A importância econômica e social da atividade da incorporação imobiliária tem justificado inovações legislativas destinadas à higidez do negócio com vistas à proteção do interesse da coletividade dos contratantes, notadamente os adquirentes, com ênfase na segregação de riscos por empreendimento.
Assim é que a Lei 10.931/2004 introduziu na Lei 4.591/1964 os arts. 31-A a 31-F, que permitem a constituição de um patrimônio separado, de afetação, para cada empreendimento, que, por essa forma, sujeita-se a um regime de incomunicabilidade e de vinculação de receitas, pelo qual o ativo de cada incorporação só responde pelas obrigações do seu respectivo passivo.
Cumprida a função da afetação, mediante conclusão da obra, entrega das unidades aos adquirentes e liquidação do passivo da construção, extingue-se o patrimônio separado e seu resultado será incorporado ao patrimônio geral da empresa incorporadora.
Desde então, e coerentemente com essa conformação econômica e jurídica, o direito positivo vem agregando novas normas destinadas a assegurar a preservação dos recursos que compõem o fluxo financeiro de cada empreendimento, com vistas à satisfação das legítimas expectativas do incorporador e do grupo de credores vinculado a cada empreendimento.[1]
Dentre as normas legais mais recentes permitimo-nos registrar algumas anotações sobre o art. 55 da Lei nº 13.097/2015, que protege os adquirentes de imóveis integrantes de incorporações imobiliárias contra os riscos de evicção, e o art. 833, XII, do novo Código de Processo Civil, que torna impenhoráveis os créditos oriundos das vendas dos imóveis integrantes de incorporação, vinculados à execução da obra.
A Lei 13.097/2015 resulta da Medida Provisória nº 656/2014, cuja Exposição de Motivos revela o propósito de tornar realidade o “princípio da concentração de dados nas matrículas dos imóveis” nos Registros de Imóveis, nos termos do art. 54 da proposta legislativa.
Esse propósito não chegou a ser alcançado, mas, não obstante, o art. 55 dessa lei contribui decisivamente para a segurança jurídica dos negócios de transmissão ou constituição de direitos reais imobiliários, notadamente em relação ao adquirente de boa-fé no contexto das incorporações imobiliárias e nos loteamentos, ao dispor que a alienação ou oneração, pelo incorporador, de unidades integrantes dessas espécies de empreendimento “não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia”, ressalvada a responsabilidade do empreendedor pelas perdas e danos a ele imputáveis, decorrentes de sua culpa ou dolo, bem como a aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor.[2]
A tutela especial assim instituída é justificada pelo alcance econômico e social das atividades da incorporação e do loteamento, e prioriza a presunção da veracidade do registro e da fé pública, cuja extensão aos adquirentes há muito vimos defendendo, visando assegurar a plena eficácia dos seus títulos aquisitivos e afastar eventuais riscos de ineficácia ou evicção, tendo em vista a função protetiva do registro do memorial da incorporação ou do loteamento.[3]
Trata-se de princípio típico dos registros públicos, que, como anota Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, diz respeito ao valor que deve ser dado ao conteúdo do registro em face de terceiro que confiou nas informações constantes no fólio real: “em termos práticos, cuida de solucionar a difícil questão de estabelecer quem merece proteção prioritária: o verdadeiro titular do domínio ou o adquirente do imóvel que, estando de boa-fé, efetuou a compra confiando na informação contida no registro imobiliário”.[4]
É nesse mesmo sentido a doutrina de Afrânio de Carvalho em relação à preservação dos direitos do adquirente na aquisição a non domino, em atenção à teoria da aparência que ampara a boa-fé do adquirente: “se o alienante não é o verdadeiro proprietário e a lei legitima a aquisição pelo terceiro de boa-fé, fá-lo no intuito de proteger a boa-fé do adquirente, a bem da circulação imobiliária, em cujo interesse não cogita de indagar se o imóvel pertencia à parte contrária ou a terceiro”.[5]
A norma do art. 55 tem como pressuposto a prévia publicidade decorrente do arquivamento do Memorial de Incorporação ou de Loteamento no Registro de Imóveis, que tem entre suas funções a de demonstrar a regularidade da titulação do empreendedor sobre o terreno e sua capacidade de contrair obrigações e dispor dos imóveis integrantes do empreendimento.
Embora o simples acesso aos elementos integrantes do Memorial de Incorporação não traduza presunção de inexistência de risco de evicção ou de fraude na aquisição do terreno, os documentos dados à publicidade fornecem aos interessados elementos para aferição da segurança jurídica da oferta pública realizada pelo incorporador ou pelo loteador.
Merecem atenção certos aspectos limitadores do campo de aplicação da norma do art. 55.
Em primeiro lugar, a proteção assim conferida aos adquirentes não importa em supressão da garantia daqueles que, em razão da evicção ou da ineficácia, tenham se tornado credores do alienante, pois estes se sub-rogam no preço ou nos créditos oriundos das vendas das unidades do empreendimento.
Além disso, o mesmo art. 55 da Lei 13.097 ratifica a responsabilidade do empreendedor pela indenização das perdas e danos a que a evicção ou a ineficácia da aquisição do terreno vierem a dar causa, ao dispor que a sub-rogação daqueles credores se efetiva “sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa”.
Em relação à incorporação imobiliária, a sub-rogação a que se refere esse dispositivo sujeita-se às limitações decorrentes da conformação natural de cada empreendimento como unidade econômica autônoma, dependente de sua própria capacidade de gerar as receitas necessárias à realização do seu objeto, correspondente à execução da obra, liquidação do passivo da incorporação e apropriação do resultado pelo incorporador.
Importa também ter presente que a proteção contra os riscos de evicção e de ineficácia diz respeito à constituição de direitos reais e às alienações contratadas pelo incorporador ou pelo loteador, e não às eventuais revendas realizadas pelos adquirentes ou aos direitos reais que estes vierem a constituir.
Esses e outros aspectos recomendam seja a sub-rogação de que trata esse dispositivo interpretada cum grano salis, em articulação com o conjunto de normas que privilegia a segregação de riscos de cada incorporação imobiliária, vistas à realização da sua função econômica e social.
Outra inovação legislativa de extraordinário alcance econômico e social é o art. 833, XII, do Código de Processo Civil de 2015, que torna impenhoráveis os “créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob o regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra”[6], preservando, assim, os recursos destinados à construção e à liquidação do respectivo passivo, de modo a assegurar a realização do programa contratual.
A regra da impenhorabilidade tem como pressuposto o fato de o capital necessário à consecução da incorporação provir das vendas das unidades que compõem seu próprio ativo e ser limitado pelo potencial desse ativo. Assim, sendo a realização da incorporação dependente de suas próprias forças, a impenhorabilidade visa a preservação do fluxo financeiro assim constituído.
O tratamento da matéria no âmbito do processo de execução reforça a segurança jurídica propiciada pela afetação patrimonial e reflete com fidelidade a norma de direito material do § 6º do art. 31-A da Lei 4.591.1964, segundo o qual “os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação serão utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação”.
De outra parte, a impenhorabilidade está estreitamente vinculada ao § 8º do mesmo art. 31-A, que limita a vinculação das receitas ao quantum necessário à execução da obra ao excluir do patrimônio de afetação “os recursos que excederem a importância necessária à conclusão da obra (art. 44), considerando-se os valores a receber até sua conclusão e, bem assim, os recursos necessários à amortização do financiamento da construção, se houver.”
A impenhorabilidade não se limita aos créditos vinculados às incorporações submetidas ao regime jurídico da afetação, pois o CPC a instituiu como norma geral, incidente sobre os créditos oriundos das vendas de imóveis integrantes de toda e qualquer incorporação imobiliária, afetada ou não.
Limita-se a impenhorabilidade, entretanto, ao montante de créditos necessário ao pagamento das obrigações correspondentes à construção, dispondo nesse sentido o art. 833, XII, do CPC que o objeto da impenhorabilidade são os créditos “vinculados à execução da obra.”
Por outro lado, os termos em que é instituída a impenhorabilidade – “créditos (...) vinculados à execução da obra” –, salvo melhor juízo, importam em reconhecimento, pelo CPC, da existência de um regime de segregação de riscos e de vinculação de receitas para a atividade da incorporação imobiliária, que subsiste independente das normas especiais dos arts. 31-A a 31-F da Lei 4.591/1964.
E, efetivamente, a limitação da impenhorabilidade aos créditos “vinculados à execução da obra” conforma-se à racionalidade econômica da atividade da incorporação imobiliária, constituindo norma cuja efetividade tem extraordinário alcance econômico e social.
As inovações legislativas aqui referidas amoldam-se à função social e à racionalidade econômica da atividade da incorporação imobiliária, seja ao garantir o direito individual do adquirente ante o risco de evicção e de ineficácia da aquisição do terreno onde será implantado o conjunto imobiliário, seja ao priorizar, pela impenhorabilidade, o interesse da coletividade dos contratantes.
São normas que se agregam às disposições da Lei nº 4.591/1964 e demais diplomas legais que dispõem sobre essa atividade, com os quais formam um conjunto normativo dotado de mecanismos destinados a assegurar a consecução do objeto da incorporação, com a consequente satisfação das legítimas expectativas dos contratantes.
O propósito destas anotações não é outro senão suscitar reflexão sobre algumas das situações nas quais essas normas incidem.
É o caso, por exemplo, da eventualidade de penhora sobre o produto da cobrança dos créditos oriundos da comercialização das unidades imobiliárias do empreendimento, para atender à exigibilidade de restituição, pelo incorporador, de parte das quantias pagas em promessa de venda que veio a ser resolvida por inadimplemento da obrigação do promitente comprador. De acordo com a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça,[7] essa restituição deve ser feita imediatamente pelo incorporador.[8]
Entre as questões suscitadas por essas inovações legislativas está a definição dos termos em que a aplicação da Súmula 543 se harmonizará com a regra do art. 833, XII, do CPC, pois, enquanto a norma processual cria uma espécie de stay period de impenhorabilidade, que perdura durante a obra e até que seja liquidado o passivo da construção, o enunciado da Súmula torna exigível a restituição independente do estágio em que se encontre o empreendimento – se em fase de construção ou se já concluído e liquidado seu passivo.
Outra relevante questão que se coloca diz respeito à definição da extensão e do limite do direito subjetivo do credor a que se refere o art. 55 da Lei 13.097/2015, ou seja, aquele que, em razão de ação judicial que reconheceu a evicção ou declarou a ineficácia da aquisição do terreno onde está sendo edificado o conjunto imobiliário, ficar sub-rogado nos créditos imobiliários oriundos das vendas dos imóveis em construção. Na medida em que parte desses créditos compõe o conjunto dos créditos que, em virtude do regime de incomunicabilidade e de vinculação de receitas (Lei 4.591/1964, § 6º do art. 31-A de CPC, art. 833, XII), é necessário definir os termos em que serão conciliados o interesse do credor sub-rogado e o dos titulares dos créditos vinculados à construção, entre os quais sobreleva o dos adquirentes, a cujo pagamento é direcionado o produto da cobrança do preço de venda.
Essas e outras questões relacionadas à proteção da coletividade dos contratantes de uma incorporação imobiliária, notadamente os adquirentes, reclamam redobrado esforço do aplicador do Direito em busca do ponto de equilíbrio que assegure a satisfação dos direitos dos seus diferentes credores, com a atenção voltada para a conformação da incorporação imobiliária como uma unidade econômica autônoma dependente de suas próprias forças, sendo essa a razão pela qual a satisfação da totalidade desses direitos depende da estabilidade do fluxo financeiro do empreendimento e da observância do direcionamento definido pelo direito positivo.
Referências
[1] Tratamos da matéria em nosso Incorporação Imobiliária, 4. ed., Gen-Forense, pp.76/150.
[2] Lei nº 13.097/2015: “Art. 55. A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação das disposições constantes da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990”.
[3] CHALHUB, Melhim, Direitos Reais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2. ed., 2014, p. 84-86.
[4] SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira, Direito Registral Imobiliário. Curitiba: Juruá, 2013, p. 61.
[5] CARVALHO, Afrânio de, Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 4. ed., 1998, p. 177.
[6] Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015): “Art. 833. São impenhoráveis: (...); XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra”.
[7] Permitimo-nos remeter ao nosso artigo A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato, Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, abril-junho 2016.
[8] Súmula 543 do STJ. “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.”
Melhim Chalhub - Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil e da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário. Autor dos livros Incorporação Imobiliária e Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário, entre outros.
Publicado originalmente por Revista Opinião Jurídica - ed. 5 - 2017 - Coordenada por José Horácio Cintra Gonçalves Pereira e Jaques Bushatsky.
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