Introdução
O presente estudo tem como objeto analisar a legalidade da incidência do ITBI (Imposto sobre Transmissão Inter vivos), sobre os contratos de promessa de compra e venda, registrados ou não.
Os Tribunais pátrios vêm enfrentando de forma superficial o tema ora abordado, limitando-se a repetir precedentes anteriores, sem, contudo, fazer uma análise aprofundada sobre o tema, multiplicando-se, assim, as celeumas jurídico-tributárias entre contribuintes e Municípios.
Tem sido reiteradamente afirmado, pelos Tribunais Superiores, que apenas a transferência da propriedade imóvel poderia ser considerada fato gerador do ITBI. Em contrapartida, os Municípios sustentam que outras transferências de direitos reais imobiliários também se inserem no campo de incidência do Imposto em comento, prevendo-a em suas legislações locais.
Ante o desencontro de entendimentos, multiplicam-se os processos administrativos e judiciais que tratam sobre o tema, sendo necessário, portanto, uma abordagem profunda e escorreita acerca da instituição e limites do campo de incidência do ITBI.
O deslinde da celeuma que a autora se propõe a analisar perpassa, necessariamente, pela análise das hipóteses de incidências eleitas pelo legislador constitucional como autorizadoras da cobrança do ITBI, bem como sua evolução ao longo dos anos.
Necessário analisar detalhadamente os dispositivos legais e constitucionais que autorizam a cobrança do ITBI, e a mens legis para a sua instituição.
Antes de ingressarmos no tema, mister discorrer brevemente sobre a previsão legal e constitucional para a instituição do ITBI.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 156, II[1], afirma ser competência municipal instituir impostos sobre transmissão “inter vivos” a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.
Da análise do artigo supracitado, observa-se que o legislador constituinte elegeu 3 (três) situações como hipóteses para a incidência do ITBI, conforme o disposto no art. 156, II, da CF:
1) Transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis;
2) Transmissão inter vivos de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia;
3) Cessão de direitos à aquisição de direitos reais sobre imóveis.
Em consonância com o disposto na Constituição Federal, o art. 35, do CTN, assim dispôs, ao estabelecer o fato gerador do ITBI:
"Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I - a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III - a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II."
Vê-se, destarte, que a intenção do legislador foi eleger outras hipóteses de incidência, para além da transmissão da propriedade, contemplando, assim, as transmissões de direitos reais sobre imóveis, bem como as cessões de direitos que se refiram à transmissão de propriedade ou domínio útil de bens imóveis e outros direitos reais.
Para fins de elucidar as hipóteses eleitas pelo legislador constituinte, pondo uma pá de cal na celeuma interpretatória em torno desse tema, cabe, aqui, fazer uma breve digressão, através de uma análise histórica sobre as hipóteses de incidência do ITBI.
1. Breve análise histórica das hipóteses de incidência do ITBI
Com o fito de se ter uma compreensão ampla acerca das atuais hipóteses de incidência do ITBI, é preciso fazer, destarte, uma análise histórica, do surgimento do referido tributo e as diversas modificações legislativas pela qual passaram ao longo dos anos.
Até a constituição de 1946, a previsão legislativa para a incidência do ITBI ocorria apenas sobre a transmissão de bens imóveis. Ou seja, o ITBI, àquela época de competência dos estados, possuía como fato gerador apenas a transferência do direito real de propriedade, que ocorria com o registro do título no cartório de imóveis.
A redação original do art. 19, da Constituição de 1946, assim previa[2]:
"Art 19 - Compete aos Estados decretar impostos sobre: (...)
III - transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação ao capital de sociedades;"
Posteriormente, o legislador percebeu que eleger unicamente a transmissão de propriedade imobiliária como fato gerador do ITBI fazia com que um conjunto de operações não fossem levadas a registro no cartório de imóveis, permanecendo ocultas, como forma de “fugir” à incidência do imposto devido.
Dessa forma, foi editada, em 01/12/1965, a Emenda Constitucional nº 18, dando nova redação ao sistema tributário nacional da época. Nessa emenda, o imposto sobre transmissão de propriedades passou a incidir também sobre as cessões de direitos relativos à aquisição dos bens imóveis, ou seja, sobre as operações que não são levadas a cartório e que dão origem a direitos pessoais. Eis o teor da redação da emenda, à época:
"Art. 9º Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos reais sôbre imóveis, exceto os direitos reais de garantia.
§ 1º O impôsto incide sôbre a cessão de direitos relativos à aquisição dos bens referidos neste artigo."
Na sequência, com o intuito de regulamentar a EC n.º 18/65, é editado o Código Tributário Nacional, em 25/10/1966. Ao tratar do tema, o CTN deixa evidente que o imposto passa a incidir sobre direitos reais - o que já ocorria – e, ainda, sobre as cessões de direitos, ou seja, sobre os direitos pessoais, que assim o são uma vez que o negócio jurídico que lhes deu origem não foi levado a registro no cartório de imóveis. Esse é o teor da norma prevista no art. 35, do CTN.
"Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I - a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III - a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II."
A constituição de 1967 continuou com a mesma intenção de referendar a incidência do imposto sobre transmissões de direitos reais e cessões de direitos pessoais. Veja:
"Art 24 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal decretar impostos sobre:
I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como sobre direitos à aquisição de imóveis;"
O mesmo ocorre na redação atual do art. 156, da Constituição de 1988:
"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...)
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;"
Ante a análise histórica precedente, resta evidente que a intenção do legislador, desde a Emenda Constitucional 18, de 1965, foi determinar que a incidência do ITBI ocorra não apenas sobre a transmissão do direito real de propriedade, com o registro do título no cartório de imóveis, mas também eleger como hipóteses de incidência a transmissão de direitos reais sobre imóveis (para além da transmissão de propriedade), bem como as cessões de direitos pessoais que são pactuadas pelas partes, sem que se leve o título para registro no cartório de imóveis e sem que se configure juridicamente a transmissão da propriedade.
Nesse diapasão, seguindo as determinações impostas pelas normas constitucionais e nacionais sobre o tema, o Código Tributário do Município de João Pessoa, assim dispôs em seu art. 199:
"Art. 199. O ITBI e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I - a transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de direitos reais sobre bens imóveis por natureza ou acessão física, exceto os de garantia, como definidos na Lei Civil;
II - a cessão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de direitos relativos às transmissões descritas no inciso anterior".
Ou seja, aprouve ao legislador constitucional e infraconstitucional instituir outras hipóteses de incidência de ITBI, para além da transmissão de propriedade, contemplando, outrossim, aqueles negócios jurídicos realizados com o objetivo de transmitir outros direitos reais sobre imóveis, bem como aqueles que tem como objeto ceder os direitos relativos à transmissão dos direitos reais.
Importante observar que essa é uma previsão constitucional, constante no texto original da Constituição de 1988, de tal forma que é preciso que o Judiciário reconheça a efetividade e eficácia dessa norma, sob pena de esvaziamento de um direito constitucional, previsto aos municípios.
O que se observa atualmente é, em verdade, remansosa jurisprudência pátria considerando unicamente a transmissão da propriedade, com o registro do título no cartório de imóveis, como fato gerador de ITBI. Entretanto, verifica-se que, até o momento atual, não se fez uma análise profunda e escorreita do art. 156, III, da CF, limitando-se os julgadores a repetirem precedentes antigos e desconformes à Constituição. Não se analisa, destarte, o texto constitucional, e as inovações trazidas com o Código Civil, desconsiderando-se, na verdade a mens legis do constituinte, que expressamente previu outras hipóteses de incidência para além da transmissão da propriedade.
É necessário que os julgadores e operadores do direito debrucem-se de forma corajosa e profunda sobre o tema, de forma que não se decida apenas em precedentes que determinam a não incidência do ITBI sobre as promessas de compra e venda e outras cessões de direitos reais sobre imóveis, precedentes esses muitas vezes vazios de fundamentação, que se resumem a expressar uma jurisprudência consolidada, antiga, sem qualquer análise sobre as diversas hipóteses de incidência trazidas pela Constituição Federal para a incidência do ITBI.
Observa-se, com efeito, diversas decisões, inclusive do Supremo Tribunal Federal que reconhece, ao arrepio da Constituição, como único fato gerador do ITBI a transmissão da propriedade.
Numa mera leitura do dispositivo constitucional acima mencionado, vê-se que o legislador constituinte originário estabeleceu outras hipóteses de incidência do ITBI, que não se resumem apenas à transferência da propriedade através do registro do título imobiliário.
É cediço que não cabe aos julgadores restringir o alcance da lei, quando a vontade do legislador está expressa em sua literalidade, a menos que esteja fundamentado em norma constitucional que esvazie a validade da norma impugnada.
No caso do ITBI, a norma que está sendo esvaziada trata-se de norma constitucional, válida, originária, incapaz, sequer, de ser submetida a controle de constitucionalidade, bem como não se encontra em dissonância com as demais normais normas constitucionais para que tenha sua eficácia limitada pelo Judiciário.
Reiteramos, destarte, o acima exposto de que, pela análise histórica e pelas alterações legislativas ao longo das décadas, resta clara a intenção do legislador em considerar como fato gerador outras situações de transmissão de direitos reais, além da transmissão do direito real de propriedade.
2. Da constitucionalidade da incidência do ITBI sobre a promessa de compra e venda e outras cessões de direitos reais. Necessidade de superação de precedentes
Numa leitura simples e direta, ao destrinchar o texto constitucional do art. 156, III, da CF, para se extrair a norma ali constante, outra não pode ser a conclusão senão a de que existe a previsão de três hipóteses de incidência do ITBI, literalmente expressas no texto (art. 156, III, da CF):
1) Transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis;
2) Transmissão inter vivos, de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia;
3) Cessão de direitos a sua aquisição.
Com efeito, não é necessária uma leitura aprofundada para verificar que foram eleitas outras hipóteses de incidência de ITBI que desbordam meramente a transmissão da propriedade, contrariando, assim, de plano, a jurisprudência que defende de forma veemente que apenas com o registro da propriedade haveria autorização para a incidência do ITBI.
Ademais, é importante trazer à baila o conteúdo do art. 110, do CTN, que impõe balizas para a interpretação das normas tributárias. Conforme esse artigo, a lei tributária deve seguir a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas do direito privado, utilizados pela Constituição. Eis o teor do referido artigo:
"Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias."
Nessa direitura, o artigo 156, da Constituição Federal, que autoriza a incidência de ITBI sobre a transmissão de direitos reais sobre imóveis, deve ser interpretado em consonância com o disposto no Código Civil, pois é este que lista quais os direitos reais existentes no nosso ordenamento jurídico. Eis o teor, do art. 1.225, do Código Civil.
"Art. 1.225. São direitos reais:
I - a propriedade;
II - a superfície;
III - as servidões;
IV - o usufruto;
V - o uso;
VI - a habitação;
VII - o direito do promitente comprador do imóvel;"(grifos nossos)
Observa-se, portanto, que, numa simples subsunção dos fatos à norma, e, na comparação entre as normas constitucionais e normas da lei civil, impossível chegar à outra conclusão senão a de que o direito do promitente comprador do imóvel é um direito real, e que a transmissão do referido direito está expressamente prevista no art. 156, III, da CF, como hipótese de incidência do ITBI.
A reforçar o entendimento, observe-se o teor do art. 1.417, do Código Civil:
"Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel."
Não há dúvidas, destarte, de que o direito do promitente comprador foi erigido ao status de direito real com a vigência do novo Código Civil, inserindo-se, destarte, dentre o rol de direitos cuja transmissão autoriza a incidência de ITBI.
Vale, ainda, fazer uma observação de grande importância, concluindo o presente raciocínio. Nos casos em que a promessa de compra e venda é registrada em cartório, conforme prevê o art. 1.417, do Código Civil, não há dúvidas de que há um direito real e que sua transmissão submete-se à incidência do ITBI, nos termos do art. 156, III, da CF, e art. 35, inciso II, do CTN.
Entretanto, poderiam pairar dúvidas sobre os casos em que a promessa de compra e venda, a despeito de ser irrevogável, não tenha sido levada a registro no cartório imobiliário (promessas de compra e venda não registradas). Nesses casos, conforme a determinação da lei civil, não houve a constituição do direito real, permanecendo a promessa de compra e venda no âmbito das obrigações pessoais.
Porém, mesmo nos casos de promessas de compra e venda que configuram direitos pessoais, por não estarem registradas, ainda assim deverá haver a incidência do ITBI. Isso porque tais situações encontram-se contempladas pela terceira hipótese de incidência, qual seja a "cessão de direitos a sua aquisição", prevista no art. 156, III, da CF, in fine, e art. 35, III, do CTN.
"Art. 156, CF: Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...)
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;"
"Art. 35, CTN. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II – a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III – a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II." (grifos nossos)
Com efeito, a promessa de compra e venda, ainda que não registrada, configura verdadeira cessão de direitos à aquisição do direito real de propriedade, fazendo incidir o art. 156, III, da CF e o art. 35, III, do CTN.
Vale trazer à baila os apontamentos doutrinários acerca do teor do contrato firmado na promessa de compra e venda:
"A promessa de compra e venda é espécie de contrato através qual uma pessoa, física ou jurídica, denominada promitente ou compromitente vendedora, se obriga a vender a outra, denominada promissária ou compromissária (ou promitente) compradora, bem imóvel por preço, condições e modos pactuados."[3]
Da análise do teor do negócio jurídico que se perfaz na promessa de compra e venda, ainda que não registrada em cartório, outra não pode ser a conclusão senão a de que se configura em verdadeira cessão de direitos relativos à transmissão de propriedade, fato que autoriza a incidência do ITBI nesses casos.
Mister se faz, destarte, que os Tribunais pátrios debrucem-se sobre tais questões trazidas à baila nesta dissertação, antes de julgar o mérito, não se limitando a repetir precedentes, parcos em fundamentação.
Afastar normas contidas em lei complementar federal e, especialmente, na Constituição da República, pilar de nosso ordenamento jurídico, exige do julgador uma fundamentação adequada do motivo pelo qual está deixando de aplicar a norma estabelecida pelo constituinte originário.
Não é, entretanto, o que se tem visto em decisões que se limitam a repetir precedentes que cuidam unicamente em afirmar que o fato gerador do ITBI é apenas a transmissão da propriedade com o registro do título no cartório de imóveis, esvaziando por completo a norma contida no art. 156, III, da CF.
Essa prática deve ser repensada, havendo, inclusive, a previsão no novo diploma processual civil que impõe a necessidade de fundamentação adequada. É o que dispõe o art. 489, §1º, IV e V, do CPC, segundo o qual não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que não enfrenta todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão do julgador, bem como se limitam a invocar precedentes ou enunciados de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes.
"§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:(...)
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;"
Os precedentes muitas vezes suscitados com o fim de elidir a cobrança de ITBI sobre as promessas de compra e venda, registradas ou não, não analisam de forma acurada os artigos ora suscitados, e omitem-se em dar eficácia plena à norma constitucional prevista no art. 156, III, da CF.
A repetição desses precedentes malfere a literalidade da norma constitucional, amputando-lhe duas hipóteses eleitas pelo constituinte para a incidência do ITBI, quais sejam, a transmissão de outros direitos reais, além da propriedade, e a cessão de direitos a sua aquisição, configurada nos negócios jurídicos, no âmbito das obrigações pessoais, em que se pactuam a cessão de direitos reais, sem a sua efetiva transferência por ora do registro no cartório.
As decisões judiciais, atualmente, se limitam a repetir outros precedentes, olvidando que existiram mudanças no ordenamento jurídico e que essas alterações não podem ser desconsideradas. Resumem-se a afirmar, sem fundamento legal, de que o fato gerador de ITBI seria apenas a transferência efetiva da propriedade no cartório de registro de imóveis, contrariando frontalmente o teor da norma expressa na CF, art. 156, II.
Para se entender o tamanho do equívoco, tem sido suscitado o caso julgado pelo Pleno do STF na representação de inconstitucionalidade nº 1.121-6, que considerou a inconstitucionalidade da cobrança de ITBI sobre a promessa de compra e venda. Entretanto, inadmissível não se ater ao fato de que essa representação foi julgada em 1984, anterior até mesmo à Constituição Federal de 1988, não mais se sustentando ante às alterações incorporadas no ordenamento, como por exemplo, a vigência do novo Código Civil, que alçou a direito real o direito do promitente comprador registrado em cartório.
O referido precedente acima mencionado deve ser considerado totalmente superado, ante a novel Constituição e o disposto no Código Civil.
Na esteira desse entendimento, é imperioso observar que vem se multiplicando as decisões de magistrados e desembargadores que analisam de forma mais profunda e escorreita o tema sub examine, tomando em consideração o teor da norma constitucional prevista no art. 156, III, da CF.
A título de exemplo, colaciono ementa de caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
"AÇÃO DECLARATÓRIA. ITBI. FATO GERADOR. BASE DE CÁLCULO. TERRENO. CONSTRUÇÃO E BENFEITORIAS.
1. Constitui fato gerador do ITBI a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis ou de direitos reais sobre eles, ou, ainda, a cessão de direitos relativos a tais transmissões.
2. A base do cálculo do ITBI é o valor venal do imóvel objeto de transmissão. A construção superveniente ao contrato de promessa de compra e venda pelo adquirente não integra a base de cálculo. Súmulas 110 e 470 do STF. 3. Em se tratando de causa em que restou vencida a Fazenda Pública, os honorários advocatícios são fixados de acordo com a apreciação equitativa do juiz. Hipótese em que a verba honorária fixada deve ser reduzida. Recurso provido em parte. Sentença confirmada, no mais, em reexame necessário. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70055680631, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 14/09/2013)."
A jurisprudência pátria tem avançado na análise do tema em comento. Em importante julgado sobre o tema, a Corte Especial do Tribunal De Justiça de Pernambuco, em recente decisão sobre o tema, instada a se manifestar sobre a constitucionalidade da incidência de ITBI sobre as promessas de compra e venda, estabeleceu, numa clara mudança de paradigma, e, em profunda análise sobre o tema, a constitucionalidade da cobrança de ITBI sobre as promessas de compra e venda, não se resumindo a repetir precedentes anteriores.
Importante ressalvar que o referido entendimento foi firmado em sede de controle concentrado de constitucionalidade, em que se impugnava a validade da norma do Município de Olinda que previa a incidência de ITBI sobre a promessa de compra e venda. Os ilustres desembargadores que compõem a Corte Especial do Tribunal de Pernambuco debruçaram-se sobre o tema, em sede de controle concentrado, e firmaram o entendimento de incidência de ITBI também para os casos de promessa de compra e venda. Eis o teor da ementa do caso julgado, por ser assaz elucidativo:
"PROCESSUAL CIVIL, CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE ATIVA, IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E INCOMPETÊNCIA DA CORTE ESPECIAL DO TJPE PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA MUNICIPAL ATACADA. REJEIÇÃO Á UNANIMIDADE. DISPOSITIVO DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO DO MUNICÍPIO DE OLINDA. INCIDÊNCIA DE ITBI SOBRE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE BEM IMÓVEL SEM CLÁUSULA DE ARREPENDIMENTO E DEVIDAMENTE REGISTRADA NO CARTÓRIO IMOBILIÁRIO COMPETENTE. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. DECISÃO POR MAIORIA.
1. As preliminares de ilegitimidade ativa, de impossibilidade jurídica do pedido e de incompetência desta Corte Especial para declarar a eventual inconstitucionalidade da norma municipal questionada foram rejeitadas ante a ausência de amparo legal.
2. O Código Civil de 2002, adotando nova sistemática, estabelece em seus artigos 1.225 e 1.417 que a promessa de compra e venda de bem imóvel se caracteriza como direito real, de forma que incidirá o tributo correspondente (ITBI) quando da constituição desse direito. Para além disso, o Código Tributário Nacional, em seu artigo 35, II, é claro ao reconhecer que a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis também é fato gerador do ITBI.
3. Considerando que o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles relativos (ITBI) tem como fato gerador a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis e, sendo a promessa de compra e venda irretratável e irrevogável devidamente registrada no Cartório imobiliário um direito real - segundo a nova sistemática da Lei Adjetiva Civil Pátria - resta incontroversa ser devida/exigível a exação fiscal (cobrança do ITBI) a partir do momento em que se registra o aludido contrato (promessa de compra e venda) perante o Cartório de Imóveis, ficando o promissário comprador, consequentemente, desincumbido do ônus de pagar o imposto quando do registro da escritura definitiva.
4. Verifica-se, assim, que tanto a transmissão definitiva da propriedade imóvel, quanto a promessa de compra e venda com cláusula de irretratabilidade, são fatos geradores da exação fiscal (ITBI), posto se tratarem de cessões irretratáveis de direitos reais sobre a propriedade imobiliária, sendo exatamente esta a hipótese fático-jurídica descrita na norma impugnada.
5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente para, em consequência, reconhecer a constitucionalidade do artigo 100, inciso V, da Lei Complementar nº 003/1997 do Município de Olinda (Código Tributário Municipal) - com a redação que lhe deu o artigo 3º da Lei Complementar nº 016/2003 do mesmo Município. Decisão por maioria de votos.
(AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 241892-8, Relator Desembargador Fausto de Castro Campos, Corte Especial, Data do julgamento 01/02/2016)".
É importante que se avance na análise do tema, considerando, ainda, a questão das cessões de direito à aquisição dos bens imóveis, porém não se pode olvidar que o referido precedente já aponta para uma modificação da jurisprudência pátria, desbordando do simplismo em que vem sendo tratado o tema em questão.
Com efeito, não há como repetir, nos dias atuais, a tese de que o ITBI possui unicamente como fato gerador a transferência da propriedade, uma vez que tal tese não se sustenta diante do nosso arcabouço constitucional.
3. Razão da previsão da incidência do ITBI sobre as promessas de compra e venda: princípio da isonomia.
Conforme amplamente explanado alhures, depreende-se, da leitura dos textos legais, que a realização da promessa de compra e venda, registrada ou não em cartório, configura cessão de direitos à aquisição de bens imóveis, atraindo a incidência do ITBI sobre tais contratos.
Essa situação foi pensada exatamente tendo por escopo a realização do princípio da igualdade entre os contribuintes.
Com efeito, muitos contribuintes com o objetivo de furtarem-se à incidência do tributo, optam por realizar outras formas de negócio jurídico, diversas da compra e venda tradicional, com o registro do título e a transferência da propriedade.
Esse fato representa um verdadeiro injusto tributário uma vez que tais contribuintes jamais realizam a escritura definitiva, não podendo ser considerados proprietários do imóvel, porém detendo todos os amplos e irrestritosdireitos que advém do exercício do direito de propriedade, atuando como verdadeiros proprietários, sem, entretanto, nunca levarem a registro o seu título aquisitivo.
Ademais, ao realizarem a transferência do bem imóvel, o que equivaleria à outra compra e venda propriamente dita, esses contribuintes apenas procedem a uma cessão de promessa de compra e venda, por escritura pública ou particular, correspondendo, assim, a uma nova transmissão do bem, porém novamente sem levar a efeito o registro no cartório de imóveis, numa verdadeira tentativa de furtar-se à incidência de ITBI.
Foi exatamente para esses casos que foi pensado o teor da norma sobre cessão de direitos à aquisição dos bens imóveis. Para que tais situações restassem contempladas e não permanecessem como uma brecha nefasta, ferindo a isonomia entre os contribuintes, princípio tão caro à democracia.
O que o legislador constituinte pretende é tributar a manifestação de riqueza configurada na aquisição de uma propriedade ou mesmo nos direitos relativos a tais bens imóveis.
Observe que um particular que realiza uma promessa de compra e venda irretratável sobre um bem imóvel, em nada difere da situação fática de um particular que realiza a compra e venda propriamente dita e registrada. Ambos exercem os amplos e irrestritos direitos advindos da propriedade de usar, gozar, dispor do bem e reavê-lo de quem o detenha ilegitimamente.
Ora, os particulares que manifestam a expressão de riqueza, decorrente de aumento patrimonial, seja por intermédio da escritura de compra e venda devidamente registrada, seja por intermédio de uma promessa de compra e venda, ou de qualquer outra cessão de direitos que lhes confiram os mesmos amplos poderes do direito real de propriedade e de outros correlatos, tais particulares devem ser tratados de forma igualitária.
É preciso, na aplicação do direito, observar dois princípios pilares do Sistema Tributário Nacional, quais sejam, o princípio da isonomia e o da capacidade contributiva, segundo os quais as manifestações de riquezas devem ser igualmente tributadas, a evitar um injusto tributário.
"A isonomia possui, portanto, uma acepção horizontal e uma vertical.
A acepção horizontal refere-se às pessoas que estão niveladas (daí a nomenclatura), na mesma situação e que, portanto, devem ser tratadas da mesma forma[4]".
Foi exatamente com o objetivo de sanar essa celeuma e atribuir isonomia que o legislador constituinte elegeu outras hipóteses de incidência para além da transmissão de propriedade. Deve-se convir que situações tão intimamente análogas sejam tratadas de forma isonômica pelo legislador e pelo aplicador do direito.
Isso para evitar a clássica situação daqueles que, com o objetivo de furtarem-se à incidência de ITBI, não consolidam o direito real de propriedade em seu nome (não levando a registro o título de propriedade, ou, ainda, permanecendo com promessa de compra e venda), e o transferem a um terceiro, numa verdadeira cessão de direitos à aquisição do imóvel.
É verdade que não pesa sobre o contribuinte a obrigação de consolidar a propriedade em seu nome, com a emissão da escritura definitiva. Essa, de fato, é uma situação que se encontra no bojo da liberdade dos negócios jurídicos privados. Entretanto, o direito não pode ignorar os fatos e a manifestação de riqueza que é, em tudo, análoga àquele que realiza uma escritura definitiva de compra e venda consolidando a propriedade em seu nome. E foi, precisamente, para esses casos em que se previu a incidência de ITBI sobre a transferência de outros direitos reais sobre imóveis, bem como sobre as cessões a sua aquisição.
Vale ressaltar, para que não pairem dúvidas sobre a razoabilidade e justiça dessa tributação, que, nos casos em que o particular realiza uma promessa de compra e venda e, posteriormente, consolida a propriedade em seu nome com o registro da escritura definitiva, em tese, NÃO estaria obrigado a realizar dois pagamentos de ITBI sobre o mesmo fato, pois do contrário haveria um patente caso de bitributação.
Nos casos em que ocorre a consolidação da propriedade com a outorga da escritura definitiva de compra e venda após a quitação da promessa, percebe-se que ocorreu apenas uma única manifestação de riqueza, uma verdadeira conclusão do negocio jurídico de promessa de compra e venda anterior já tributada pelo ITBI.
Com efeito, havendo o pagamento de ITBI na promessa de compra e venda, não seria necessária, assim, a realização de uma nova cobrança de ITBI nos casos de outorga de escritura definitiva de compra e venda entre as mesmas partes e com o mesmo objeto da promessa, uma vez que, nesse caso, trata-se apenas de desfecho do negocio jurídico anterior, não havendo uma nova manifestação de riqueza a ser tributada.
Reforço o acima exposto. É necessário que a consolidação da propriedade se dê entre as partes originárias do contrato de promessa de compra e venda. Havendo um terceiro, estranho à relação originária de promessa de compra e venda, não se trata mais de consolidação do negócio jurídico anterior, mas sim de verdadeira cessão de direitos à aquisição, nesse caso devendo incidir ITBI não apenas na promessa de compra e venda como também no registro da escritura definitiva.
Podemos observar que, em qualquer caso de transferência de domínio ou de cessão de direitos sobre transmissão de bens imóveis, deve haver a incidência do ITBI, evitando assim que haja uma tributação injusta e não isonômica, deixando de alcançar situações semelhantes, quais sejam, aquelas em que o contribuinte apresenta um acréscimo patrimonial, porém elege outros meios, para além da escritura pública e seu registro no cartório, revestindo o negócio jurídico de outras roupagens, porém que não nega a essência do negócio, qual seja, a transmissão de direitos reais sobre o imóvel, a expressão de riqueza, autorizando o ente a tributar também nesses casos.
Essa autorização decorre de expressa previsão legal, desde a Constituição de 1947, com a emenda 18, na qual o legislador constituinte verificou a necessidade de abarcar outras situações, para além da transmissão da propriedade por meio do registro do título no cartório, e segue até os nossos dias com a previsão do art. 156, III, da CF.
Conclusão
Após acurada análise sobre o tema posto a exame, outra não pode ser a conclusão, senão a da legalidade e constitucionalidade da incidência do ITBI nas promessas de compra e venda, sendo, destarte, legítimo o ato da autoridade em lançar e cobrar o imposto devido.
Com efeito, a norma constitucional originária erigiu como fato gerador do ITBI outras hipóteses de incidência, para além da transmissão da propriedade com o registro no Cartório Imobiliário.
A própria evolução histórica das modificações legislativas aponta para esse entendimento. A simples leitura da norma constitucional conduz à conclusão aqui defendida.
Não pode, destarte, a jurisprudência pátria permanecer decidindo apenas com fundamento em precedentes que repetem outros precedentes, sem se debruçar coerentemente sobre a questão. É preciso analisar o tema à luz dos dispositivos legais que o regem, bem como do princípio da isonomia, que impõe o tratamento igualitário para o tratamento jurídico-tributário em manifestações de riquezas.
Enquanto não se pacifica o tema, processos e mais processos abarrotam, tanto o âmbito administrativo, quanto o âmbito judicial, causando insegurança jurídica, algo totalmente nefasto às relações jurídico-tributárias.
Referências:
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 6ª edição, revista e atualizada. Editora Método, 2012.
IRIB. A promessa de compra e venda no NCC reflexos das inovações nas atividades notarial e Registral. Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. Disponível em <http://www.irib.org.br/obras/a-promessa-de-compra-e-venda-no-ncc-reflexos-das-inovacoes-nas-atividades-notarial-e-registral> acesso em 04 de abril de 2018
BRASIL. Emenda Constitucional nº 18/65. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc18-65.htm> acesso em 04 de abril de 2018.
Notas
[1] Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:(...)
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;
[2] Na Constituição de 1946, o ITBI era tributo de competência dos Estados.
[3] A promessa de compra e venda no NCC reflexos das inovações nas atividades notarial e Registral. Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza. Disponível em http://www.irib.org.br/obras/a-promessa-de-compra-e-venda-no-ncc-reflexos-das-inovacoes-nas-atividades-notarial-e-registral
[4] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 6ª edição, revista e atualizada. Editora Método, 2012. p. 89.
Julyana Perrelli de Ayalla Doria - Procuradora do Município de João Pessoa-PB. Graduada pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Integrada do Recife.
Fonte: Revista Âmbito Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário