1. Breves noções
Primeiramente cumpre esclarecer que usucapião é, em essência, o modo aquisitivo originário de propriedade em razão do transcurso de certo lapso temporal, certo decurso de tempo.
Não é necessário que o usucapiente esteja na posse no momento da propositura da ação, conforme inteligência da súmula 263 do STF, mas, neste caso, o atual possuidor deve ser citado, para que o atual possuidor possa precaver seus eventuais interesses jurídicos.
Existe possibilidade de usucapião de outros direitos reais suscetíveis de posse, inclusive pertencentes ao poder público. Exemplo: usucapião de enfiteuse. Neste caso, o que se vai usucapir não é a propriedade do Estado, mas sim, o direito real na coisa alheia. Não viola a imprescritibilidade dos bens públicos, porque a propriedade fica para o poder público, sendo que neste sentido há precedentes do STJ[1].
Exemplo comum é a usucapião de servidão de passagem. É normal ter que possuir com animus domini, mas neste caso, observe-se que há “animus de servidão”, e não propriamente a posse como se dono fosse.
A usucapião gera a aquisição de direitos para um e extinção para outro, em razão do decurso do tempo, por isso se chama de “prescrição aquisitiva”, sob o ponto de vista de quem adquire por este meio a propriedade, por isso, aplicam-se a ele todas as regras relativas à prescrição.
Nos termos do art. 198, I, c/c o art. 3º, I do CC, por exemplo, a prescrição não corre contra menores de 16 anos, por isso, não corre o prazo para a aquisição da propriedade por usucapião contra eles.
Assim, em um exemplo prático, na usucapião extraordinária que, via de regra requer a fluência do prazo de 15 anos, falecendo um proprietário, e deixando como único herdeiro uma criança com 10 anos de idade. Suponha-se que um terceiro está na posse do referido imóvel por 10 anos. Quando estará perfectibilizada a usucapião? Até 16 anos de idade não corre, depois conta-se mais 5 anos. Neste caso, o usucapiente terá que esperar 21 anos, no total, para adquirir a propriedade desta por esta via.
Pode-se dividir os requisitos formais em dois grupos, os obrigatórios, presentes em todas as formas de usucapião, e os facultativos, presentes apenas na usucapião ordinária[2].
2. Requisitos obrigatórios
A fim de sistematizar o estudo das modalidades de usucapião, busca-se desde já apresentar quais são os requisitos obrigatórios, os quais, como já mencionado, estão presentes em todas as modalidades de usucapião. São eles:
a) decurso do tempo: é o prazo usucaptivo.
Admite-se a soma de prazos de possuidores anteriores para o cômputo.
Esta soma de posses pode decorrer de um ato inter vivos (chamada de acessio possessionis) ou de um ato ou fato mortis causa (chamada de sucessio possessionis).
b) idoneidade da coisa: a coisa deve ser apta à usucapião. Existem alguns bens que não podem ser usucapidos. Exemplo: propriedade de bem público; área comum de condomínio edilício etc.
Oportuno esclarecer, por ser comum haver dúvidas, que é possível usucapião de bem de família e de bens gravados com cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade, incomunicabilidade).
c) Posse qualificada: é a posse mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini.
Tecnicamente a posse ad usucapionem (posse apta a gerar usucapião), deve ter, além dos requisitos acima, as seguintes características para o usucapiente:
possuir como seu;
sem interrupção;
sem oposição.
3. Requisitos facultativos
São dois os requisitos facultativos: justo título e boa-fé. Servem apenas para o usucapião ordinário, com o efeito prático de gerar apenas a diminuição da contagem do prazo de usucapião, em comparação à modalidade extraordinária.
a) Justo título: justo título é um instrumento público ou particular que teria idoneidade para a transferência da propriedade, se não fosse um vício que pesa sobre ele.
O justo título presume a boa-fé, tendo o efeito prático de transferir o encargo probatório sobre sua ausência para a parte adversária.
Exemplos: escritura pública inválida, contrato particular de compra e venda.
b) Boa-fé: é o estado de ignorância do possuidor quanto à existência de algum vício ou obstáculo para a aquisição da coisa. Para fins de usucapião, é a falsa suposição de que é o proprietário.
Ressalvado o caso da usucapião ordinária, é possível usucapir mesmo com má-fé, sendo possível concluir que até mesmo a res furtiva pode ser adquirida por usucapião.
Apesar do presente estudo tratar da usucapião de imóveis, é oportuno mencionar que a usucapião de bens móveis tem o prazo de 3 anos para o possuidor de boa-fé e 5 anos para o de má-fé. Além destas observações, a boa-fé não tem maiores relevâncias para este instituto.
4. Espécies de usucapião
a) Usucapião extraordinário (art. 1238 do CC): exige (a) posse pelo prazo de 15 anos; (b) requisitos obrigatórios.
O juiz pode reduzir para 10 anos o prazo se o usucapiente estiver morando no imóvel ou tenha tornado a terra produtiva (função social da posse).
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
b) Usucapião ordinário (art. 1242 do CC): são requisitos: (a) posse pelo prazo de 10 anos; (b) os requisitos obrigatórios; (c) os requisitos facultativos.
Este prazo pode ser reduzido para 5 anos se o usucapiente estiver cumprindo a função social da posse (estiver morando ou tornado a terra produtiva). Além disso, exige-se que o justo título tenha sido constituído por instrumento público.
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
É neste caso do parágrafo único que reside o chamado usucapião tabular (art. 214, § 5º da Lei dos Registros Públicos - Lei nº. 6015/73), que é a possibilidade de alegação de usucapião dentro da ação anulatória do registro, como matéria de defesa.
c) Usucapião especial rural, ou pro labore (art. 191 da CF e 1.239 do CC): os requisitos são: (a) posse pelo prazo de 5 anos; (b) os requisitos obrigatórios; (c) o imóvel rural não superior a 50 hectares; (d) prova da inexistência de outra propriedade rural ou urbana; (e) deve haver finalidade de moradia e/ou produtividade da terra.
A exigência da prova de que não é proprietário de outro imóvel é exemplo de prova diabólica, pois seria necessário buscar certidões negativas em todos os cartórios de registros de imóveis do Brasil. Diante disso, o STJ entendeu que para provar a inexistência de outra propriedade basta juntar as certidões negativas dos registros de imóveis do lugar do usucapião e do domicílio do usucapiente.
O dispositivo do CC repete o que diz a CF, a qual estabelece:
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Não há nenhuma proibição no sentido de que ele possa ser reconhecido mais uma vez à mesma pessoa.
d) Usucapião especial urbano, ou pro moradia, ou pro misero (art. 183 da CF e art. 1240 do CC): os requisitos são: (a) prazo de 5 anos; (b) requisitos obrigatórios; (c) imóvel urbano não superior a 250m²; (d) prova da inexistência de outra propriedade rural ou urbana; (e) finalidade de moradia.
O dispositivo do CC repete o que diz a CF, a qual estabelece:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Diferentemente do especial rural, só é admissível uma única aquisição a este título (especial urbano).
e) Usucapião especial urbano coletivo (arts. 10 a 12 do Estatuto da Cidade[3]): os requisitos são os seguintes: (a) Prazo de 5 anos; (b) requisitos obrigatórios; (c) imóvel urbano superior a 250m²; (c) posse coletiva de população de baixa renda; (d) finalidade de moradia.
Sobre a legitimidade para a propositura da ação, a Lei 10.257/2001 dispõe o seguinte:
Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:
I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;
II – os possuidores, em estado de composse;
III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados.
§ 1º Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público.
§ 2º O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis.
f) Usucapião especial urbano conjugal, ou usucapião conjugal, ou usucapião familiar, ou usucapião por abandono de lar, ou usucapião relâmpago: a Lei nº 11.977/2009 que trata do Programa Minha Casa, Minha Vida na esfera do Governo Federal sofreu importante alteração ditada pela Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011 que, acabou também por alterar o CC, no que se refere à usucapião urbana.
O art. 9º da Lei 12.424/2011 acrescentou o art. 1.240-A ao Código Civil, reconhecendo-se essa nova modalidade de usucapião, trazendo os seguintes requisitos: (a) prazo de 2 anos; (b) requisitos obrigatórios; (c) imóvel urbano não superior a 250m²; (d) prova da inexistência de outra propriedade rural ou urbana; (e) finalidade de moradia; (f) abandono de lar; (g) imóvel de propriedade comum do casal.
Eis a previsão legal:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)
§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
O usucapiente adquirirá a meação do outro sobre o imóvel residencial único. Trata-se do primeiro caso no Brasil de presunção legal de animus domini, pois a pessoa já é proprietária.
A V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal trouxe um enunciado muito importante sobre o assunto, que convêm transcrevê-lo:
Enunciado 499 do CJF: A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito “abandono do lar” deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião.
Não é fácil explicar o motivo de o art. 1.240-A do CC ter se discriminado o cônjuge residente em imóvel rural, assunto este que pode ser objeto específico de outro estudo.
A competência para a ação é da vara de família.
f) Usucapião indígena (Lei 6001/73. Art. 33): é importante transcrever o artigo:
Art. 33. O índio, integrado ou não[4], que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal.
Os requisitos são (a) prazo de 10 anos; (b) requisitos obrigatórios; (c) área inferior a 50ha; (d) posse exercida por índio.
Esta modalidade de usucapião se tornou muito rara, pois a hipótese de sua ocorrência ficou muito restrita em razão da existência da modalidade de usucapião especial rural, que é bastante benéfica. Porém, ainda subsiste no ordenamento a usucapião indígena, por trazer uma facilidade para o índio, que é a desnecessidade de comprovar a finalidade produtiva e a finalidade de moradia, como no usucapião especial constitucional rural pro labore.
5. Considerações finais
Vista brevemente a sistemática da usucapião de bens imóveis, e feita uma sintética explanação sobre as suas modalidades, é importante fazer algumas observações.
Todas estas categorias de usucapião podem ser alegadas como matéria de defesa que, se acolhida pelo juiz, acarreta sentença de improcedência.
Prevalece que esta sentença de improcedência fundamentada na usucapião do réu não pode ser registrada no cartório de registro de imóveis.
Exceção: é certo, todavia, que se a usucapião alegada como matéria de defesa for a especial urbana ou a especial rural, estas vão gerar direito a registro, pois o Estatuto da Cidade (art. 13) e a Lei 6.969/81 (art. 7º) preveem expressamente esta possibilidade.
Por fim, cumpre observar que o Ministério Público intervirá como fiscal da lei nas ações de usucapião. O motivo é o interesse público gerado pelo registro. Não intervirá, contudo, quando a usucapião é alegada como matéria de defesa ou quando se tratar de usucapião de bens móveis.
[1] Neste sentido o REsp 575572 e o REsp 154123.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. V. 5, Salvador: Editora JusPODIVM, 2014, p. 358.
[3] Lei nº 10.257/2001.
[4] A expressão “integrado ou não” é irrelevante, e não foi recepcionada pela Constituição de 1988.
Rafael Ioriatti da Silva - MBA em Business Law pela Fundação Getúlio Vargas e especialista em Direito Administrativo pela Anhanguera-Uniderp.
Fonte: Artigos JusBrasil
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