quinta-feira, 16 de julho de 2020

Os limites do caso fortuito e da onerosidade excessiva


Os instrumentos de que o Direito Civil dispõe para a crise contratual, particularmente caso fortuito e onerosidade excessiva, nem sempre são suficientes para enfrentar, com justiça, boa parte das situações hoje vivenciadas com a pandemia Covid-19. Essa parece ser uma observação trivial, mas que parece esquecida. É necessário olhar para a floresta, e não para cada árvore isoladamente [1].

Os instrumentos de liberação do devedor, por fato superveniente à contratação, assentam-se sobre premissas de justiça comutativa de uma troca econômica em particular. O caso fortuito e a onerosidade excessiva, conquanto justifiquem a intervenção do Estado-juiz para aliviar a força vinculante dos contratos, são instrumentos que não foram forjados sob a premissa de justiça social, distributiva ou de solidarismo.

Se, após a contratação, advém circunstância que torna o cumprimento do contrato impossível, excessivamente oneroso ou desequilibrado com relação à contraprestação respectiva, o juiz está autorizado a agir. Ele pode liberar o devedor de sua obrigação, quando determina o retorno das partes a seu stautus quo ante [2]. Entretanto, também pode reequilibrar as prestações quando constata certas condições cujo exato teor é discutido pela doutrina e jurisprudência.

São esses os institutos que, desde o começo da pandemia, levaram milhares de pessoas aos fóruns, postulando a exoneração de suas dívidas tributárias, o término de contratos educacionais ou, na disputa mais comum, a redução e moratória de aluguéis.

Algumas pistas sobre a insuficiência desses institutos podem ser alcançadas fora do Direito Civil. Daniel Goldberg, em instigante artigo, se propõe a avaliar a justiça da intervenção econômica do Estado na economia, tendo como pano de fundo esse período de crise [3]. Ele não está preocupado com o Direito Civil e tampouco com os institutos sob nossa consideração. Entretanto, propôs que o Estado, no socorro aos entes privados, deva guiar-se pelo "critério dos CPFs".

Tome-se em consideração o exemplo da aviação. Com as restrições de circulação, as companhias aéreas passam por sérias dificuldades. O Estado deveria auxiliar sua recuperação? Em princípio, sim, pois trata-se de setor estratégico, sem o qual a própria circulação pelo território nacional fica prejudicada e, além disso, pelo critério do CPF, muitas pessoas estão envolvidas nessa atividade e resguardá-la minimiza o desemprego e o empobrecimento das famílias.

Entretanto, como promover essa intervenção? A injeção de crédito na empresa pode favorecer empresários que, de modo displicente, endividaram-se demasiadamente e, mais que isso, uma vez salvos, está dado o sinal de que novos descuidos na condução da empresa poderia levá-los a novos resgates (o que favorece o moral hazard). Assim, em situações de insolvência, empresas devem ser salvas, mas empresários não. Em situações de envolvem liquidez, ou seja, crise de crédito e de fluxo de pagamento, outras soluções podem ser pensadas. Nosso intuito aqui não é discutir essas soluções propostas, mas apenas indicar que elas são razoáveis e que podem refletir uma tratamento adequado do problema.

Esse critério de justiça leva-nos, no plano individual, a questionar se a onerosidade excessiva poderia atender adequadamente ao teste do CPFs? A resposta é negativa. Tome-se a situação de dois locatários, concorrentes entre si, que pretendem não pagar 70% de seu aluguel durante a crise. O primeiro locatário, ao longo dos anos foi precavido, fez provisões que lhe dão fôlego para manter o emprego de todos os seus funcionários, mas precisa obter a redução do aluguel para equilibrar-se. Vamos chamá-lo locatário solidário com seus trabalhadores. O segundo locatário também fez provisões, mas, para não se desfazer delas e manter pagamentos a empresas coligadas, demitiu seus funcionários e, ainda, deseja reduzir o aluguel. Este segundo, vamos denominá-lo oportunista.

Sob os institutos próprios do Direito Civil, o julgador depara-se com uma pequena visão do problema, que lhe é trazida pelos próprios locatários. Deste modo, sabe que, com as portas fechadas, eles nada faturam, pois as normas sanitárias impuseram o fechamento de ambos estabelecimentos. Em sua defesa, os locadores pouco poderão dizer sobre provisões e rescisões trabalhistas porque pouco conhecem dessa realidade. Muitas decisões vindas de nosso judiciário reconhecem a onerosidade e vêm impondo, liminarmente, aos locadores a redução de 70% do aluguel durante a pandemia. Se for esta a solução nesses dois casos hipotéticos, o julgador terá premiado o empresário oportunista tanto quanto o solidário. Se o juiz pudesse ter a visão da empresa em todos os seus feixes contratuais, poderia valer-se do critério dos CPFs, para prestigiar o solidarista, e não o oportunista. No entanto, o juiz não tem informações negociais e contratuais suficientes para tomar essa decisão. Se, nesses casos, puder o juiz prestigiar soluções negociadas, minimizam-se as chances de intervenções iníquas.

Em outro exemplo, vale lembrar que o legislador alemão adotou diretamente solução uniforme de intervenção econômica ao promulgar lei de enfrentamento à crise pandêmica. Para tanto, eximiu locatários de despejo [4]. A lei foi promulgada sem qualquer consideração ao critério dos CPFs. Com isso, grandes locatários, empresas multinacionais anunciaram que deixariam de pagar seu aluguel. Isso provavelmente afetaria tanto os pequenos locadores, que investiram seus recursos de aposentadoria na aquisição de imóveis, quanto grandes fundos de investimento imobiliário. Diante da pressão social, alguns locatários anunciaram que voltariam atrás e, assim, deixariam de pagar apenas os grandes locadores, mas não os pequenos.

Regras pontuais de intervenção na Justiça contratual não tomam em consideração a visão ampla do problema. Quando utilizadas em crises que impõem riscos a muitos atores, elas atribuem ao devedor o poder de escolher quais relações contratuais são mais importantes para si, o incentivam a jogar o custo da crise para contratantes que têm menos poder negocial e menos capacidade de defesa judicial dos seus interesses. Sob essas circunstâncias, o Estado, na figura do juiz ou do legislador, deveria evitar a intervenção em contratos isolados, pois dificilmente poderia, assim, fomentar polícias públicas, resguardar-se contra moral hazard e também salvaguardar a igualdade entre os credores.

O devedor habilidoso irá se valer das regras de onerosidade excessiva para rever as dívidas que melhor lhe aprouver, partilhando seus riscos com alguns credores, notadamente aqueles que têm menos possibilidade de defesa judicial. Talvez por isso o Direito Civil venha, ao longo das décadas, negando a aplicação do caso fortuito às dívidas pecuniárias (na medida em que pagar não se torne impossível) [5] e da onerosidade excessiva à ruína econômica [6]. Quando o problema envolve a solvência, o devedor depende de instrumentos que estão para além do Direito Civil, precisando socorrer-se em recuperação, insolvência e falência. Para os consumidores, mais recentemente, discute-se o tema do superendividamento [7].

Esses são institutos que, grosso modo, procuram dar poder decisório aos próprios credores, pois são eles que assumem o risco da concessão de crédito e podem melhor que ninguém definir o nível de desconto necessário para proteção da capacidade de pagamento da empresa. Nesses procedimentos, o julgador tem condições mais adequadas de avaliar o complexo de feixes contratuais que caracteriza cada empresa, fazendo respeitar a paridade entre os credores. Melhorias certamente podem ser introduzidas para que tenhamos procedimentos mais eficientes nessa seara. Sob o critério do CPFs, há ai forma de proteger os trabalhadores, com manutenção da empresa ou consideração privilegiada de créditos trabalhistas.

Entre nós, talvez haja ênfase nos institutos de Direito Civil, dadas as limitações próprias dos procedimentos de recuperação empresarial e falência. O custo da recuperação faz com que ela não venha sendo utilizada por pequenas empresas [8]. Por esse motivo, é natural que estas procurem, com mais frequência, vale-ser de disputas com base na onerosidade excessiva.

As regras de insolvência também podem ser aprimoradas [9]. No momento atual, o Projeto de Lei nº 1397/20 propõe a adoção de procedimento de negociação preventiva, que garante àquele afetado pela crise espécie de moratória temporária ao pagamento de dívidas, resguardando-o contra execuções ao mesmo tempo veda a revisão contratual e estimula renegociação extrajudicial entre as partes [10].

O Direito deve ser visto como um sistema harmonioso, em que cada ferramenta tem uma função. O uso inadequado de uma das ferramentas não leva a resultados para os quais ela não foi desenhada.

Dada a multiplicidade de situações vividas em meio a esta pandemia, não é possível excluir, por completo, a aplicação das regras de caso fortuito e de onerosidade excessiva. O que dissemos, e aqui frisamos, é que tais institutos visam fins específicos e nem sempre serão aptos a captar a complexidade do fenômeno que vivemos. Seu uso deve ser feito com parcimônia, favorecendo o diálogo entre as partes. Por outro lado, há dúvidas razoáveis sobre sua adequação para o enfrentamento de todas as situações que a sociedade hoje vivencia em decorrência da pandemia.
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[1] A expressão e uma percuciente análise da situação hoje vivida pode ser vista em SZTAJN, Rachel; VERA, Flavia Santinoni; NÓBREGA, Flavianne Fernanda Bitencourt; SORRENTINO, Luciana Yuki Fugishita. Contratos em tempo de Covid19. In Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos – 15 Anos de ‘Direito & Economia’ dos Professores Rachel Sztajn e Décio Zylbersztajn. São Paulo: Almedina, 2020, capítulo 8. (no prelo).

[2] A inadequação do caso fortuito foi bem apontada por José Fernando Simão em "O contrato nos tempos da covid-19.. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio". Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323599/o-contrato-nos-tempos-da-covid-19--esquecam-a-forca-maior-e-pensem-na-base-do-negocio, acesso em 6/6.2020).

[3] "Determinadas empresas trarão um custo maior à sociedade com seu desaparecimento do que sua manutenção — e portanto devem ser salvas. Outras, infelizmente, não se enquadram nessa hipótese. Nesse caso, faz muito mais sentido (econômico e moral) proteger os CPFs mais vulneráveis do que fazer um cheque para a pessoa jurídica". (O teste dos CPFs: resgatando empresas em meio à pandemia. Disponível em https://braziljournal.com/o-teste-dos-cpfs-resgatando-empresas-em-meio-a-pandemia, acesso em 6/6/2020).

[4] NUNES-FRITZ, Karina. Lei alemã para amenização dos efeitos do coronavírus altera temporariamente o direito de locação. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/323138/lei-alema-para-amenizacao-dos-efeitos-do-coronavirus-altera-temporariamente-o-direito-de-locacao. Acesso em 6/6/2020.

[5] MONTEIRO PIRES, Catarina. Impossibilidade da Prestação. Coimbra: Almedina, 2018, p. 32-34.

[6] LARENZ, Karl. Base del Negócio Jurídico y cumplimento de los contratos. Trad. Carlos Fernandez Rodriguez. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956, p. 218

[7] RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Conselho francês rege casos de superendividamento. Disponível em https://www.conjur.com.br/2013-fev-13/direito-comparado-conselho-frances-rege-casos-superendividamento, acesso em 6/6/2020.

[8] NUNES, Marcelo Guedes. Crise, moratória e recuperação de empresas. Valor Econômico. São Paulo, 34.2020, p. E2.

[9] Para uma visão geral, vide GURREA-MARTÍNEZ, Aurelio. Insolvency Law in Times of COVID-19. Ibero-American Institute for Law and Finance, Working Paper 2/2020. Disponível em https://ssrn.com/abstract=3562685 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3562685, acesso em 20/6/2020.

[10] GODOY, Aline Mendes de; e BONATELLI, Luiz Henrique. PL 1.397/20: Medidas de enfrentamento da crise da pandemia. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/328489/pl-1397-20-medidas-de-enfrentamento-da-crise-da-pandemia, acesso em 14/6/2020
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Atalá Correia é juiz no TJ-DFT, professor do IDP, doutor e mestre pela Universidade de São Paulo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico

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