Que o instituto da usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de posse pelo lapso temporal não há dúvidas. Considerada a face aquisitiva da prescrição, a usucapião tem aplicação ampla, cabível para todos os bens objeto de posse, excluindo-se os incorpóreos, os que encontram-se fora do comércio e os públicos por força de previsão legal.
Devido à amplitude e ao fato de ser considerada aquisição originária de propriedade, na qual não existe vínculo entre o usucapiente e o proprietário do bem, a usucapião tornou-se meio eficaz, e muitas vezes único, de obtenção de um registro imobiliário quando não mais restar alternativas para a transferência da propriedade.
Nesse contexto, o instituto da prescrição aquisitiva passou a ser visto como forma adequada para proceder à regularização de lotes em parcelamentos ilegais, clandestinos ou irregulares.
A perspectiva da ação de usucapião como remédio para situações irregulares tem sido uma prática polêmica e perigosa, a depender da forma como é manejada. Loteamentos clandestinos na zona rural estão sendo, indevidamente, regularizados por meio do ajuizamento individual dessas ações pelos possuidores.
Isso acaba por incentivar a continuidade da prática criminosa do loteamento clandestino, causando vasto prejuízo aos municípios, tendo em vista que os loteamentos e as vendas de terrenos rurais para pagamento em prestações têm procedimento de regularização próprio, previsto no Decreto-lei n.º 58 de 1937, bem como na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73).
Por outro lado, não se pode olvidar que é possível usucapir qualquer imóvel não público, independentemente de sua área, desde que preenchidos os requisitos legais, o que, de certa forma, possibilita imóveis rurais com área inferior à fração mínima de parcelamento serem objeto de ação de usucapião.
Trata-se de tema complexo, pois embora haja posicionamento em contrário, existem muitos julgados no sentido de que a ausência de regularização do imóvel não constitui óbice para o reconhecimento da prescrição aquisitiva. Afirmando, inclusive, que a proibição de divisão do imóvel rural em áreas de dimensão inferior à do módulo rural deve ser observada para fins de parcelamento do solo, e não para aquisição originária de propriedade (TJSP, 0000200-50.2012.8.26.0563 – Apelação).
Logo, entende-se não haver qualquer óbice para ação de usucapião de glebas com área inferior à fração mínima de parcelamento, parcela esta, preestabelecida pelo INCRA através de ato normativo. Afinal, o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) não impede a existência de efeito que decorre da posse prolongada, ou seja, o reconhecimento de uma situação de fato.
No entanto, o problema surge quando a gleba usucapida, por ser inferior à fração mínima de parcelamento, não tem, ou não consegue ter, Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) próprio, distinto do da área total ao qual está inserida.
CCIR é um documento emitido pelo INCRA e confere viabilidade rural aos lotes, considerando-os imóveis rurais. Esse documento é imprescindível à abertura de matrícula e ao registro perante o cartório de Registro de Imóveis. É dizer que a abertura de matrícula e o registro de imóveis rurais estão condicionados a determinados requisitos por força de lei e ato normativo, dentre eles, a apresentação do CCIR.
Ocorre que em hipótese de evidente empreendimento clandestino, não há como conferir CCIR a essas áreas. Diante da recusa, não pode o registrador, nem o juiz, obrigar o INCRA a emitir tal documento, ainda que o interessado (usucapiente) esteja munido de sentença de usucapião transitada em julgado.
Como é sabido, a sentença de usucapião tem natureza meramente declaratória de aquisição da propriedade pelo possuidor. No entanto, o título de propriedade conferido pela sentença não se confunde com o registro deste no cartório, posto que esse direito de propriedade não está condicionado ao seu registro, que lhe confere apenas publicidade.
Salienta-se, portanto, que ao recusar a emissão do CCIR, o INCRA não está descumprindo ou negando vigência à sentença, afinal, a recusa diz respeito tão somente ao enquadramento, ou não, da área como imóvel rural. Do mesmo modo, age o registrador quando se recusa a proceder à abertura de matrícula, ou ao registro, quando não apresentado o CCIR.
Conclui-se, pelo exposto, que a existência de sentença de usucapião transitada em julgado não é garantia de registro da área usucapida no cartório competente, tendo em vista que o registrador dispõe de amparo legal para proceder à recusa do título, quando visualizar a inexistência de documentos indispensáveis à prática do ato, cumprindo, assim, o seu dever de agir em conformidade com a lei.
Lembrando que, se o juiz entender conveniente, pode dispensar a exigência de CCIR para a abertura de matrícula do imóvel usucapido, constando expressamente do mandado. Todavia, configura, sem dúvidas, medida paliativa, pois para qualquer ato de transferência futuro, será exigido o documento dispensado.
Camilla Gonçalves - Advogada. Pós-graduada em Direito Notarial e Registral.
Fonte: Registros Jurídicos
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