o teor do seu caput e dos seus parágrafos, o dispositivo em comento é uma verdadeira "norma geral", no sentido do art. 22, XXVII, da Constituição, motivo pelo qual é dotado de caráter nacional e aplicável às esferas federal, estadual, distrital e municipal. Notemos que a norma trata de reunião de serviços, bens e até de obras em um único contrato, assim como também de vigência contratual (art. 7º, § 2º, II), aspectos sensíveis ao sistema de contratação pública brasileiro como um todo e, por isso, típicos de lei nacional.

Outra possível interpretação restritiva descabida seria a de que o modelo de contratação de facilities management, ou de gestão da ocupação, não seria aplicável aos imóveis ocupados pela Administração Pública na qualidade de locatária. Essa restrição até teria guarida se considerarmos o texto do caput do art. 7º, que se refere ao "contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos", o que não abrangeria os imóveis privados ocupados pelo Poder Público a título de locação.

Por outro lado, essa leitura restritiva não se coaduna com os potenciais ganhos de eficiência trazidos pelo instituto para a Administração Pública, que por diversas vezes atua se valendo de imóveis privados. Não há razão para vedar a contratação de gestão da ocupação nos termos do § 1º do art. 7º da Lei nº 14.011/20 nas ocasiões em que a Administração Pública funciona em imóvel locado. Os ganhos trazidos pelo modelo nesses casos serão os mesmos oferecidos no caso de funcionamento em imóvel público. O que é inaplicável para o caso dos imóveis locados é a hipótese do § 2º do mesmo art. 7º, que admite a inclusão de obras no objeto do contrato. Isso porque, a princípio, seria irrazoável o Poder Público pagar por obras a serem realizadas em imóveis particulares.

Desse modo, o ideal seria que o caput do art. 7º não tivesse restringido o conceito do instituto aos imóveis públicos. Porém, ainda assim, não encontramos óbices à sua interpretação mais ampla, abarcando também os casos em que a Administração funcione em prédios locados. Nesse aspecto, cabe registrar que mesmo antes da Lei 14.011/20 o TCU já admitia a contratação nos moldes de facilities, sem a restringir a imóveis públicos.

Em relação ao aprimoramento dos processos de gestão dos imóveis públicos, enxergamos que o avanço trazido pelo art. 7º em estudo é imenso. Como já destacado, a possibilidade de reunir em um único contrato os serviços, materiais, equipamentos e obras necessários para o gerenciamento, uso e manutenção do imóvel parte do pressuposto da necessidade de integração entre pessoal, processos, equipamentos, tecnologia e edificação.

Além disso, ao entregar ao contratado a gestão dos serviços, bem como parte considerável do gerenciamento do imóvel, a Administração se concentra na sua atividade fim, buscando uma melhor entrega ao cidadão. Isto é, o Poder Público reconhece que, em dada medida, quem melhor sabe gerir espaço e gerencias serviços essenciais para o funcionamento do prédio é a empresa terceirizada especializada em tal atividade. Entretanto, é preciso constatar a medida ideal dessa delegação ao terceirizado, pois muitos dos aspectos relativos à gestão e operação do imóvel estão conexos com o core business do órgão ou entidade. Essas questões deverão ser sempre muito bem enfrentadas no planejamento da contratação e expressas nos instrumentos que seguem anexo ao edital.

Não resta dúvida que o § 2º do art. 7º trará significativo impacto nas decisões referentes à gestão do patrimônio imobiliário do Poder Público, inclusive no que diz respeito à conveniência da alienação de certos prédios. É sabido que o mau emprego (e até abandono) de algumas edificações públicas, muitas vezes, decorrem de um problema orçamentário. Isto é, ante a falta de recursos orçamentários para reformar os imóveis de sua propriedade, a Administração Pública opta por abandonar tais prédios e passar a funcionar em imóveis locados. Com isso, a solução para o imóvel de propriedade do Estado acaba sendo a alienação.

O § 2º do art. 7º da Lei 14.011/20 autoriza a inclusão de obra no contrato de gestão da ocupação (inciso I), com a inclusão do valor da obra diluído nas parcelas mensais a serem pagas durante a vigência do contrato, que poderá durar até 20 anos (inciso II), a depender do nível de investimento inicial exigido do contratado.

Enfim, todo esse modelo exige um elevado grau de qualificação dos agentes de contratação do Poder Público, assim como um profundo planejamento e gerenciamento dos riscos envolvidos na questão. Diversas serão as questões que envolverão essas contratações, sobretudo no caso em que haja previsão de obras. Esse é um modelo a ser construído. Não há dúvidas que a Administração Pública brasileira é capaz. Só depende de esforço e sintonia entre Administração, mercado e controle.

Cristiana Fortini é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.
Rafael Sérgio de Oliveira é procurador da AGU, doutorando em Ciências Jurídico-Políticas, mestre em Direito, pós-graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa. Participou do Programa Erasmus+ na Università degli Studi di Roma. Fundador do Portal L&C. Palestrante e professor em diversos cursos de pós-graduação no Brasil. Co-autor, juntamente com professor Victor Amorim, do livro "Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019", publicado pela Editora Fórum, 2020.
Fonte: Revista Consultor Jurídico

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