sábado, 14 de setembro de 2019

APLICAÇÃO DA USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL


INTRODUÇÃO 

O instituto da usucapião, regulamentado pela Lei nº 6.015/73 e Lei nº 13.465/2017, é a forma de aquisição da propriedade por meio da posse e era materializado unicamente por meio de ação judicial de reconhecimento dos requisitos legais de posse. Recentemente, o instituto teve sua aplicação ampliada para a via extrajudicial, através de modificação inserida pelo atual Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), o que tornou o procedimento mais simplificado e mais célere, porém tão seguro quanto o judicial.

Em que pese a segurança do procedimento, a alteração legislativa supracitada conta com omissões e lacunas, tais como o rol de documentos, incidência de imposto de transmissão e notificação do titular do imóvel, ocasionando, ao mesmo tempo, arbitrariedade no processo de confecção da ata notarial e conclusão do registro.

DA POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL

A primeira questão tida como preliminar ao estudo da inovação do instituto é o esclarecimento de que a usucapião, como instrumento do direito privado de convalidação de posse em propriedade, mantém seus conceitos e diretrizes legais inalterados, independentemente da via a ser escolhida para seu processamento.

Embora a natureza jurídica da usucapião seja por excelência originária, muito tem se debatido na doutrina sobre a possibilidade de a aquisição ser enquadrada como derivada em decorrência da participação do proprietário expropriado do terreno no procedimento.

Neste aspecto, cumpre esclarecer que a inovação no instituto ocorreu apenas no procedimento pelo qual o direito é reconhecido e declarado para que ganhe eficácia erga omnes, o que não importa em alteração do próprio instrumento, suas premissas e natureza, que permanecem inalterados como forma originária de aquisição de propriedade, assim como ensina Maria Helena Diniz, vejamos: 

“pelos princípios que presidem as mais acatadas teorias sobre a aquisição da propriedade é de se aceitar que se trata de modo originário, uma vez que a relação jurídica formada em favor do usucapiente não deriva de nenhuma relação com o seu antecessor”. Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 121.

Outra confirmação de que o instituto jurídico não sofreu alterações em decorrência do procedimento para sua materialização são as modalidades legais, tais como extraordinária, ordinária, urbana e rural, as quais não sofrem nenhum impacto se invocadas em via judicial ou extrajudicial.

DA ESCOLHA DA VIA DE PROCESSAMENTO

Vale esclarecer que a via extraordinária, por exemplo, conforme disposto no artigo 1.238 do Código Civil trata-se da modalidade usucapida em que é dispensada a comprovação da existência de justo título e da boa-fé do usucapiente, isto é, daquele que pretende ter reconhecido o seu direito de posse sobre o imóvel considerando-se que “esta posse, mansa e pacífica, é aquela exercida a revelia do dono, que não toma qualquer atitude para defender sua posse”{C}[1], assim como explicitado por Luiz Antônio Scavone Junior em Direito Imobiliário, Teoria e Prática.

A via ordinária, por sua vez, tem os mesmos requisitos necessários à usucapião extraordinária, acrescentando-se, todavia, a necessidade da apresentação de justo título e comprovação da boa-fé.

Superada a via de processamento e a natureza jurídica do tema, tem-se que, ocorrendo a comprovação da posse contínua reiterada no tempo, podendo ou não ser mansa e pacífica, a depender do prazo, verifica-se a convalidação em propriedade e a aplicabilidade do instituto.

Neste sentido, caberá ao interessado a faculdade de escolha pela via de processamento entre judicial ou extrajudicial, no qual são importantes as justificativas para a implantação da Usucapião Extrajudicial. Assim, uma vez respeitados os requisitos dispostos no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos 6.015/13, deverá o usucapiente também justificar a utilização da via extrajudicial fundamentado nos princípios da celeridade e desjudicialização, conceitos sedimentados pela Emenda Constitucional 45/2004 que trata da razoável duração do processo, judicial ou administrativo. Assim, a via extrajudicial encontra respaldo na simplicidade do procedimento, segurança jurídica e consequente conversão de posse em propriedade.

Além disso, a faculdade de transição entre as vias judicial e extrajudicial torna possível ao interessado, inclusive, alterar procedimentos já iniciados aproveitando documentos e provas.

Quanto ao local de processamento da usucapião extrajudicial, tem-se que a competência territorial é absoluta, devendo o procedimento ocorrer necessariamente perante o Registro de Imóveis em que o imóvel se encontrar registrado, o que guarda relação com a eficácia erga omnes do registro e com o princípio da continuidade do registro imobiliário.

DO PROCEDIMENTO E DAS OMISSÕES LEGAIS 

Feitas estas considerações preliminares, necessário se torna o esclarecimento do procedimento, passo a passo, para que a aplicação da usucapião extrajudicial possa ser compreendida em todas suas peculiaridades, facilidades e dificuldades. 

Inicialmente, é importante destacar que a via extrajudicial deverá ser apresentada mediante requerimento ao Oficial do Cartório do Registro de Imóveis competente, assim como destacado no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos que sofreu alteração com o advento do Código de Processo Civil de 2015, vejamos:

Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: (...) (Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)

Para tanto, devem constar no requerimento as seguintes informações precisas, visto que funcionará para o Oficial de Registro de Imóveis assim como uma petição inicial funciona em procedimento judicial, motivo pelo qual deverão ser preenchidos os requisitos da petição inicial estabelecidos pelo artigo 319 do Código de Processo Civil. De igual forma, o requerimento deverá relatar a posse e suas características, os direitos inerentes à posse, a modalidade a ser invocada e qual o pedido final do requerente, todos de forma precisa e clara, considerando-se que a convalidação da propriedade será declarada por pessoa que não detém o poder discricionário imparcial de julgamento, assim como um juiz de direito.

Neste sentido, é de suma importância a consciência de que a via extrajudicial, embora não jurisdicionada, conta com a decisão de pessoa terceira à relação, pelo que os requisitos de posse devem ser demonstrados objetivamente, preferencialmente sem controvérsias ou aspectos subjetivos que desencadeariam subjetividade na análise do pedido pelo oficial competente.

Superados os requisitos do requerimento, o segundo passo do procedimento extrajudicial é a confecção de uma ata notarial, ou seja, a elaboração de um Título Hábil ao registro da Posse Ad Usucapionem, baseando-se na premissa de que para a criação, modificação ou extinção de direitos reais e direitos a eles relativos, torna-se necessária a existência de um título hábil ao registro.

Para tanto, deverá a ata notarial, em suma, abranger as características específicas do imóvel, individualizando-o, bem como a identificação, mediante a qualificação completa dos usucapientes, seus respectivos cônjuges e dos titulares do imóvel. Deverá o usucapiente expor de que forma e há quanto tempo exerce posse sobre o imóvel, tornando possível ao Oficial do Cartório de Registro de Imóveis enquadrar, corretamente, a modalidade de usucapião aplicável ao caso.

A ata notarial também desafia a competência territorial, porém relativa, uma vez que, embora não haja definição de competência para atos dos Cartórios de Notas, é expressamente vedado ao Tabelião a realização de diligências fora da circunscrição de sua serventia.

Isto significa que a ata por si só poderá ser lavrada em qualquer serventia de notas, dentro ou fora da comarca de situação do imóvel usucapiendo. Porém, sendo necessária a diligência do Oficial ao local para comprovação ou para atestar situação peculiar da posse, nele estará limitado à circunscrição de direito.

Importante ressalvar que a diligência in loco não é imprescindível para a comprovação da posse ou confecção e lavratura da ata, trata-se de necessidade a ser avaliada pelo próprio oficial em caso concreto, assim como autoriza o Provimento nº 65 do Conselho Nacional de Justiça, o qual regulamenta o Código de Processo Civil no tocante a usucapião extrajudicial:

Art. 4º (...)

g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes; (...)

(Provimento nº 65/2017, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ)

Outro ponto a ser superado constitui a principal dificuldade prática da usucapião extrajudicial, uma vez que atribui ao Oficial o poder discricionário típico do Estado para exigir documentos não elencados em lei e, portanto, tornar o procedimento subjetivo e digno de julgamento, e não somente de conferência do cumprimento de requisitos objetivos.

Com isto, detém o Tabelião de Notas, ainda que não previsto em lei, o livre convencimento e a liberalidade para exigir documentos não elencados no Provimento nº 65/2017, o que, por sua vez, torna o procedimento incerto ao requerente.

Ademais, persiste controvérsia no processamento objetivo da usucapião extrajudicial quanto à exigibilidade do ITCD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos), considerando-se casos de envolvimento de inventários não concluídos para a transferência da propriedade pelas vias ordinárias.

Isto, porque a legislação tratou de dispensar a exigência de certidão de não incidência de ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Inter-Vivos) e de certidão expedida por ente público atestando que a aquisição pretendida não constitui parcelamento irregular de solo, mas não adentrou à questão tributária em caso de proprietário já falecido, hipótese em que faz-se necessário o recolhimento do ITCD, de tal sorte que a incidência do ITCD permanece aplicável caso a caso considerando-se as suas particularidades e entendimento do Tabelião.

Ademais, a Lei ainda determina que o processamento da usucapião em via extrajudicial está condicionado à comprovação de óbice na transferência da propriedade pelas vias ordinárias, o que novamente traz ao procedimento toda a subjetividade incompatível com a simplicidade e celeridade do mesmo.

Assim, percebe-se que a via extrajudicial é alternativa mais célere, muito embora imperfeita ao direito pretendido.

O terceiro passo do procedimento da usucapião extrajudicial é a confecção de planta e memorial descritivo da área a ser usucapida nas situações em que o imóvel não se encontra perfeitamente identificado e delimitado no registro imobiliário, devendo ser confeccionada planta nos termos determinados no inciso II do já destacado art. 216-A:

II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes; (...)

(Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015).

E, diante da aquisição originária, haverá sempre o risco de sobreposição de áreas ou invasão no momento da delimitação da área a ser usucapida, pelo que são necessárias as assinaturas dos confrontantes do imóvel na documentação técnica, assim como ocorre no procedimento de retificação de área, sendo neste caso o silêncio dos proprietários e confrontantes interpretado como anuência ao reconhecimento do direito do usucapiente.

Destaca-se ainda que as assinaturas podem ser supridas de forma espontânea ou provocada por meio de notificação dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância, assim como autoriza o §2º, inciso IV do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos.

Para os imóveis usucapiendos localizados em Condomínio edilício ou loteamento regularmente instituído é dispensada a planta e memorial descritivo, sendo que para os imóveis localizados em Condomínio edilício constituído de fato, também é dispensada a anuência de todos os titulares de direito constantes da matrícula e demais condôminos, bastando a notificação do síndico.

Em sequência, com o requerimento e ata notarial em mãos, o requerente se dirigirá ao Registro de Imóveis competente, aonde solicitará o registro da aquisição da propriedade por meio da posse.

Neste momento serão exigidas certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel, do domicílio do requerente e justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel, assim como determina o inciso III do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos.

Uma polêmica existente neste ponto é a dispensa da notificação do titular do imóvel, uma vez que o justo título já demonstra a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações, e a certidão do distribuidor cível expedida até trinta dias antes do requerimento, já demonstra a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo.

Não obstante, os Cartórios, valendo-se da liberalidade da solicitação de documentação complementar e não elencada no supra mencionado artigo 216-A, ainda exigem as notificações do titular do imóvel por insegurança quanto ao procedimento. Outros documentos complementares também podem ser exigidos, tais como procuração - instrumento de mandato, público ou particular, com poderes especiais e com firma reconhecida, por semelhança ou autenticidade, outorgado ao advogado pelo requerente e por seu cônjuge ou companheiro; certidão dos órgãos municipais e/ou federais que demonstre a natureza urbana ou rural do imóvel usucapiendo, nos termos da Instrução Normativa Incra n. 82/2015 e da Nota Técnica Incra/DF/DFC n. 2/2016, expedida até trinta dias antes do requerimento, dentre outros.

Por fim, uma vez que a documentação apresentada perante os cartórios esteja totalmente em ordem, o Registrador demandará a notificação dos entes públicos e terceiros interessados para ciência do procedimento, momento em que poderão haver contestações, juntamente com as impugnações de confrontantes que se manifestem fundamentadamente contrários à usucapião, quando serão oportunizadas audiências de conciliação para solução de controvérsias finais ao registro.

Não havendo questionamentos, o registro é concluído. Havendo, caso fundamentado, às partes é oportunizada a chance de mediação no próprio cartório ou, entendendo pela impossibilidade, o Registrador indeferirá o procedimento ou, ainda, o enviará à via judicial para julgamento.

CONCLUSÃO

Por todo o exposto, constata-se que o procedimento, embora simplificado e de natureza célere, pode contar com dificuldades e óbices por parte dos cartórios em decorrência das omissões legais frente às incertezas, segurança jurídica, responsabilidade objetiva do registrador e mesmo novidade do procedimento.

Daí a crucial importância do acompanhamento de um advogado com qualificação específica e conhecimento da posse e do instituto durante todo o procedimento, desde a confecção da ata notarial, ainda no Tabelionato de Notas, mas também no momento de processamento perante o Registro de Imóveis competente, uma vez que ele será apto a identificar e acompanhar se o procedimento está sendo seguido na forma legal, sem deslizes, inseguranças ou exigências indevidas pelos cartórios, com vistas a assegurar ao posseiro requerente seus direitos de convalidação da posse em propriedade. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 121.

SCAVONNE, Luiz Antônio Junior- Direito Imobiliário, Teoria e Prática, 13 ed, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1.149.

BRASIL. Provimento nº 65, de 14 de Dezembro de 2017. Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de Dezembro de 1973. Lei de Registros Públicos.

BRASIL. Lei 13.105, de 14 de Março de 2015. Novo Código de Processo Civil.

NOTA

[1] Luiz Antônio Scavone Junior- Direito Imobiliário, Teoria e Prática, 13 ed, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1.149. 

Luiza Ferreira Horta; Aline Chaves Pereira e Lorena Ignácio Alexandre.
Fonte: Artigos Jus Navigandi

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