quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

OS ESTRANGEIROS E O DIREITO DE SUPERFÍCIE EM PROPRIEDADES RURAIS


Reconhece o nosso ordenamento jurídico a divisão clássica das duas modalidades de direitos[1], presente nos sistemas que o inspiraram — sobretudo aqueles de origem francesa, germânica e italiana —, qual seja aquela entre os chamados direitos obrigacionais (iura in personam) e os direitos reais (iura in rem).

Nos direitos obrigacionais, conforme afirma a doutrina, a liberdade prevalece. Isso significa dizer, pois, que, não havendo vedação legal, as partes podem criar créditos e débitos entre si de modo amplo, desde que, como dito, não haja proibição expressa pela lei ou a mais ampla contrariedade a princípios e normas que sejam considerados como de ordem pública.

Já quanto aos direitos reais — ou seja, aqueles que estabelecem um poder entre uma pessoa e uma coisa e que devem ser respeitados pelos demais —, a norma de regência cria características diversas.

Com efeito, tais direitos reais são fixados em numerus clausus, ou seja, não prescindem de prévia tipificação em lei.

São oponíveis erga omnes e atribuem ao seu titular faculdades peculiares, dentre as quais a de preferência e a de sequela. Pela preferência, por exemplo, o titular de um direito real tem prioridade em relação à aquisição do próprio bem ou ao valor nele inerente em relação a outros credores, dotados de direitos de outra natureza ou que tenham sido constituídos em momento posterior.

Já o direito de sequela permite que a parte faça prevalecer o seu direito mesmo que a titularidade do domínio se altere, com a transferência da posse ou da propriedade do bem, autorizando também que o próprio bem garanta crédito qualificado como sendo de natureza real.

Como se sabe, no rol de tais direitos reais se encontra o direito de propriedade, que, no ordenamento jurídico brasileiro, congrega as faculdades de usar, fruir, dispor e de reaver a coisa de quem injustamente a possua, conforme consta do artigo 1.228, caput do Código Civil brasileiro. É o direito real sobre coisa própria.

O ordenamento jurídico brasileiro reconhece, ademais, uma outra categoria: os assim denominados direitos reais sobre coisa alheia. Têm essa qualificação a alienação fiduciária em garantia, a hipoteca, o penhor, aanticrese — todos eles direitos reais de garantia —, além de outros, denominados como de uso ou fruição, dentre os quais o usufruto, a habitação, as servidões, os direitos do compromitente comprador de imóvel e, no que nos interessa mais para os fins deste artigo, a superfície.

O direito real de superfície, de fato, acha-se regulado pelos artigos 1.369 a 1.377 do Código Civil brasileiro e estabelece uma redução dos direitos do proprietário de um determinado bem imóvel em favor do chamado superficiário, o qual daquele outro recebe as faculdades de construir em terreno alheio ou de nele realizar atividade agrícola.

Como cada direito real apresenta uma disciplina jurídica própria[2], no direito de superfície a construção ou a plantação comporão o patrimônio próprio do superficiário, que tem assim o direito de manter tais bens sobre o solo alheio.

Como direito real que é, apresenta-se como oponível a terceiros, além de obrigar aquele perante o qual foi estabelecido por negócio jurídico válido. O seu objetivo é, de modo marcante, permitir que seja dada utilização econômica a determinados bens de uma maneira ainda mais intensa e completa do que aquela que proporcionam contratos de arrendamento ou de locação, geradores de efeitos majoritariamente obrigacionais, ou seja, que vinculam as partes que participaram do negócio, sem gerar consequências para terceiros.

A superfície, assim, é direito real, capaz de atribuir ao seu titular meios efetivos para a exploração econômica de bens imóveis.

Trata-se, ademais, de direito reconhecido em lei no ordenamento jurídico brasileiro, em especial pelo Código Civil e pelo chamado Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01), outorgando ao seu titular faculdades mais extensas do que que seriam derivadas de relações as de natureza meramente obrigacional.

A questão que se coloca, como objeto deste artigo, é a seguinte: o direito real de superfície que incide sobre imóveis rurais estaria sujeito às mesmas restrições legais impostas para a aquisição do direito de propriedade ou para a celebração de contrato de arrendamento rural de terras brasileiras por empresas estrangeiras ou por empresas brasileiras com controle societário, direito ou indireto, estrangeiro?

No Brasil, a regulamentação específica do tema da aquisição da propriedade rural — não daquela de natureza urbana — por estrangeiros foi feita pela Lei 5.709/1971, regulamentada pelo Decreto 74.965/1974. Por ela são definidas a sujeição, aos seus ditames, das pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, bem como as pessoas jurídicas brasileiras que sejam controladas por não brasileiros.

Ademais, tal lei estabelece limites rígidos para a extensão e localização de imóveis rurais situados no Brasil e que possam ser adquiridos por estrangeiros.

Esses limites, por outro lado, são estabelecidos não em relação a todo e qualquer direito real, mas, sim, especificamente quanto ao direito de propriedade. Outra lei federal, a 8.629/1993, estendeu essa mesma restrição aos contratos de arrendamento, os quais também não poderiam ser celebrados por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, ou ainda por pessoas jurídicas brasileiras com controle estrangeiro.

Considerava-se tal lei revogada em virtude de regras que foram editadas em momento posterior a ela. Contudo, mediante um parecer da Advocacia Geral da União — Parecer 01/2010 —, a vigência daquela lei da década de 1970 foi reafirmada.

Como os cartórios de registro de imóveis se submetem, do ponto de vista administrativo, às determinações da AGU, o fato é que as pessoas estrangeiras têm tido os seus direitos de aquisição de propriedade imobiliária rural limitados, situação essa que tem prevalecido atualmente.

A resposta à questão acima formulada, segundo penso, deve ser pela negativa. A regra imposta pela interpretação dos textos de lei dada pelo referido parecer da AGU — e com a qual não concordo — diz respeito, especificamente e de toda forma, ao direito de propriedade e ao arrendamento rural.

Trata-se, pois, de uma restrição a direitos.

Sendo assim, uma vez que o direito real de superfície advém de contrato contra o qual não há nenhuma limitação explícita, deve prevalecer, como regra, a garantia da liberdade negocial naquilo que não contrariar a lei e a ordem pública.

Exceções se interpretam de modo restrito. Fosse do interesse do legislador ou do órgão do Poder Executivo estender a limitação a outros direitos reais, deveria tê-lo feito de modo explícito e direto.

Ademais, o direito de superfície visa, exatamente, facilitar o cumprimento da função social dos bens agrários e garantir a segurança de operações econômicas ajustadas, outorgando ao seu titular direitos ainda mais amplos do que aqueles atribuídos ao empresário que desenvolva a sua atividade a partir de uma relação obrigacional, baseada em contrato de parceria ou de arrendamento.

Sendo assim, não se pode ampliar o sentido da limitação, vedando aos estrangeiros a titularidade sobre direitos de superfície.

Referências:

[1] T. W. Merrill ‒ H. E. Smith, The Property/Contract Interface, in Colum. L. Rev. (Columbia Law Review) 101 (2001), p. 790.
[2] C. M. Bianca, Diritto civile ‒ La proprietà, vol. 6, Milano, Giuffrè, 1999, p. 130.

Fernando Campos Scaff - Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogado e árbitro.
Fonte: Revista Consultor Jurídico

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