quarta-feira, 18 de julho de 2018

CONDOMÍNIO NÃO PODE PROIBIR LOCAÇÃO DE IMÓVEL POR MEIO DE PLATAFORMAS ELETRÔNICAS


Jamais faltaram motivos para haver litígios em condomínios, mas o surgimento de plataformas virtuais de compartilhamento de imóveis, como o Airbnb, acrescentou um pouco mais de lenha a essa fogueira. As questões jurídicas, políticas e sociais que surgem nesse cenário são inúmeras, mas neste artigo a análise ficará restrita a uma específica: se é lícito ou não, tendo em vista a atual legislação brasileira, que condomínios residenciais proíbam o compartilhamento de imóveis por meio dessa plataforma, ou de semelhantes.

Até aqui, usou-se a palavra “compartilhamento” porque a discussão sobre a natureza da relação jurídica estabelecida entre o indivíduo que disponibiliza seu imóvel na plataforma e aquele que concretiza a contratação é crucial: seria uma locação ou uma hospedagem? Essa é a principal discussão que permeia os diversos processos que se espalham pelo Brasil, pois há consequências jurídicas diferentes para uma ou para outra situação.

Aqueles que sustentam a ilegalidade do compartilhamento de imóveis por essas plataformas defendem que se trata de hospedagem, não de locação. Sendo assim, a atividade do condômino teria viés comercial, sendo submetida à Lei 11.771/2008, que regula a Política Nacional de Turismo. Segundo o artigo 21 da lei, considera-se prestador de serviço turístico a sociedade empresária, sociedade simples, empresário individual ou serviço social autônomo que preste serviço turístico remunerado e que exerça atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo. Dentre as atividades arroladas nesse artigo, a que mais interessa aqui é a dos “meios de hospedagem”.

A definição de meios de hospedagem encontra-se no artigo 23 da mesma lei. Trata-se de empreendimentos ou estabelecimentos “destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária”. Segundo os integrantes da corrente que sustenta a ilegalidade do compartilhamento de imóveis em prédios residenciais por meio do Airbnb, essa seria uma atividade econômica que se enquadra na definição de meios de hospedagem, e não uma simples locação.

Essa atividade econômica denominada “meios de hospedagem” abrange não apenas hotéis tradicionais, mas também empreendimentos que utilizam condomínios residenciais para “prestação de serviços de hospedagem em unidades mobiliadas e equipadas, bem como outros serviços oferecidos a hóspedes” (artigo 23, parágrafo 1º da Lei 11.771/08). De acordo com o artigo 24, todos os meios de hospedagem devem possuir licença de funcionamento (inciso I); no caso de “condomínio hoteleiro, flat, flat-hotel, hotel-residence, loft, apart-hotel, apart-service condominial, condo hotel e similares”, exige-se ainda licença edilícia de construção ou certificado de conclusão de construção, além de vários outros documentos, como uma convenção de condomínio que preveja a prestação de serviços hoteleiros aos usuários, num sistema associativo chamado de “pool de locação” (inciso II). Os defensores dessa primeira corrente consideram que a disponibilização de unidades de edifícios residenciais por meio de plataformas como Airbnb somente pode ocorrer caso haja licença de funcionamento e previsão de prestação de serviços hoteleiros na convenção do condomínio.

Esse posicionamento não se sustenta. Obviamente, a locação de apartamentos em um edifício residencial não transforma este em um “apart-hotel”, ou em um “hotel-residência”, ou em qualquer uma das outras espécies previstas pelo inciso II do artigo 24, mesmo que todos os apartamentos sejam alugados por meio do Airbnb ou similares. Esses empreendimentos apenas existem quando o condomínio como um todo ofereça serviços como recepção, limpeza e arrumação. O mero compartilhamento de algumas (ou até mesmo de todas) das unidades residenciais não é capaz, por si só, de alterar a destinação do edifício como um todo, caso esses serviços hoteleiros não sejam prestados de forma organizada pelo condomínio.

Assim, está correta a corrente doutrinária que sustenta que a atividade do condômino que disponibiliza seu imóvel por meio de plataformas como Airbnb está amparada pela Lei de Locações (Lei 8.245/91). Mais especificamente, a figura da “locação para temporada” prevista no artigo 48 dessa lei, segundo o qual “considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel”.

Esta segunda corrente é a que mais se coaduna com a legislação brasileira. A faculdade de alugar o próprio imóvel é elemento indissociável do direito de propriedade. De acordo com o artigo 1.228 do Código Civil, “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha”. O artigo 1.335, inciso I, por sua vez, prevê como direito dos condôminos “usar, fruir e livremente dispor das suas unidades”.

Quanto a preocupações com segurança ou em relação a danos que possam ser causados ao condomínio, deve-se ressaltar que o Código Civil prevê, em seu artigo 1.337, a possibilidade de que o condomínio aplique multas aos condôminos sempre que estes descumprirem deveres previstos na convenção ou regulamento interno. Trata-se de uma ilusão imaginar que os riscos à segurança ou ao patrimônio podem ser evitados com meras proibições às novas tecnologias. A vida em condomínio envolve riscos, até mesmo envolvendo os próprios condôminos, pois não se conhece intimamente cada pessoa que vive no mesmo edifício. Qualquer pessoa, seja ela proprietária ou locatária, pode causar danos a terceiros; a consequência é pura e simplesmente a responsabilização do causador do dano ou do proprietário da unidade, e não a proibição total de plataformas que simplesmente facilitam o contato entre locadores e locatários.

Na verdade, plataformas que intermedeiam contratos de locação pela internet podem ser até mais seguras, pois os provedores são obrigados a guardar os registros de acesso dos usuários pelo período de seis meses, como prevê o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14). Se o pagamento for feito por meio de cartão de crédito, dificulta-se ainda mais a ocultação de pessoas que porventura venham a causar danos a terceiros.

Portanto, os condomínios não podem proibir o compartilhamento de imóveis por meio de plataformas eletrônicas como Airbnb, pois a faculdade de alugar o imóvel é elemento indissociável do direito de propriedade. Naturalmente, essa faculdade pode ser regulada pelas convenções ou regulamentos internos, assim como ocorre com qualquer locação, mas jamais impedida em absoluto por normas condominiais.

Marcelo Frullani Lopes - Advogado graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela mesma instituição. Especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP.

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