Introdução
A aquisição de terrenos pela incorporadora mediante permuta, principalmente por unidades autônomas a serem construídas no próprio local, é bastante praticada no mercado imobiliário. Por meio de tal negócio jurídico, expressamente previsto no artigo 39 da Lei nº 4.591/1964, o proprietário transfere seu imóvel para a incorporadora, que no local desenvolverá um empreendimento, entregando, como contrapartida, parte das unidades autônomas construídas. Para a incorporadora, há a vantagem de não desembolsar o valor necessário para a compra do terreno, que será quitado futuramente, por meio da realização das construções e entrega das unidades. Para o proprietário, apesar dos riscos envolvidos, pode ser um negócio interessante, pois a área edificada recebida em pagamento normalmente representa valor mais expressivo do que o preço original que receberia pelo terreno.
Por outro lado, é comum, sobretudo nos grandes centros urbanos, que o imóvel esteja alugado a terceiros. Em tal hipótese, nos casos de venda e compra, o locatário tem a seu favor o direito de preferência na aquisição do imóvel, conferido pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991). Se exercido regularmente o direito de preferência pelo locatário, o negócio previamente intentado entre proprietário e incorporadora não poderá ser realizado.
O direito de preferência é estabelecido para as operações de venda e compra e outras formas de alienação, não sendo aplicável aos casos de permuta. Isso decorre do artigo 32 da Lei nº 8.245/1991, assim redigido: “O direito de preferência não alcança os casos de perda da propriedade ou venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização de capital, cisão, fusão e incorporação.” Em razão do comando legal expresso, qualquer alienação de imóvel locado por meio de permuta estará fora da prerrogativa conferida ao locatário, sendo descabida sua notificação para fins de exercício de um direito que não lhe assiste.
Embora o tratamento legal da permuta seja singelo (basicamente o art. 533 do Código Civil), sua utilização passou, ao longo do tempo, a ter variações complexas, tanto na forma de instrumentalização do negócio, quanto na fixação da contrapartida negocial. A valorização dos terrenos e o aumento do volume dos negócios fizeram com que a quantidade de área construída a ser entregue ao proprietário aumentasse ao longo do tempo, levando o dono do terreno a ter interesse em utilizar o próprio empreendimento para vender suas unidades, juntamente com a incorporadora, tornando ainda mais convergente a relação entre as partes. Essa tendência culminou no desenvolvimento de formas contratuais afins, como a chamada permuta financeira, em que o pagamento da contrapartida se dá por meio de percentual do resultado financeiro do empreendimento que será desenvolvido pela incorporadora.
Assim, em algumas situações, pode haver polêmica quanto a subsistir ou não o direito de preferência, especialmente em situações negociais em que a permuta tem certas características específicas que podem aproximá-la, ao menos na forma, de uma venda e compra. Há casos, já tratados em nossos Tribunais, em que locatários se insurgiram contra alienações praticadas na forma de permuta, alegando terem sido preteridos em seus supostos direitos de preferência, sob argumentos diversos[1]. Nesse contexto, torna-se importante analisar as variações dos casos de permuta, bem como verificar, na essência, qual a contraprestação que está sendo entregue em troca do terreno. Com tal finalidade, passamos a analisar abaixo os casos de: (i) permuta com torna; (ii) permuta de terreno por unidades futuras; (iii) permuta com escritura de venda e compra e escritura de novação, confissão de dívida, com promessa de dação em pagamento e (iv) permuta financeira.
Permuta Simples e Permuta Com Torna
O contrato de locação de imóveis importa em transferência apenas da posse direta do bem, não havendo, portanto, impedimento para o locador alienar seu domínio, caso seja de seu interesse, mesmo que o prazo contratual ainda não tenha sido superado. Entretanto, a Lei do Inquilinato confere ao locatário a prerrogativa de tomar conhecimento da alienação e, caso seja de seu interesse, exercer seu direito de aquisição prioritária.
De acordo com o artigo 27 daquela Lei, o locatário tem o direito de precedência na aquisição do imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros ou, para usar a expressão consagrada, “tanto por tanto”. Por igualdade, deve ser entendido exatamente as mesmas condições ofertadas pelo pretendente, não apenas quanto ao valor, mas também forma de pagamento ou outras características da oferta, o que é uma situação típica de pagamento em dinheiro, ou bens que sejam totalmente fungíveis.
Ora, no caso da permuta por bem imóvel o locatário está impossibilitado de fazer a mesma oferta, “tanto por tanto”, inclusive por se tratar de uma contraprestação por bem infungível. O proprietário locador, por sua vez, não é obrigado a aceitar imóvel “semelhante”, ou “de valor equivalente”, pois seu interesse pode estar justamente no imóvel (ou imóveis) que lhe foi originalmente oferecido. Sabiamente, portanto, a lei excluiu a permuta dos casos de direito de preferência, no já citado artigo 32.
Pode haver situações em que a permuta não é pura, mas implica em uma complementação em dinheiro, denominada “torna” (ou troco), decorrente do fato de que as partes consideraram que não há uma equivalência plena entre os imóveis trocados, sendo necessário um ajuste complementar em dinheiro. A simples existência da torna não desnatura a permuta, nem confere ao locatário o direito de preferência.
Entretanto, pode haver situações excepcionais em que o valor da torna supere em muito o valor dos bens permutados, de forma que a permuta é praticamente complementar do negócio e não sua base essencial. Suponha-se, por exemplo, que o proprietário de um imóvel locado realize a permuta de tal imóvel com terceiros, recebendo em pagamento um apartamento avaliado em duzentos mil reais e uma parte em dinheiro de um milhão de reais. Em tal hipótese, o valor em dinheiro não tem a natureza de mero “troco” da permuta, mas sim configura a contraprestação principal, sendo o imóvel uma complementação de preço em um negócio jurídico mais próximo da venda e compra. Neste caso, ainda que o contrato utilizado entre as partes fosse denominado de permuta, não é a troca da essência do negócio e o direito de preferência não poderia ser afastado.
Atente-se que, sob pena de se cometer injustiças, a interpretação acima deve ser feita caso a caso e de maneira bastante restritiva. Como dito, a existência da torna, mesmo que de valor expressivo, não desnatura a permuta nem confere direito de preferência ao locatário, exceto em determinadas circunstâncias em que o valor do bem imóvel trocado é irrelevante, ou muito pouco expressivo, diante do negócio entabulado.
Permuta de Terreno Por Unidades Futuras
Como salientado anteriormente, é usual a operação em que um proprietário de terreno entrega seu terreno a uma incorporadora, com a expectativa de receber, em contrapartida, unidade ou unidades autônomas prontas, no empreendimento a ser realizado no mesmo local. Trata-se de permuta de coisa presente (o terreno) por coisa futura (as unidades a serem erigidas), negócio jurídico totalmente válido em nosso ordenamento. Essa modalidade, aliás, é expressamente prevista no artigo 39 da Lei Federal 4.591/64, conhecida como Lei de Condomínio e Incorporações.
Por se tratar de permuta, não assiste ao locatário direito de preferência. Apesar disso, algumas vezes locatários alegam que teriam tal direito, por meio da promoção de empreendimento imobiliário e entrega de futuras unidades nas mesmas condições prometidas pela incorporadora com quem o proprietário negociou. Esta hipótese não tem respaldo legal, além de representar um desvio do instituto e um risco considerável que o proprietário não é obrigado a se sujeitar.
A permuta por unidades futuras representa para o proprietário grande expectativa de valorização de seu patrimônio, mas também traz considerável risco, pois entrega seu imóvel confiando que a outra parte consiga promover o empreendimento e entregar as unidades futuras prontas. Para tanto, o proprietário se vale de sua confiança na incorporadora, em sua idoneidade, capacidade técnica, conhecimento de mercado, solidez financeira, reciprocidade bancária, enfim, características importantes que tornam a contratação totalmente intuito personae. Não há qualquer comando legal, nem cabimento lógico, que permita ao locatário (na quase totalidade das vezes, empresa fora do ramo de incorporação e construção) alegar que pode construir o empreendimento nas mesmas condições e entregar unidades prontas e acabadas.
A matéria, embora bastante novel em doutrina, já teve a oportunidade de ser analisada por Sylvio Capanema de Souza, conforme abaixo[2]:
“Nos dias atuais vai se tornando frequente a chamada “permuta no local”, em que o proprietário de um imóvel, celebra com uma empresa incorporadora ou construtora uma permuta, ou promessa de permuta, trocando a propriedade do imóvel locado por um certo número de unidades, a serem construídas pelo outro permutante.
(...)
Tecnicamente, o locatário poderia desincumbir-se da obrigação de fazer, propondo-se a realizar, por sua conta, igual incorporação, entregando ao proprietário o mesmo número de unidades futuras, quando concluídas as obras.
Forçoso será reconhecer que, na prática, a hipótese seria muito difícil de ocorrer, podendo o locador argumentar a questão de sua confiabilidade na empresa incorporadora ou construtora que escolhera, para celebrar o negócio.”
Embora o eminente professor Capanema também conclua pelo descabimento do direito de preferência, e o faça com a propriedade que lhe caracteriza, a nosso ver, as razões de tal descabimento vão além daquelas por ele invocadas, pois, se há permuta, como expressamente reconhecido, já não incide o direito de preferência por imposição legal.
Também não pode alegar o locatário ter relação com outra incorporadora ou construtora, igualmente interessada na aquisição do terreno e que assumiria a obrigação de promover a obra, conferindo assim subsídios para o locatário exercer o suposto direito de preferência. Além de, repita-se, inexistir o direito de preferência em função do disposto no art. 32 da Lei de Locações, a hipótese aqui tratada beiraria a fraude, já que o locatário não pode ceder ou comercializar seu direito de preferência (quando cabível), para que terceiro atue em seu lugar visando adquirir o imóvel locado. Acertadamente, predomina na doutrina e na jurisprudência o caráter personalíssimo do direito de preferência, de tal sorte que ele não pode ser transmitido a terceiros, sob pena de invalidade da transmissão[3].
Permuta com Escritura de Venda e Compra e Escritura de Novação, Confissão de Dívida, com Promessa de Dação em Pagamento
A dinâmica comercial, com suas vicissitudes jurídicas e empresariais, pode levar a que determinados negócios sejam instrumentalizados de formas diversas, por fatores variados, mas por razões legítimas e justificáveis, que devem ser devidamente compreendidas.
Para propiciar que a incorporadora tomasse financiamento bancário para a obra, conferindo à instituição financeira o terreno permutado em garantia, era necessário que a incorporadora recebesse o terreno já quitado, livre de outras obrigações. Para permitir essa operação, inclusive no Sistema Financeiro da Habitação, bem como manter o tratamento tributário conferido à permuta, a própria Secretaria da Receita Federal emitiu a Instrução Normativa 107/88, permitindo que, em alguns casos, a permuta seja instrumentalizada por duas escrituras: (i) uma de venda e compra, com pagamento do preço por meio de uma nota promissória pro soluto, que será levada a registro, permitindo, assim, a subsequente contratação do financiamento bancário; (ii) outra de novação, confissão de dívida com promessa de dação em pagamento, em que a nota promissória é novada pela confissão da dívida de seu valor, que será pago não em espécie, mas por meio da dação em pagamento de unidades no local.
Em que pese a forma inegavelmente complexa, o objetivo das partes, que é a troca do terreno por futuras unidades, em nenhum momento deixa de existir e é por meio da entrega das unidades que serão concluídas as obrigações contratuais. Também não se pode alegar simulação, pois as partes, além de realizar os instrumentos conforme o ato normativo acima citado, não estão a ocultar do locatário, ou do fisco ou de qualquer terceiro interessado, uma operação de venda e compra disfarçada de permuta.
Pela essência do negócio permanecer como de permuta, não há que se falar em direito de preferência. O fato de a escritura registrada ser de venda e compra pode gerar alguma dúvida inicial, mas a análise dos elementos acima, indicativos do intento das partes e principalmente da contraprestação pelo terreno (que são as unidades autônomas) esclarece a questão.
Permuta Financeira
A situação de maior polêmica é a da chamada permuta financeira, negócio pelo qual o proprietário entrega o terreno para a incorporadora, que por sua vez destinará ao proprietário um percentual das vendas das unidades a serem futuramente construídas e vendidas a terceiros[4]. O termo “permuta financeira” é uma expressão mercadológica já que, tecnicamente, a contraprestação será em dinheiro, em valor ainda não definido e dependente de fatos futuros, caracterizando-se como uma venda e compra com preço a determinar, nos termos do artigo 486 do Código Civil.
Ocorre que o negócio tem características bastante peculiares que lhe diferenciam de uma venda e compra simples, pois o recebimento do preço depende de êxito da incorporadora na aprovação do projeto, registro da incorporação e realização da obra. Além disso, o valor recebido pelo proprietário é variável em função do preço alcançado pelas unidades quando lançadas a mercado, o que depende da qualidade do projeto e dos materiais empregados, características do produto, valor agregado da marca, campanha de vendas, cumprimento do prazo de obras e outras questões. Assim, é um negócio que carrega em seu bojo características intrínsecas ao contrato de permuta, pois seu cumprimento depende da efetiva construção de novas unidades imobiliárias, que possam ser regularmente lançadas, pelo melhor preço possível.
Torna-se claro que, em função de tais riscos e variáveis, é inerente ao negócio o direito do proprietário de escolher a incorporadora com quem irá contratar, sendo inegável também aqui a característica intuito personae do negócio, não tendo aplicação o direito de preferência, se houver relação locatícia. Ainda que o locatário tenha expertise imobiliária, o que já seria uma situação rara, o proprietário não pode ser forçado a ingressar em uma contratação de tamanho risco com quem aceitou meramente como inquilino.
Diferentemente da venda e compra com preço e forma de pagamento certos, em que a oferta de terceiro pode ser coberta pelo locatário, no caso do desenvolvimento de uma incorporação, com os riscos envolvidos, as diferenças entre as ofertantes, tanto de natureza objetiva (capacidade financeira e técnica, experiência de mercado), quanto subjetivas (relação de confiança, tradição da marca), desnaturam a possibilidade da entrega tanto por tanto, não sendo cabível em tal relação o direito de preferência.
Por outro lado, como no momento de realização do negócio não se tem conhecimento do preço efetivo que será recebido pelo proprietário, que variará em decorrência da maior ou menor valorização do empreendimento, não há um montante a ser oferecido pelo locatário que seja de aceitação obrigatória pelo alienante. A escritura respectiva pode ter um valor conferido pelas partes para fins fiscais e de registro (como obriga a lei), ou um parâmetro com intuito de garantia, ou ainda um valor mínimo garantido pela incorporadora, mas mesmo nestes casos se tratam de meras referências e não da efetiva contraprestação, não podendo ser utilizados para fins de exercício de alegado direito de preferência.
Por fim, também seria descabido ao locatário insurgir-se contra a alienação do imóvel invocando poder contratar construtora ou incorporadora para realizar o empreendimento, tanto pelo caráter personalíssimo do direito de preferência, quanto pela impossibilidade de impor tal contratação ao proprietário, como antes tratado.
Conclusão
Na permuta imobiliária, o locatário não tem direito a precedência na aquisição do bem, em virtude de previsão legal expressa no artigo 32 da Lei do Inquilinato. Essa exceção contida no texto de lei reflete a impossibilidade de o locatário oferecer a mesma contraprestação ofertada pela incorporadora, como no caso de futuras unidades do empreendimento que será construído no lugar do imóvel locado.
Na alienação do imóvel por meio da permuta, deve-se considerar sobretudo que o proprietário tem essencial interesse no bem que receberá em troca ou na valorização que tal bem terá no mercado, pois é inerente ao negócio a justa expectativa de incremento de seu patrimônio. Por tal motivo, a exclusão da preferência abarca estruturas negociais decorrentes de um contrato de permuta, ainda que não mencionadas expressamente no artigo de lei em questão. Dentre elas se encontra a permuta realizada por meio de escritura de venda e compra e escritura de novação, confissão de dívida com promessa de dação em pagamento. Já a chamada permuta financeira contém características que claramente impedem que o locatário ofereça proposta em condições de igualdade com a incorporadora ofertante.
O direito de preferência do locatário é instituto de grande importância e deve ser privilegiado nos casos de alienação do imóvel, quando a contraprestação é feita em dinheiro, ou predominantemente em dinheiro. Nos casos de permuta, ou naquelas situações em que o recebimento da contrapartida pelo proprietário depende de habilidades e características próprias do ofertante, o direito de preferência é incompatível, por lhe faltar condição de validade essencial, como a oferta nas mesmas e exatas condições.
Referências
[1] Sobre o tema, ver: Apelação com Revisão nº 831598-0/1, 31ª Câmara de Direito Privado do TJSP; Apelação nº 0136667-86.2006.8.26.0000, 27ª Câmara de Direito Privado do TJSP; Apelação nº 1017846-53.2013.8.26.0100, 33ª Câmara de Direito Privado do TJSP.
[2] SOUZA, Sylvio Capanema. Lei do Inquilinato Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2012, pg. 150/151
[3] Nesse sentido, destaca-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o julgador entendeu ser vedada a atribuição de caráter especulativo ao direito de preferência: “O direito de preferência a que fazia jus o inquilino era de natureza personalíssima, de modo que não poderia ser cedido a terceiros. [...]. A razão de tal entendimento é simples: a preferência dificulta a circulação econômica da propriedade, de modo que a restrição somente se justifica com a função de proteger a habitação e o fundo de comércio do inquilino, em nome da segurança da família e da estabilidade dos investimentos invertidos pelo locatário. Logo, somente o locatário é que tem legitimação para afrontar a preferência, não podendo ceder tal direito potestativo personalíssimo a terceiros não locatários. Entender o contrário seria converter instituto protetivo em instituto especulativo, em detrimento do locador.” (TJSP; 4ª Câm. De Dir. Privado; Ap. 0250539-02.2008.8.26.0100; Relator: Des. Francisco Loureiro; J. 19.04.2012).
[4] Usualmente se ajusta que o proprietário terá direito a um percentual sobre o chamado VGV (volume geral de vendas), que constitui as receitas decorrentes de alienação a terceiros de todas as unidades autônomas do empreendimento, podendo haver, conforme o caso, desconto de comissão ou outras despesas.
Rodrigo Cury Bicalho / Publicado originalmente por Revista Opinião Jurídica, ed. 3 - 2015.
Fonte: Artigos JusBrasil
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