quinta-feira, 21 de junho de 2018

DESVENDANDO O PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO


Pode uma pessoa ter mais de um patrimônio? 

Tradicionalmente, entendia-se que uma pessoa apenas poderia ter um patrimônio. No entanto, essa ideia de unidade patrimonial foi perdendo cada vez mais força com o crescente número de patrimônios de afetação (também conhecidos como patrimônios separados) criados pelo legislador.[1]

Os patrimônios de afetação têm “dono”, eles não são massas patrimoniais sem sujeito. E o titular do patrimônio de afetação continua sendo, ao mesmo tempo, titular do seu patrimônio pessoal, de modo que sim, uma pessoa pode ter mais de um patrimônio.

O que é o patrimônio de afetação?

É um patrimônio separado, ou seja, um conjunto de bens (móveis, imóveis, direitos) que não se misturam com os demais bens do seu titular – ou, em outras palavras, com o patrimônio pessoal deste.[2]

Por meio da afetação patrimonial, determinados ativos ficam inteiramente destinados (afetados) à realização de uma finalidade. Como decorrência, apenas os credores relacionados a essa finalidade podem se valer dos bens que integram o patrimônio de afetação para a satisfação de suas dívidas. Eis o fenômeno da blindagem patrimonial: pessoas estranhas aos negócios do patrimônio de afetação não podem executar os ativos que o integram para satisfazer seus créditos.

Exemplo de patrimônio de afetação, no direito brasileiro, tem-se na atividade de incorporação imobiliária.[3] Se o incorporador optar por esse regime, o conjunto de ativos destinado à realização de determinado empreendimento forma patrimônio separado, que não se mistura com os demais bens integrantes do patrimônio pessoal do incorporador.

Qual o papel do titular do patrimônio de afetação?

O titular do patrimônio de afetação tem um poder-dever. O poder decorre da sua situação de dono dos ativos que integram o patrimônio. E o dever decorre do caráter fiduciário da sua titularidade: o sujeito apenas pode dar aos ativos destinação compatível com a finalidade do patrimônio de afetação. Veja-se que os patrimônios de afetação são previstos em lei para o alcance de determinado escopo. Por isso que o sujeito do patrimônio não é livre para fazer o que bem entender. Deve agir para realizar, da melhor maneira possível, a destinação daqueles bens – o que inclui alienar ou substituir os bens, quando for o caso. Vale lembrar que os ativos, pelo só fato de integrarem um patrimônio de afetação, não ficam onerados ou gravados e podem ser objeto de livre alienação ou substituição – desde que esses atos sejam realizados para concretizar o escopo que justificou a criação do patrimônio separado. Exemplo disso é a comercialização de frações ideais do terreno sobre o qual haverá a construção do condomínio edilício em empreendimento imobiliário sujeito ao regime do patrimônio de afetação.

O que acontece com o patrimônio de afetação caso seu titular esteja enfrentando grave crise financeira? 

Os ativos integrantes do patrimônio de afetação não se confundem com os ativos pessoais de seu titular. Em caso de grave desequilíbrio econômico-financeiro do titular do patrimônio de afetação, os ativos dele integrantes permanecem protegidos e inteiramente voltados para a finalidade a que se destina o patrimônio. O patrimônio de afetação, justamente por ser separado, fica blindado, isto é, apenas os credores a ele relacionados podem atingir seus bens. Por isso, em caso de falência, insolvência, liquidação ou recuperação judicial relativa ao patrimônio pessoal daquele que também é dono do patrimônio de afetação, os bens deste não sofrem os efeitos de tais eventos.

Qual a relevância do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias?

O impacto social da atividade de incorporação imobiliária é muito grande. Os adquirentes antecipam valores destinados à realização das obras e só posteriormente receberão o produto final. Muitas pessoas buscam realizar o sonho da sua casa própria via incorporação imobiliária, entregando ao incorporador, não raras vezes, a economia de toda uma vida de trabalho. No caso de falência do incorporador, sem o patrimônio de afetação, os adquirentes, se não conseguirem continuar as obras, vão concorrer com os demais credores do incorporador, conferindo a lei apenas privilégio aos créditos dos adquirentes, o que nem sempre se revela suficiente para assegurar sua satisfação.[4] Nessa direção, sem o patrimônio de afetação, os riscos dos adquirentes não ficam adstritos ao específico empreendimento, mas a todas as atividades do incorporador.

A conhecida falência da Encol, ocorrida em 1999, que deixou inúmeros adquirentes de unidades autônomas sem amparo, motivou a mudança legislativa que estabeleceu o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária (Medida Provisória nº. 2.221/2001, seguida da Lei nº. 10.931/2004). A opção pelo regime da afetação patrimonial constitui faculdade atribuída ao incorporador.[5] Entretanto, ainda que sujeita à discricionariedade do incorporador, a possibilidade de separação patrimonial representa significativo avanço técnico para a proteção dos adquirentes e demais credores do empreendimento. Uma vez que o incorporador adote o patrimônio de afetação, os ativos pertinentes ao empreendimento imobiliário ficam blindados e não podem ser atingidos por eventual recuperação judicial ou falência do incorporador.[6] Não ingressa no processo falimentar senão o eventual saldo remanescente, uma vez ultimada a incorporação ou liquidado o patrimônio especial.[7]

Por que não basta a criação de uma Sociedade de Propósito Específico? 

Os incorporadores costumam criar Sociedades de Propósito Específico (SPEs) para cada empreendimento imobiliário em desenvolvimento. As SPEs são pessoas jurídicas especificamente constituídas para certo projeto e vocacionadas à extinção com a conclusão deste. A criação da SPE busca assegurar que os bens e direitos pertinentes ao empreendimento não sejam atacados por credores a ele não relacionados. Com efeito, são as ações da SPE (não já seus ativos) que integram o patrimônio de seus acionistas e, por isso, sujeitam-se tais ações à agressão dos credores deste.

Entretanto, não raras vezes, o que se observa é a desconsideração, pela controladora, da autonomia jurídica das SPEs. Isso ocorre quando, lamentavelmente, a controladora pede recuperação judicial de todo o “grupo”, aí se incluindo as SPEs, mesmo que elas não estejam enfrentando qualquer dificuldade financeira. A ideia da controladora é compartilhar os ativos das SPEs com todo o “grupo” societário, de maneira a propiciar maiores chances de êxito do plano de recuperação judicial. Sem embargo, o TJSP, em emblemático acórdão, exigiu que fosse respeitada a autonomia jurídica das SPEs no âmbito da atividade de incorporação imobiliária, tendo excluído as SPEs da recuperação judicial.[8]

Dessa forma, a SPE assegura blindagem patrimonial pela criação de um novo sujeito de direito, responsável por um certo projeto. Essa blindagem, entretanto, não é tão forte como no patrimônio separado porque, sendo a SPE parte de uma cadeia societária, determinadas dívidas podem atingi-la, mesmo que não se relacionem ao empreendimento.[9] Além disso, caso a SPE enfrente situação de insolvência, aplica-se o regime geral da Lei nº. 11.101/2005, ao passo que, havendo patrimônio de afetação, aplica-se o regime protetivo previsto na Lei nº. 4.591/64.[10] Destaque-se ainda que, havendo patrimônio de afetação, é possível aos adquirentes, via Comissão de Representantes,[11] fiscalizar a gestão dos recursos destinados à incorporação.[12] De todo modo, ressalve-se ser possível a utilização conjunta das duas técnicas de blindagem patrimonial, ou seja, a criação de SPE com patrimônio de afetação e, neste caso, haverá plena incidência das normas protetivas constantes na Lei nº. 4.591/64.

E se o patrimônio de afetação for insuficiente para o pagamento de suas dívidas? 

A separação patrimonial pode ser: (i) perfeita ou absoluta; e (ii) imperfeita ou relativa. Se for imperfeita, os bens do patrimônio pessoal do sujeito podem ser atingidos pelos credores do patrimônio de afetação em caso de insuficiência deste. Na separação patrimonial perfeita, a seu turno, o patrimônio pessoal não possui responsabilidade subsidiária. No caso da incorporação imobiliária, a separação patrimonial é imperfeita e os adquirentes sempre poderão atacar os bens do incorporador caso os ativos do patrimônio de afetação sejam insuficientes.[13]

Qual o futuro do patrimônio de afetação?

O patrimônio de afetação representa grande conquista do direito brasileiro. Com efeito, viabiliza a segregação de riscos, evitando-se a contaminação de um projeto saudável por outro deficitário. Com isso, mostra-se instituto de grande valia social, vez que permite a proteção dos mais vulneráveis em atividades estratégicas, além dos financiadores dos empreendimentos, reduzindo-se o risco de crédito. O futuro do patrimônio de afetação depende da sua adequada compreensão, fundamental para que se assegure seu principal efeito, qual seja, a blindagem de riscos. Por isso mostram-se benfazejas as decisões judiciais que preservam os patrimônios de afetação e impedem que sejam arrastados em recuperações judiciais que dizem com o desequilíbrio do patrimônio pessoal do incorporador.[14]

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[1] O patrimônio de afetação, para ser instituído, depende de previsão legal.

[2] Para um exame aprofundado do tema do patrimônio de afetação, cf. Milena Donato Oliva, Patrimônio Separado, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, passim.

[3] Outras atividades também se valem da técnica da afetação patrimonial. Cabe destacar, a título ilustrativo, o fundo de investimento imobiliário, regulado pela Lei nº. 8.668/1993; a securitização de créditos imobiliários, prevista na Lei nº. 9.514/1997; o sistema de consórcio de que trata a Lei no. 11.795/2008; o sistema brasileiro de pagamentos, constante da Lei no. 10.214/2001; e o depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários, com previsão na Lei no. 12.810/2013.

[4] Lei nº. 4.591/64, art. 43, III: “em caso de falência do incorporador, pessoa física ou jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir na construção das edificações, os subscritores ou candidatos à aquisição de unidades serão credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador, respondendo subsidiariamente os bens pessoais deste”.

[5] V. Lei nº. 4.591/64, art. 31-A, caput. Sobre a constituição do patrimônio de afetação, v. art. 31-B.

[6] Lei nº. 4.591/64, art. 31-A, § 1º: “o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”. Lei nº. 4.591/64, art. 31-F: “Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação”.

[7] Lei nº. 4.591/64, art. 31-F, § 13: “Havendo saldo positivo entre as receitas da incorporação e o custo da conclusão da incorporação, o valor correspondente a esse saldo deverá ser entregue à massa falida pela Comissão de Representantes”. Lei nº. 11.101/2005, art. 119, IX: “Os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer”.

[8] TJSP, Agravo de Instrumento nº. 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª C. R. D. E., Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12.6.2017.

[9] CDC, art. 28, § 2º: “As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código”. Lei nº. 8.212/1991, art. 30, IX: “A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas: (…) IX – as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta Lei (…)”. CLT, art. 2º, § 2º: “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”.

[10] V. Lei nº. 4.591/64, art. 31-F.

[11] Lei nº. 4.591/64, art. 31-D: “Incumbe ao incorporador: (…). IV – entregar à Comissão de Representantes, no mínimo a cada três meses, demonstrativo do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado ou com os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebidos no período, firmados por profissionais habilitados, ressalvadas eventuais modificações sugeridas pelo incorporador e aprovadas pela Comissão de Representantes”. Cf., ainda, art. 31-C: “A Comissão de Representantes e a instituição financiadora da construção poderão nomear, às suas expensas, pessoa física ou jurídica para fiscalizar e acompanhar o patrimônio de afetação. (…)”.

[12] A plena vinculação dos bens integrantes do patrimônio de afetação à realização da correspondente incorporação constitui preocupação primordial do legislador. Nesse sentido, o § 3º do art. 31-A da Lei nº. 4.591/64 estabelece que “os bens e direitos integrantes do patrimônio de afetação somente poderão ser objeto de garantia real em operação de crédito cujo produto seja integralmente destinado à consecução da edificação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. Por sua vez, o § 6º prescreve que “os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação serão utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação”. Integram o patrimônio de afetação todos os ativos relacionados ao empreendimento, exceto “os recursos financeiros que excederem a importância necessária à conclusão da obra (art. 44), considerando-se os valores a receber até sua conclusão e, bem assim, os recursos necessários à quitação de financiamento para a construção, se houver” (Lei nº. 4.591/64, art. 31-A, § 8º, I).

[13] V. Lei nº. 4.591/64, art. 43, III e VII.

[14] Vale rememorar a recente e importante decisão do TJSP que, acertadamente, impediu que os patrimônios de afetação fossem contaminados pelo processo de recuperação judicial em que se discute o soerguimento do “grupo” societário (TJSP, Agravo de Instrumento nº. 2236772-85.2016.8.26.0000, 2ª C. R. D. E., Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12.6.2017; TJSP, Agravo de Instrumento nº. 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª C. R. D. E., Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12.6.2017), bem como deliberação semelhante alcançada consensualmente no âmbito da recuperação judicial nº. 1016422-34.2017.8.26.0100.

Milena Donato Oliva – Professora da Faculdade de Direito da UERJ. Sócia do Escritório Gustavo Tepedino Advogados.
Fonte: JOTA

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