Muitos já devem ter se deparado, ao mudarem-se para um edifício recém entregue, que a convenção condominial supostamente vigente foi editada e imposta pela Construtora que incorporou o empreendimento.
Tal imposição, em análise sumária, parece trazer benefícios aos condôminos inicialmente, pois organiza o empreendimento recém estabelecido para a chegada dos primeiros proprietários, evitando (ou mitigando), por exemplo, o risco de problemas organizacionais.
Ocorre que, também nesta convenção unilateralmente imposta, por vezes vêm estipuladas disposições atinentes às verbas condominiais, além de um desconto concedido às próprias construtoras em relação às verbas condominiais relativas as suas unidades (ainda não alienadas). Em algumas situações o desconto alcança até mesmo a isenção ou muito próximo disso.
Quando esse desconto não vem previsto na convenção de condomínio constituída pela construtora, poderá estar disposto no contrato de compra e venda dos imóveis. Ou mais, poderá ser objeto de deliberação em uma primeira assembleia condominial, oportunidade em que a construtora, contando com a benesse de ainda ter a maioria dos votos ante o número de unidades não negociadas, aprova suas próprias proposições.
Todavia, para a análise aqui efetivada, quaisquer das opções acima referidas alcançará a mesma conclusão.
Isso porque o objeto desta reflexão é a possibilidade da construtora contar com a benesse de pagamento da verba condominial com desconto por, supostamente, não utilizar suas unidades, pois ainda não foram vendidas.
Veja o que prevê o art. 122, do Código Civil:
“Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.”.
Como se denota, quaisquer das três hipóteses acima citadas, que não excluem outras em situações similares, caracteriza perfeitamente o descrito final do Art. 122, do Código Civil, ao impor à parte contrária de um negócio jurídico condições por seu puro arbítrio.
Quando se trata dos descontos previstos em convenções condominiais, corriqueiramente as construtoras alegam se resguardar na parte final do Art. 1.336, I, do Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 1.336. São deveres do condômino:
[...]
I - contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção;”.
O Art. 12, da Lei nº 4.591/64, ratifica a disposição supra.
Entretanto, ainda que exista uma convenção de condomínio, seja aquela imposta unilateralmente, seja aquela aprovada quando a construtora detém a maioria das unidades – interferindo diretamente no resultado da votação, a disposição prevendo o desconto ao pagamento da verba condominial pela Construtora viola flagrantemente o constitucional princípio da isonomia, que consta no Art. 05º, caput, da Constituição Federal, além de configurar evidente enriquecimento ilícito. Precedente do STJ – RESp 541.317/RS.
Deste modo, a ressalva da parte final do inciso I, ainda que existente, não poderá dar ensejo à violação do princípio da isonomia ou gerar o enriquecimento de quaisquer dos envolvidos.
Assim, parece claro que tal ressalva surtirá efeito mais na forma de cálculo da verba condominial (parâmetro) – fração ideal, valor pré-fixado, características do imóvel. Jamais tal previsão/ressalva poderia ser autorizada de forma a privilegiar demasiadamente um condômino em prejuízo de outro.
É importante notar que o reflexo financeiro do desconto no montante angariado pelo Condomínio é de grande monta, pois, além da arrecadação ser menor, o valor arcado pelos outros condôminos deverá ser maior, para repor o déficit do valor não pago pela Construtora.
Neste sentido, tal qual prevê o citado Art. 1.336, do Código Civil, todos os condôminos, sem margem a exceções, arcarão com o custeio do condomínio de forma igualitária, a depender apenas do parâmetro previsto para o cálculo.
Importante, ainda, trazer o Art. 1.334, do Código Civil:
“Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará:
I - a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;”.
De forma a ratificar todo o exposto, o Art. 1.334 declina cristalinamente que a convenção determinará a quota de cada unidade de modo a atender às despesas condominiais. Ou seja, todas as unidades, em suas proporções, haver-se-ão de arcar com o custeio do condomínio – vinculação direta do pagador com as despesas condominiais.
Vale lembrar também que a obrigação da construtora de pagar a verba condominial é propter rem, ou seja, deriva do status de proprietária dos imóveis, tornando-se devedora de todo o custeio do condomínio, na sua proporção (fração ideal, valor pré-fixado etc.). Ou seja, não tem origem, ou não pode ter, em um instrumento contratual, por exemplo. Leia-se o Art. 1.315, do Código Civil:
“Art. 1.315. O condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver sujeita.”.
O enriquecimento ilícito das construtoras/incorporadoras em casos como o presente é ainda mais evidente quando justificam o respectivo desconto, normalmente sob a égide de que os imóveis não foram alienados, logo, não estão ocupados, o que declinaria que os serviços condominiais não estão sendo utilizados pela construtora proprietária.
No entanto, ao tentar justificar a abusividade, olvida a construtora de que inúmeros outros proprietários, de igual forma, mantêm suas unidades vazias, ora por mera deliberalidade, ora porque estão tentando vender ou alugar. E, com base na premissa utilizada pela construtora, todos os proprietários em situações similares poderiam usufruir do referido desconto, mas não é o que se tem notícia.
E mais, ao contrário do que tenta justificar, fato é que a construtora também se beneficia de todos os serviços condominiais, ainda que suas unidades estejam desocupadas. Isso porque, além de utilizar o condomínio para apresentar a possíveis adquirentes, usufruindo, assim, dos serviços de zeladoria, portaria, segurança, elevadores, limpeza, dentre outros, ainda aproveita do condomínio em boas condições para valorizar seus imóveis, condições essas alcançadas restritivamente graças aos dispêndios arcados pelos proprietários a título de verba condominial.
Como se denota, não bastasse a demonstrada ilegalidade do desconto aqui prospectado, com clareza também se percebe que também o é inteiramente injustificado.
Na voz dos Tribunais a toada não é diferente. Em que pese as construtoras insistirem com a prática, as decisões jurisprudenciais parecem encontrar pacificação no sentido da ilegalidade do desconto ‘autoconcedido’ na verba condominial pelas Construtoras. A título exemplificativo, colaciona-se os precedentes que seguem, que mantêm basicamente a fundamentação dos demais tribunais.
“CONDOMÍNIO EDILÍCIO – Rateio de despesas condominiais – Convenção condominial que estabelece privilégio em prol da Construtora, sob a forma de abatimento de 50% das despesas condominiais em relação às unidades não comercializadas ou sob sua posse – Nulidade – Quebra da paridade de tratamento entre os condôminos não legitimada nas circunstâncias – Privilégio imposto aos demais condôminos, consumidores do produto disponibilizado no mercado pela construtora ré – Disposição incompatível com a diretriz da boa-fé objetiva, submetendo os demais condôminos a situação de iniquidade, mercê da onerosidade excessiva a que expostos – Precedentes – Ratificação dos fundamentos da r. sentença hostilizada, nos termos do art. 252 do RITJSP. Recurso desprovido.”[1]
“Ação de cobrança de contribuições condominiais. Desnecessidade de notificação extrajudicial. Mora "exre". Legitimidade passiva do titular da transcrição do registro imobiliário para a obrigação de pagar as contribuições. Inexistência de prova da ciência do Condomínio sobre a alienação do imóvel. Cláusula da Convenção de Condomínio imposta pela construtora, que lhe concede o privilégio de pagamento de 30% da taxa condominial devida pelas unidades não comercializadas ou que estejam em seu poder. Abusividade reconhecida. Recurso desprovido.”.[2]
E quando o condômino se deparar com o desconto aqui rechaçado, a medida cabível será a propositura de uma ação declaratória de nulidade, uma vez que a cláusula estipulada unilateralmente pela construtora é nula de pleno direito, a teor do que prevê o Art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[..]
IV. estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;”.
Sobre a nulidade em casos como o presente, extrai-se da doutrina: “...a obrigação de concorrer nas despesas de condomínio com a quota-parte fixada para cada unidade autônoma decorre do disposto no art. 1.336, I, do Código Civil, visto que a manutenção do edifício interessa a todos os condôminos. Daí serem consideradas nulas cláusulas que sem razão plausível exonerem dessa obrigação qualquer um deles (o incorporador no tocante às unidades não vendidas, por exemplo), em detrimento dos demais que, assim, têm de arcar com a parte não paga pelo beneficiado (RT 756/187).”[3].
Por fim, mais do que a propositura de demandas judiciais, os consumidores precisam atentar-se à necessidade de questionar o desconto indevido, pois a insistência das construtoras, mesmo com decisões contrárias dos Tribunais, se abraça no desinteresse dos demais condôminos de suscitar esclarecimentos e/ou exigir que o pagamento da verba condominial seja integral tal qual os demais proprietários.
NOTAS
[1] TJ-SP - APL: 00742577020128260100 SP 0074257-70.2012.8.26.0100, Relator: Airton Pinheiro de Castro, Data de Julgamento: 16/02/2016, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/02/2016.
[2] TJ-SP - APL: 10169351020148260196 SP 1016935-10.2014.8.26.0196, Relator: Pedro Baccarat, Data de Julgamento: 12/11/2015, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/11/2015.
[3] Franco, J. Nascimento. Condomínio, 5ª ed., Editora RT, pág. 335.
Vinícius Uberti Pellizzaro - Advogado
Fonte: Revista Jus Navigandi
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