1. INTRODUÇÃO
Não há como negar que o fenômeno dos shoppings centers revolucionou toda a ideia de consumo e de mercado que se conhecia até então. Apenas no que diz respeito ao ano de 2017, no Brasil, estima-se que estes centros comerciais foram responsáveis por receber 3,56 bilhões de visitas, o que representa uma média de 10 milhões de pessoas por dia[1].
Estes estonteantes números se explicam justamente por não se tratar de um simples edifício dividido em lojas, restaurantes e áreas de lazer no qual se expõe à venda tudo ou quase tudo.
Nos moldes do que leciona Alfredo Buzaid,
Um shopping center é uma cidade em miniatura, nasce planejada pelo empresário, que cuida da sua localização em determinado ponto, da sua organização racional e do seu funcionamento regulado por princípios, que são dispostos em regimento interno e aceitos previamente por todos os titulares de unidades que operam dentro do conjunto[2].
Por esta razão, complementa o estudioso afirmando que o empresário investidor do shopping center “não assume apenas as vestes de um locador de imóvel, mas de um criador de um novo fundo de comércio[3]”.
Advém desta atuação do empresário a chamada “tenant mix”, que consiste na organização dos gêneros de atividade econômica que no centro comercial se instalarão. Analisa-se e escolhem-se lojas e operações que sejam coesas, complementares, distintas, harmônicas e balanceadas, visando atender a necessidades específicas do mercado, bem como tornar o shopping center atraente, competitivo e rentável para todos os envolvidos[4].
Por todos estes contornos é que muito se discute a natureza jurídica da locação de lojas de shopping centers. Tratar-se-ia de uma simples locação urbana, já regulamentada na Lei nº 8.245/91, ou tratar-se-ia de uma relação única e diferenciada? Neste sentido, de que forma ocorreria o despejo decorrente de tal relação jurídica?
2. DA NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE LOCAÇÃO EM SHOPPINGS CENTERS
Fundamental se faz ressaltar que desde o surgimento do primeiro shopping brasileiro, ainda nos anos 60, discute-se com intensidade a natureza jurídica da locação de lojas em shoppings centers.
Dentre as diversas correntes de pensamento relacionadas à discussão, há que se apresentar, inicialmente, aquela que considera ser o acordo entre o lojista e o empreendedor um verdadeiro contrato de locação. Capitaneada por Washington de Barros Monteiro e por Caio Mário da Silva Pereira, este entendimento parte do pressuposto de que mesmo a existência de peculiaridades na relação em análise é incapaz de descaracterizar o contrato locatício, vez que persistem os elementos essenciais deste[5].
De outro lado, Ives Gandra da Silva Martins entende que existem nos contratos de locação em shopping center “sempre uma dupla natureza, que os faz, de um lado, idênticos ao de uma singela locação do espaço físico em contrato de locação comercial, mas que os torna, de outro lado, um contrato atípico [...][6]”.
Também ao estudar as particularidades deste tipo de contrato pactuado entre o lojista e o empreendedor, Orlando Gomes lançou uma terceira posição, tendo recebido ela grande aceitação na doutrina.
A fim de construir um posicionamento, elencou o estudioso os principais traços de autonomia da relação jurídica em análise:
Traços da autonomia desse contrato relativamente ao de locação podem, afinal, ser sumariados, projetados de ângulos diversos, todos próprios ou discrepantes, tais como os seguintes: 1. a forma de remuneração do uso e gozo das unidades destinadas à exploração comercial; 2. o reajustamento trimestral do soi disant aluguel mínimo; 3. a fiscalização da contabilidade das lojas pelos concedentes do seu uso para o fim de verificar a exatidão do chamado “aluguel percentual”, bem como a sua incidência para a cobrança da diferença no caso de o seu valor ser superior ao do aluguel mínimo; 4. a fixação uniforme e antecipada do critério a ser observado para determinar a majoração do "aluguel" mínimo no tempo da renovação do contrato; 5. a incompatibilidade entre o critério de arbitramento do aluguel nas verdadeiras locações para fins comerciais, aplicado nas renovatórias, e o denominado "aluguel" percentual; 6. o cunho mercantil desse "aluguel" como suporte da lucratividade do empreendimento; 7. a desvinculação entre a atividade comercial e o uso efetivo da loja para efeito de remuneração deste, exigível antes de ser iniciada aquela; 8. a vigência de proibições e práticas ligadas ao uso da loja, derivadas da circunstância de se integrarem num sistema; 9. a proibição de cessão da posição contratual, nula ou impugnável na locação, mas admitida no contrato com o shopping center, por entender com a sua organização e funcionamento; 10. a ingerência de terceiro no exercício do direito do titular do uso da loja, como sucede com o intrometimento da associação a que é obrigado a se filiar, criando-se um vínculo tão apertado que a sua exclusão é admitida como causa de rescisão do contrato; 11. a cooperação do concedente (o shopping center) nas promoções para ativação das vendas e sua participação em campanhas publicitárias; 12. a convergência de interesses no contrato: 13. a imutabilidade orgânica do gênero de atividade do lojista - e tantos outros, significativos da diferença entre o contrato estudado e a locação[7].
Concluiu ele, portanto, tratar-se de um contrato atípico misto por ausência de previsão legal e pelo fato de ter como fundamento uma mesma causa, não obstante a existência de elementos de outros contratos.
Ressalta-se, ainda, que nem mesmo a inserção de previsões legais acerca do tema na Lei nº 8.245/91 (Lei do Inquilinato) em seus artigos 22, 52, §2º e 54, foram capazes de estabelecer um consenso na doutrina.
Enquanto Sylvio Capanema de Souza argumenta estar superada a discussão[8] na medida em que teriam sido inscritas na lei de locação elementos referentes aos shoppings centers, João Augusto Basilio afirma que a locação, ainda que seja a mais importante, é apenas uma das diversas relações entre as partes contratantes. Para o autor, neste sentido, uma enorme gama de outros pactos firmados entre eles não estão abrangidos pela regulamentação citada, exigindo-se a edição de legislação específica para abordar a matéria[9].
Ainda que distintas, percebe-se da inteligência dos posicionamentos apresentados que inquestionável é a relevância das peculiaridades dos contratos de locação em shopping centers. O que varia de uma corrente para outra é apenas a discussão acerca de uma eventual absorção destas diferenças pela relação locatícia ou não.
É por esta exata relevância que o próprio artigo 54 da Lei nº 8.245/1991 prevê expressamente que, “nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei”.
Neste mesmo sentido, dispõe o Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL. LOCAÇÃO. SHOPPING CENTER. ESCRITURA DE NORMAS GERAIS. CLAUSULA CONTRATUAL. INTERPRETAÇÃO. VEDAÇÃO. SUM. 5/STJ. Em tema de locação em shopping center, a nova lei de inquilinato - lei 8.245/1991 - estabelece que nas relações entre locador e lojistas locatários prevalecem as condições previstas nos respectivos contratos locatícios, em virtude das peculiaridades desse empreendimento, que envolve um complexo de atividades (art. 54).
(STJ - REsp 123847/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, Data de julgamento: 17 de junho de 1997)
Conclui-se, pois, que enquanto a doutrina permanece divergindo quanto à natureza do contrato de locação de lojas em shoppings centers, trata-se de ponto comum a ideia de que esta relação depende fundamentalmente da liberdade contratual para que se possa conferir tratamento adequado a eventuais problemáticas específicas.
3. DA AÇÃO DE DESOCUPAÇÃO DA LOCAÇÃO EM SHOPPINGS CENTERS
Inobstante a já apresentada valorização da autonomia da vontade nos contratos de locação em shopping center e a crítica realizada por doutrinadores no sentido de que esta modalidade contratual deveria ser tratada em legislação específica[10], mantém-se ainda a influência dos preceitos legislativos instaurados na Lei nº 8.245/1991 quando os entraves são concernentes ao viés locatício.
Ainda que as cláusulas contratuais possam ser livremente pactuadas entre os envolvidos, resguardando seus exatos interesses, o artigo 54 da Lei do Inquilinato dispõe que seu procedimento deve observar os preceitos legais deste regulamento.
Em outras palavras, um eventual despejo vai se basear na aferição de um cumprimento ou descumprimento das cláusulas do contrato (que podem ter sido livremente pactuados, independentemente de previsão legal), mas que, independentemente disto, possui procedimento típico da Lei nº 8.245/1991, em nada se diferindo do que aconteceria em um despejo relacionado a outros imóveis urbanos.
4. DA CONCLUSÃO
Diante das complexas relações que envolvem a construção e a organização de um shopping center, passando inclusive pelo bom funcionamento do “tenant mix”, pode-se concluir que a liberdade contratual nas relações de locação de lojas é fundamental para o sucesso do empreendimento.
Ainda que, justamente por este motivo, discussões doutrinárias acerca da natureza jurídica deste contrato em muito nos chame atenção, especialmente na medida em que coexistem cláusulas contratuais típicas de locação e cláusulas específicas para reger esta relação negocial, não se pode hoje afastar a influência da Lei do Inquilinato.
Por mais que se concorde com a necessidade de edição de legislação específica, instrumentos processuais como o despejo ainda devem se submeter aos procedimentos legais previstos naquela legislação.
NOTAS
[1] Movimento nos shoppings centers sobe 1,5% em 2017, diz pesquisa. G1. 10 jan. 2018. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2018.
[2] BUZAID, Alfredo. Estudo sobre Shopping Center inserto na obra Shopping Centers. Questões Jurídicas. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 7
[3] Idem.
[4] PLETSCH, Laura Wolff. Responsabilidade civil de shopping center e fato de terceiro. Monografia (Especialização) - Curso de Curso de Especialização Direito Internacional, Ambiental e Consumidor, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018. P. 12.
[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Shopping Centers. In: ARRUDA, José et al. Shopping Centers: aspectos Jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p. 166.
[6] MARTINS, Ives Gandra da Silva. A natureza jurídica das locações comerciais dos “shoppings centers”. In: PINTO, Roberto Wilson Renault. OLIVEIRA, Fernando Albino de (Coord.). Shopping Center: questões jurídicas: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 43.
[7] GOMES, Orlando. Traços do perfil jurídico de um "Shopping Center". Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 72, n. 576, p. 9-26, out. 1983. p. 9.
[8] SOUZA, Sylvio Capanema de. Da locação de imóvel urbano: direito e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
[9] BASILIO, João Augusto. Shopping Centers. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
[10] VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada: doutrina e prática. 8º Ed. São Paulo: Editora Atlas.2003. p. 256.
Winderson Jaster - Especialista em Direito de Família e Sucessões, Direito Imobiliário e Direito Aplicado na Escola de Magistratura do Paraná.
Winderson Jaster - Especialista em Direito de Família e Sucessões, Direito Imobiliário e Direito Aplicado na Escola de Magistratura do Paraná.
José Luiz da Matta Cota - Graduado em Direito na Universidade Federal do Paraná.
Fonte: Artigos Jus Navigandi
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