Não são poucos os relatórios estatísticos elaborados por órgãos governamentais e agências multilaterais de todo o mundo que pretencionam a homogeneização das características dos núcleos urbanísticos constituídos nos mais diversos países, integrantes ou não da cultura ocidental. A retórica urbana contemporânea é abalizada pela dimensão dos dados e pelos grandes números que constroem a tessitura da cidade atual: os intensos ritmos de crescimento, a redução gradativa da taxa de natalidade e o consequente envelhecimento populacional, o esgotamento de rodovias para a mobilidade urbana e reinvenção de meios alternativos de locomoção, a crescente especulação imobiliária, os incentivos ambientais da sustentabilidade desenvolvimentista etc.
No entanto, nada aproxima melhor os núcleos citadinos do que a pobreza. É na pobreza e na miséria que as cidades se igualam, tornando incidentais todas as demais características que as possam caracterizar peculiares. O sofrimento impingido pela urbanização da pobreza, como subproduto da ordem caótica urbanística, é fenômeno universal que mais se distingue entre as cidades pelo seu viés quantitativo do que pelo qualitativo.
O estudo da pobreza urbana, em especial suas causas, características e efeitos, é, portanto, instrumentalizador essencial para o desenvolvimento e implementação de políticas urbanas que se pretendam exitosas, bem como para o sucesso dos processos de urbanificação.
Todavia, como precedente lógico para a caracterização da pobreza urbana resta necessário localizá-la, identificando em cada seara do território da cidade onde há maior sedimentação da miséria e onde seus efeitos são surtidos de forma mais intensificada. A identificação é, destarte, elemento inicial, prévio e condicionante da organização da intervenção pública para atuação estratégica das políticas urbanas.
Sob essa perspectiva, considerando-se o alarmante déficit habitacional que flagela as estatísticas nacionais e que, segundo a Fundação Getúlio Vargas conjuntamente com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias [1], teria alçado em 2017 a necessidade premente de construção de 7,7 milhões de moradia, toma enorme relevância o estudo das habitações de cunho social, assim entendidas aquelas que, subvencionadas pelo Poder Público, visam garantir o direito à moradia de populações de baixa renda historicamente açoitadas pela especulação imobiliária que tem tomado proporções gradativas nos último anos.
Exemplificativamente, no Estado de São Paulo, possui enorme relevância, neste aspecto, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) que, com o escopo de promover condições dignas de moradia para a população de baixo poder aquisitivo, possui atuação dirigida ao público-alvo situado na faixa de um a dez salários mínimos, com atendimento prioritário até cinco salários.
Justamente na expectativa de reduzir custos e baratear a produção dessas moradias populares, é comum que os imóveis edificados e financiados pela Companhia sejam construídos sob as formalidades jurídicas de um condomínio edilício, porquanto os gastos de infraestrutura podem, assim, ser aproveitados para o suporte de várias unidades habitacionais num mesmo prédio.
No entanto, justamente sob a pretensão de redução de gastos e fomento à universalização do acesso à moradia, a constituição de um condomínio edilício, nessas condições, pode demandar a cobrança de taxas condominiais para a manutenção das áreas e serviços em comum, circunstância que, paradoxalmente, pode obstaculizar o acesso à moradia de diversas famílias desprovidas de renda suficiente e adequada para referido custeio.
Não é raro famílias vulneráveis procurarem auxílio da Defensoria Pública ou de outra instituição de apoio jurídico ou de cunho assistencial, reclamando da total impossibilidade de suportar, além do custo mensal do financiamento imobiliário (ainda que subvencionado) o pagamento de contribuições condominiais. O maior temor é justamente a perda da unidade habitacional pelo não pagamento de referidas contribuições e o possível retorno à uma situação de total falta de acesso à moradia.
Diante dessa situação, e da pouca discussão sobre o tema, o presente estudo visa discutir alguns aspectos de extrema relevância sobre a possibilidade de instituição e cobrança dessa espécie de contribuição em unidades habitacionais de cunho social.
DA POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DE TAXA CONDOMINIAL EM HABITAÇÕES DE CUNHO SOCIAL
Inicialmente, mostra-se relevante ressaltar que o programa nacional de maior pretensão e mais utilizado para o fomento de combate ao déficit habitacional é o assim denominado “Minha Casa Minha Vida”, criado pela Lei 11.977/2009.
Referido programa “tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)” (art. 1º da Lei 11.977/2009).
Portanto, o primeiro ponto a ser considerado é o fato de não haver distinção legal quanto ao tipo de moradia a ser subsidiada com os recursos do programa, podendo envolver ou não unidades habitacionais constituintes de condomínio edilício.
Desta primeira diferenciação conceitual, faz-se a observação de que se a unidade habitacional não integra um condomínio edilício, entendido este como “um direito real que advém da combinação de outros dois direitos reais: a propriedade individual sobre as unidades autônomas (salas, lojas apartamentos) e a copropriedade sobre as partes comuns (terreno, telhado, corredores, fachada). Isto é, há uma verdadeira fusão entre propriedade particular e propriedade comum, sendo impossível separar juridicamente esse complexo incindível”[2] , é certo que se mostra logicamente impossível a cobrança de qualquer quantia do beneficiário a título de “contribuição condominial”, independentemente da destinação do importe exigido.
No entanto, como já exposto, é possível, precipuamente com a ideia de redução de custos de edificação, que referidos imóveis se constituam sob a roupagem formal de um condomínio edilício e, nessas circunstâncias, a questão depende de uma análise mais cuidadosa.
Isso porque pela própria natureza complexa do condomínio edilício, haverá necessariamente uma área comum a ele integrante, exemplificadamente enumerada no artigo 1.331, § 2º do Código Civil[3]. E tal área demanda algum custo para sua manutenção. Não há como imputar a responsabilidade pela manutenção adequada e legal de tais áreas a não ser aos próprios proprietários ou possuidores da unidade.
Constitui, portanto, elemento intrínseco do próprio conceito de condomínio edilício a fração de responsabilidade pelo custeio dos serviços comuns.
Daí se conclui, portanto, que se mostra juridicamente possível a cobrança de taxa condominial em condomínios edilícios em habitações de cunho social, adquiridas pelo Programa Minha Casa Minha Vida ou outro subsidiado pelo Poder Público.
No entanto, há de se observar alguns requisitos que legitimam a instituição da referida taxa condominial.
Em primeiro lugar, há de se garantir que os próprios beneficiados componham a Assembleia Condominial que definirá o valor a ser cobrado de cada unidade. Não pode haver qualquer interferência do Poder Público na fixação de referida contribuição, porquanto o papel do Estado se limita a conceder o subsídio e organizar a seleção dos interessados em participar do programa habitacional.
A regulação e a gestão do condomínio é de competência exclusiva dos próprios moradores, os quais gozam de liberdade para ajustar a maneira pela qual serão executados os serviços comuns, o que inclui o estabelecimento da taxa condominial.
Ressalta-se que, também de acordo com a vontade democrática e soberana aferida na assembleia, é possível a situação em que os condôminos desejem não instituir taxa condominial alguma, dividindo entre eles as diversas execuções dos serviços comuns e da manutenção das áreas a todos destinadas. Nesse sentido, estabelecerão eles um complexo de obrigações individualizadas de cada condômino, ou grupos de condôminos, que deverá ser observada, podendo o próprio condomínio, ente dotado de capacidade processual, cobrar a satisfação das obrigações, caso inadimplidas.
Um segundo requisito, e da mais precípua relevância, é o que se refere à razoabilidade da fixação da contribuição. Isso porque a unidade habitacional de cunho social, assim definida como aquela dotada de alguma espécie de subsídio público e destinada à população de baixa renda, deve guardar a finalidade precípua de garantir o direito constitucional à moradia a todos aqueles que foram contemplados. Evidentemente, eventual cobrança excessiva pode inviabilizar o exercício desse tão caro direito e pôr em xeque o próprio objetivo do programa habitacional.
O valor da contribuição, portanto, além de ser estabelecido conforme a vontade dos condôminos em Assembleia Geral, deve ser aquele estritamente necessário para a manutenção dos serviços essenciais comuns, não atendendo a razoabilidade a fixação de serviços supérfluos assim definidos em cada situação concreta. Poderíamos exemplificar a situação se uma assembleia de um condomínio de cunho social decidisse por estabelecer uma contribuição para cobrir despesas com decoração da fachada para as festas natalinas. Caso houvesse a oposição de algum morador, ele poderia anular referida cobrança, com fundamento na falta de razoabilidade.
A vontade da Assembleia Geral fica, destarte, sempre abalizada pelos próprios fins da instituição de um condomínio de cunho social, a que não pode, sob pena de nulidade de suas deliberações, desvirtuar.
Outro requisito a ser mencionado é a necessidade de expressa informação ao beneficiário do funcionamento do condomínio edilício, ainda antes de aderir ele ao programa habitacional. Integra o próprio conceito de boa-fé que o beneficiado compreenda todas as regras e condições a que estará submetido após a conclusão do contrato.
A inobservância de qualquer um desses requisitos, reitera-se, pode tornar ilegítima a instituição da taxa condominial em habitação de cunho social. Podendo o próprio interessado ou outra instituição competente, como a Defensoria Pública, cobrar sua anulação ou readequação perante o Poder Judiciário.
Portanto, conclui-se que se mostra juridicamente possível a cobrança de taxa condominial em condomínios edilícios de habitações de cunho social, adquiridas pelo Programa Minha Casa Minha Vida ou outro subsidiado pelo Poder Público, desde que referida taxa seja estabelecida exclusivamente pelos condôminos, seja razoável para atender estritamente aos serviços comuns necessários e tenha sido dada completa informação prévia ao beneficiado, antes da celebração do contrato.
DA POSSIBILIDADE DA VINCULAÇÃO DO NÃO PAGAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO À PERDA DA UNIDADE HABITACIONAL
Questão ainda mais complexa do que a possibilidade abstrata de ser estabelecida contribuição condominial em habitações de cunho social refere-se à consequência do inadimplemento, por parte do beneficiário.
E quanto a esse ponto, há de se enumerar duas situações substancialmente distintas. A primeira é a análise do inadimplemento sob o paradigma do próprio condomínio já constituído. A segunda refere-se à perspectiva do poder público que subsidiou a conclusão do contrato de compra e venda e do financiamento habitacional. A análise de cada uma dessas situações implicará conclusões diferentes.
Quanto à primeira situação, a legislação em vigor, bem como a maioria do entendimento doutrinário e jurisprudencial, apresenta-se no sentido de que o próprio condomínio pode perseguir o crédito consubstanciado na contribuição condominial efetuando, para tanto, a constrição da própria unidade habitacional.
Isso porque o único titular do crédito relativo às taxas condominiais é o próprio condomínio edilício, entendido como unidade abstrata que, embora sem personalidade jurídica, possui capacidade processual para demandar em juízo.
As taxas condominiais, portanto, são obrigações legitimamente avençadas em sede de assembleia condominial e que subsistem em função da própria coisa e consideradas, assim, obrigações propter rem.
Referida qualificação deflagra a subsunção de eventual satisfação do débito condominial inadimplido à hipótese de exceção à oponibilidade do bem de família, nos termos do art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/90.
Em razão da referida previsão legislativa, não se mostra possível afastar eventual possibilidade de perda da propriedade pelo beneficiário de programa habitacional.
Esse o entendimento hoje prevalecente em doutrina e jurisprudência:
“o inadimplemento dos encargos condominiais gera a própria perda do direito de propriedade, pela excepcional ressalva legal à penhorabilidade do imóvel para atender ao pagamento dos referidos débitos (art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/90).
Nossos tribunais vêm consagrando tese extensiva no sentido de incluir no aludido dispositivo as dívidas decorrentes do inadimplemento condominial, haja vista o seu caráter propter rem, semelhante às demais situações alvitradas pelo legislador. O condomínio não se equipara às dívidas civis contraídas pelos familiares; cuida-se de despesas assumidas em função da própria coisa.
Realmente, haveria verdadeira quebra no princípio geral da equidade caso o condomínio inadimplente se prevalecesse das benesses legais, alegando a impenhorabilidade do imóvel em detrimento dos demais proprietários que se sacrificaram para efetivar o pagamento. Flagrante seria o enriquecimento ilícito pela oneração de alguns moradores sobre despesas que, em tese, deveriam ser enfrentadas por todos. O interesse coletivo da manutenção do condomínio se sobrepõe ao interesse individual do condômino inadimplente. Daí a razão pela qual apontamos a evidente função social do contrato que acomoda a cláusula penal em patamares dignos[4]”.
“Incluem-se, também, nesse item, as obrigações propter rem, que são geradas pela própria coisa. Tal acontece, por exemplo, como a construção de um muro divisório e de benfeitorias no bem de família. Uma dessas benfeitorias, desses gastos oriundos da coisa, é o pagamento de despesas condominiais.
Nem seria crível que tivessem os condôminos, cumpridores de sua obrigação de pagamento de despesas condominiais, que pagar pelo inadimplente, como se suas residências não tivessem a proteção de bens de família.
Por isso, bem acentua Alexandre Mars Carneiro que essas obrigações, sendo de natureza propter rem, impedem o absurdo de os condôminos inadimplentes verem-se obrigados a suportar essa desigualdade de conduta, pagando débitos de condôminos relapsos. Haveria, nesse caso, ‘um enriquecimento sem justa causa e em prejuízo dos demais condôminos[5]{C}’”
Ainda nesse mesmo sentido, cabe consignar que o Superior Tribunal de Justiça tem adotado a mesma orientação, já tendo se posicionado pela possibilidade de penhora de imóvel financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação no que tange à cobrança de taxa condominial:
“COBRANÇA DE QUOTAS CONDOMINIAIS. PENHORA INCIDENTE SOBRE DIREITOS DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA, RELATIVO A IMÓVEL FINANCIADO PELO SFH. EMBARGOS DE TERCEIRO QUE VISAM DESCONSTITUIR O ATO CONSTRITIVO, SOB A ALEGAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL. IMPENHORABILIDADE AFASTADA. PREVALÊNCIA DO DIREITO DO CONDOMÍNIO. OBRIGAÇÃO "PROPTER REM". SE A SUPOSTA AFRONTA A DISPOSITIVO LEGAL OCORRER NO JULGAMENTO DA APELAÇÃO, NECESSÁRIA A INTERPOSIÇÃO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, A FIM DE QUE A MATÉRIA SEJA PREQUESTIONADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. DISSÍDIO NÃO DEMONSTRADO.
1. Em sede de recurso especial não se examina argüição de ofensa a texto da Lei Maior.
2. Se a questão federal surgir no julgamento da apelação, sem que sobre ela tenha o Tribunal local se manifestado, cumpre ao recorrente ventilá-la em embargos de declaração, sob pena de a omissão inviabilizar o conhecimento do recurso por falta de prequestionamento.
3. Precedentes das duas Turmas que integram a Segunda Seção deste Tribunal, admitem a penhora de imóvel financiado pelo Sistema Financeiro de Habitação para pagamento de taxas condominiais, não obstando o fato de ser considerado bem de família, a teor do art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/90.
4. Hipótese em que o ato constritivo não recaiu sobre o imóvel em si, mas sobre os direitos que exerce o compromissário-comprador.
5 Ausência de interesse da entidade integrante do SFH para argüir a impenhorabilidade prevista na Lei n.º 8.009/90.
6. Sendo a ação principal uma demanda de cobrança de despesas condominiais (obrigação "propter rem"), não se pode afirmar que o interesse da promitente-vendedora seja predominante em relação ao do Condomínio. Precedente da 3ª Turma.
7. No tocante ao dissídio interpretativo, a recorrente não cuidou de cumprir o disposto no art. 541, parágrafo único, do CPC e 255, § 2º, do RISTJ, mencionando as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem as hipóteses confrontadas. Recurso não conhecido” (g.n.) (STJ - REsp 187493 / SP – Quarta Turma – Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJE 28/10/2008).
“EMBARGOS DE TERCEIRO. PENHORA INCIDENTE SOBRE DIREITOS DE COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA. PRETENSÃO DE DESCONSTITUIR O ATO CONSTRITIVO SOB A ALEGAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL (UNIDADE HABITACIONAL DESTINADA À MORADIA DE PESSOAS DE BAIXA RENDA). DESPESAS CONDOMINIAIS. IMPENHORABILIDADE AFASTADA.
O ordenamento jurídico não impede a penhora de imóvel financiado e hipotecado pelo Sistema Financeiro da Habitação para garantir o pagamento de despesas condominiais. Precedente do STJ. Hipótese em que, ademais, o ato constritivo não recaiu sobre o imóvel em si, mas sobre os direitos que exerce o compromissário-comprador. Ausência de interesse da entidade integrante do SFH para argüir a impenhorabilidade prevista na Lei n.º 8.009/90. Recurso especial não conhecido” (g.n.) (STJ - REsp 195335 / SP – Quarta Turma – Relator Ministro Barros Monteiro – DJE 28/06/1999).
O principal fundamento adotado é o de que o interesse coletivo, no caso representado pela sobrevivência do condomínio, prevalece em face do interesse individual do condômino.
Tomando-se em consideração que essa é a orientação hoje prevalecente tanto na doutrina como na jurisprudência, é de extrema relevância que sejam feitas três observações que condicionam a penhorabilidade da unidade habitacional para a satisfação de despesas condominiais em núcleos habitacionais de baixa renda.
Em primeiro lugar, não se pode olvidar que, conforme defendido anteriormente, não é qualquer razão ou fundamento que justifica a subsistência da contribuição condominial para unidades de cunho social. Para legitimar eventual ação de cobrança pelo inadimplemento, a taxa deve obedecer ao requisito da razoabilidade, devendo necessariamente guardar a finalidade precípua de garantir o direito à moradia a todos aqueles que foram contemplados, o que implica a impossibilidade de cobrança de eventuais serviços não considerados essenciais para a manutenção das áreas comuns.
Além disso, há de se considerar que a penhorabilidade do próprio imóvel para a satisfação da dívida deve sempre ser tida como medida última, excepcional e extrema, em ação de execução ou em incidente de cumprimento de sentença.
A uma porque deve prevalecer, assim como em todas as execuções, o princípio da menor onerosidade ao devedor, conforme exposto no artigo 805 do Código de Processo Civil:
Dá-se, no entanto, que em se tratando da possibilidade aqui versada, de perda da unidade pelo beneficiário de programa habitacional, o princípio da menor onerosidade deve ser lido de forma conjunta e sistemática com as demais normas principiológicas que regem o estabelecimento de tais programas, em especial o direito à moradia como direito humano fundamental (art. 6º, CF/88), a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais como objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, III, CF/88), bem como a dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CF/88) e a solidariedade social (art. 3º, I, CF/88). Dessa leitura advém a conclusão de que a penhorabilidade da unidade habitacional apenas se torna possível quando demonstrada a exaustão de todas as demais alternativas para a satisfação do crédito.
Em terceiro lugar, observa-se que a possibilidade aqui versada se refere apenas e tão somente à hipótese em que um condomínio edilício venha a cobrar do condômino inadimplente uma taxa condominial legitimamente instituída em assembleia.
Cabe ressalvar que situação muito comum em habitações de cunho social e que não legitima a cobrança de qualquer despesa em favor do condomínio são as associações de moradores, entendidas como meros agrupamentos de pessoas para o alcance de alguma finalidade. A estrutura da associação não se confunde com o condomínio edilício e apenas este possui legitimidade de instituir a cobrança de uma contribuição e se utilizar de eventual benefício da penhorabilidade do bem de família.
Assim já entendeu o Superior Tribunal de Justiça:
“DIREITO CIVIL. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONTRIBUIÇÃO DE MANUTENÇÃO. INADIMPLÊNCIA. CONDENAÇÃO A PAGAMENTO. EXECUÇÃO. PENHORA DO IMÓVEL. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE COM FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO.
1. Na esteira da jurisprudência desta Corte, as contribuições criadas por Associações de Moradores não podem ser equiparadas, para fins e efeitos de direito, a despesas condominiais, não sendo devido, portanto, por morador que não participa da Associação, o recolhimento dessa verba. Contudo, se tal obrigação foi reconhecida por sentença transitada em julgado, a modificação do comando sentencial não pode ser promovida em sede de execução.
2. O fato do trânsito em julgado da sentença não modifica a natureza da obrigação de recolher a contribuição. Trata-se de dívida fundada em direito pessoal, derivada da vedação ao enriquecimento ilícito. Sendo pessoal o direito, e não tendo a dívida natureza 'propter rem', é irregular a sua equiparação a despesas condominiais, mesmo para os fins da Lei 8.009/90.
3. É possível, portanto, ao devedor alegar a impenhorabilidade de seu imóvel na cobrança dessas dívidas.
4. Recurso especial não provido” (STJ - REsp 1324107 / SP – Terceira Turma – Relatora Ministra Nancy Andrighi – DJE 21/11/2012).
Portanto, tratando-se de mera contribuição criada por associação de morador não há de incidir a excepcionalidade da impenhorabilidade do bem de família, de forma que eventual inadimplemento de beneficiário não induz à perda da unidade habitacional.
Portanto, do quanto sustentado, mostra-se possível concluir que, de acordo com a atual legislação e orientação jurisprudencial, é possível a perda da unidade pelo beneficiário de programa habitacional inadimplente quanto às contribuições condominiais, desde que se trate de condomínio edilício (e não de mera associação de moradores), a taxa seja legítima e razoável e já tenham sido esgotados todas as demais possibilidades de satisfação do débito.
Isso posto, cabe estabelecer, por fim, que caso o beneficiário da unidade não tenha concluído a quitação das parcelas do financiamento do imóvel e venha a perdê-lo em execução proposta pelo condomínio, a unidade deve ser devolvida ao próprio ente responsável pela condução do programa habitacional para atender aos próximos beneficiados, sem prejuízo da devolução atualizada dos valores efetivamente pagos pelo beneficiário, descontado o valor cobrado na execução.
Situação diferente refere-se ao analisar o inadimplemento da contribuição condominial sob a perspectiva do poder público que subsidiou a conclusão do contrato de compra e venda.
Consoante se expôs, o único titular das contribuições condominiais é o próprio condomínio. São os próprios moradores que, em assembleia, poderão decidir pela instituição da cobrança de contribuição condominial e até pela eventual forma de cobrança.
Portanto, o ente público não pode ter qualquer interferência nessa questão. O inadimplemento de cobrança condominial é assunto que apenas pode ser diligenciado pelo próprio condomínio edilício, o que, em última análise, é decidido pelos próprios moradores, em assembleia.
E sobre as decisões tomadas em assembleia, o ente público não possui qualquer gerência.
Por essa razão, referido inadimplemento não pode surtir qualquer efeito quanto à execução do contrato de compra e venda, sob pena de ofender a liberdade condominial e a autonomia dos próprios condôminos. Tal conclusão advém do conceito de condomínio edilício e de sua estruturação.
Por esta razão, mostra-se absolutamente impertinente o próprio agente subsidiador expor de alguma forma ou condicionar a manutenção do contrato de financiamento ao adimplemento de despesa condominial.
Tal prática ofende o dever de informação, essencial ao consumidor em situação de vulnerabilidade, pois emite informação que pode ser confusa, levando o beneficiário a erro. Se a informação for exposta pelo agente, pode-se entender que tal inadimplemento afetaria o próprio contrato de financiamento, o que é inteiramente falso.
O agente público sequer possui controle daquilo que será discutido e deliberado em assembleia condominial, de forma que eventual inadimplemento não induz necessariamente ao manejo de execução em face do inadimplente ou a constrição de sua unidade habitacional.
Portanto, o ideal seria o agente público não se manifestar sobre essa questão, tampouco expô-la como uma condição de manutenção plena da unidade habitacional. Evidentemente, o beneficiário precisa ser bem orientado de que a assembleia condominial pode ajuizar execução em face dele, mas tudo dependerá do que foi decidido pelos próprios moradores.
É neste sentido que deve ser interpretado o artigo 7º B, inciso III da Lei nº 11.977/2009, recentemente incluído pela Lei nº 13.465/2017, segundo o qual:
“Art. 7o-B. Acarretam o vencimento antecipado da dívida decorrente de contrato de compra e venda com cláusula de alienação fiduciária em garantia firmado, no âmbito do PMCMV, com o FAR:
(...)
III - o atraso superior a noventa dias no pagamento das obrigações objeto de contrato firmado, no âmbito do PMCMV, com o FAR, incluindo os encargos contratuais e os encargos legais, inclusive os tributos e as contribuições condominiais que recaírem sobre o imóvel”.
A única leitura possível do referido dispositivo legal é no sentido de que, caso a assembleia condominial venha a decidir pelo manejo da execução em face do inadimplente e, depois de esgotados todos os meios, ocorrer a penhorabilidade da unidade e consequente necessidade de alienação do imóvel, como consequência de tal situação, deflagra-se o vencimento antecipado do financiamento.
Ausente manifestação de vontade do condomínio, não se pode cogitar de vencimento automático do contrato de financiamento.
E é apenas nesse momento em que o ente público responsável deve ser convocado. Não para participar de qualquer fase da cobrança da contribuição condominial, mas apenas e tão somente para restituir os valores efetivamente pagos pelo beneficiário e posteriormente realocar a unidade habitacional para outras pessoas integrantes das listas de participação em programas habitacionais.
Verifica-se, portanto, que a participação do ente público é absolutamente complementar e secundária, não tendo ele qualquer poder de gestão sobre a própria cobrança da contribuição condominial.
Exatamente por esta razão, conforme já exposto anteriormente, o órgão subsidiador também não pode, ele mesmo, participar da constituição do condomínio edilício ou das decisões tomadas em assembleia condominial, por absoluta impertinência quanto à sua função e atuação.
E neste sentido, como decorrência lógica, ele também não pode condicionar o adimplemento da contribuição à própria manutenção da propriedade, quando da conclusão do contrato de financiamento.
O ente público tem, de forma diversa, o dever de informar o beneficiário do conceito e do funcionamento de um condomínio edilício. Ou como fazem alguns órgãos, disponibilizar aos próprios beneficiários um grupo de apoio técnico para viabilizar a constituição do condomínio, mas nunca ele mesmo se antever às prerrogativas exclusivas e privativas da assembleia condominial.
Portanto, conclui-se que a atuação do ente público subsidiador não possui qualquer pertinência quanto ao inadimplemento da contribuição condominial em unidades de cunho social, apenas sendo ele chamado a intervir de forma secundária para efetuar, ao final de eventual perda da unidade, a restituição dos valores e a realocação do imóvel a outros beneficiários do programa.
DA CONCLUSÃO
Da análise do tema proposto, foram elencadas as seguintes conclusões:
a) Mostra-se juridicamente possível a cobrança de contribuição condominial em condomínios edilícios de habitações de cunho social, adquiridas pelo Programa Minha Casa Minha Vida ou outro subsidiado pelo Poder Público, desde que referida contribuição seja estabelecida exclusivamente pelos condôminos, seja razoável para atender estritamente aos serviços comuns necessários e tenha sido dada completa informação prévia ao beneficiado, antes da celebração do contrato;
b) É juridicamente possível a perda da unidade pelo beneficiário de programa habitacional inadimplente quanto às contribuições condominiais, desde que se trate de condomínio edilício (e não de mera associação de moradores), a contribuição seja legítima e razoável e já tenham sido esgotados todas as demais possibilidades de satisfação do débito, conferindo excepcionalidade à penhorabilidade do imóvel;
c) A atuação do ente público subsidiador não possui qualquer pertinência quanto ao inadimplemento da contribuição condominial em unidades de cunho social, apenas sendo ele chamado a intervir de forma complementar e secundária para efetuar, ao final de eventual perda da unidade, a restituição dos valores ao contemplado e a realocação do imóvel a outros beneficiários do programa.
NOTAS
[1] Estudo da FGV e da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias – Disponível em https://www.abrainc.org.br/wp-content/uploads/2018/10/ANEHAB-Estudo-completo.pdf
[2] (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Curso de Direito Civil, Volume 5, 12ª edição, 2016, Juspodium, p. 675, 676)
[3] Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos (...) § 2o O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos, não podendo ser alienados separadamente, ou divididos.
[4] Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Curso de Direito Civil, Volume 5, 12ª edição, 2016, Juspodium, p. 716
[5] Álvaro Vilaça Azevedo, Bem de Família, 6ª edição, Editora Atlas, p. 209.
Fonte: Artigos Jus Navigandi
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