A crise econômica gerada pela crise sanitária instalada pela pandemia da Covid-19 acarretou a renegociação de diversos contratos imobiliários, sobretudo de contratos de locação residencial e comercial.
Os contratantes, intencionados a não deixar a situação do contrato à mercê do entendimento do Judiciário, o qual ainda é incerto, têm optado cada vez mais pela renegociação voluntária como forma de minimizar os riscos e os danos de todos os envolvidos na relação contratual da qual fazem parte. Além da incerteza quanto aos entendimentos jurisprudenciais que serão firmados, a renegociação também tem sido almejada, em razão da paralisação ou desaceleração do ritmo dos trabalhos do poder judiciário, o que poderia implicar em uma demora na solução específica vivenciada pelas partes.
Em se tratando de renegociação de contrato de locação garantido por fiança, o fiador também deverá anuir com o instrumento de renegociação que importar em criação de novas obrigações, sobretudo em agravamento da garantia, como a majoração do saldo garantido pela fiança.
Assim, se o instrumento de renegociação prevê, por exemplo, o parcelamento de parcelas em aberto, com acréscimo de multa, juros e correção, novas obrigações estarão sendo constituídas, sendo necessária a anuência do fiador, sob pena de nulidade da fiança no que se refere à obrigação repactuada.
Quanto a tal entendimento não há divergência, sendo nesse sentido o posicionamento já firmado pelo Superior Tribunal de Justiça em casos de renegociação anteriores aos eventos decorrentes da pandemia. Inclusive, o entendimento em questão encontra-se sedimentado, há muitos anos, com a edição da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu".
A razão de ser da súmula está no fato de que o fiador não pode ser responsabilizado por uma obrigação maior que aquela com a qual ele expressamente concordou.
Nesse sentido, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no julgamento do MC 024373 [1], esclareceu que a "interpretação das normas que disciplinam a presente garantia há de confortar a impossibilidade de o fiador responder por acréscimos decorrentes de acordo entre locador e locatário a que não tenha anuído, fazendo superar a obrigação afiançada".
Portanto, havendo aditamento que implique alteração na garantia prestada, deverá o fiador concordar expressamente com a repactuação, sob pena de não responsabilização deste.
Diversa, entretanto, é a hipótese da moratória, em que há, na verdade, uma mera prorrogação do prazo de pagamento, isto é, aqueles casos em que a garantia prestada não é, de forma alguma, majorada.
Com a instauração da pandemia e consequentemente da crise econômica, muitas renegociações têm se pautado na moratória da dívida, com um desconto temporário do valor da prestação mensal, para pagamento do valor correspondente ao desconto concedido em momento posterior. Exemplificando, concede-se um desconto de 50% no valor do aluguel mensal por um período de cinco meses, sendo que o valor concedido do desconto terá vencimento em período posterior, podendo, inclusive, o saldo do desconto ser diluído nos aluguéis posteriores ao período da moratória de cinco meses.
Observa-se que, nestas hipóteses, não há novação propriamente dita. Segundo Caio Mário [2], novação "pode ser conceituada como a constituição de uma obrigação nova, em substituição de outra que fica extinta". No caso da moratória para mera prorrogação do prazo de vencimento de parte do aluguel, não há criação de nova obrigação com a extinção da anterior e originária. A obrigação inicial permanece, havendo apenas um ajuste quanto à data de pagamento da parcela ou de parte dela.
Também não há prorrogação do prazo do contrato de locação, nem consequentemente prorrogação ou majoração da fiança. O contrato de locação de 36 meses, por exemplo, permanece sendo um contrato de 36 meses, ainda que o pagamento seja diferido em prazo diverso, continuando o fiador responsável pelo aluguel e encargos referentes ao total dos alugueis correspondentes especificamente aos 36 meses da locação.
Nesses casos, portanto, a renegociação não implica em majoração da garantia prestada, de modo que não se faz necessária a anuência do fiador na celebração do aditamento.
Se a renegociação não aumentou, de forma alguma, a responsabilidade já anuída pelo fiador, não há razões para se exigir a concordância expressa do fiador, sendo inaplicável o entendimento da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça nessas hipóteses.
Com efeito, se a moratória pactuada não aumenta a fiança prestada, torna-se despicienda a concordância do fiador, permanecendo válida para todos os efeitos a fiança outrora prestada.
A exigência da anuência expressa do fiador nessas hipóteses, além de proteger de forma exacerbada e infundada o garantidor, significaria impor obstáculos desnecessários à renegociação, a qual, entretanto, faz-se tão importante no momento de crise.
Portanto, embora a fiança deva ser analisada sempre de forma restritiva, na forma dos artigos 114 e 819, ambos do Código Civil de 2002 [3], não se tratando de hipótese de majoração da garantia prestada, deverá ser considerada válida a renegociação para moratória da dívida decorrente do contrato de locação, mesmo sem a anuência do fiador.
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MEDIDA CAUTELAR Nº 24.373 - SP (2015/0127321-0). ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3/6/2015.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. - V.II. Teoria Geral das Obrigações. Rio de Janeiro. Forende, 2017, p. 242.
[3] "Artigo 114 — Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente".
"Artigo 819 —A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva".
Bianca Lourencini Marconi Machado é advogada do escritório Machado, Mazzei & Pinho Advogados.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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