O presente artigo examina o comando da nova Súmula 543 do STJ, que trata dos direitos do consumidor na compra de imóveis financiados. Criada em agosto de 2015, o verbete ganhou a seguinte redação: “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”
1. Incidência do CDC em contrato de promessa de compra e venda de imóvel
O contrato de promessa de compra e venda, também chamado de contrato de compromisso de compra e venda, atualmente regulado nos arts. 1417 e 1418 do CC/2002, consiste numa espécie de contrato preliminar[1] pelo qual as partes, ou uma delas, comprometem--se a celebrar adiante o contrato definitivo de compra e venda. Essa espécie de contrato preliminar direciona-se àqueles que, desejando realizar a compra e venda, não podem (ou não querem) fazê-lo, em dado momento, por motivos diversos, e, destarte, se obrigam à sua realização, em data futura. [2]
O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos de compra e venda de imóveis, desde que o comprador seja o destinatário final do bem. O código consumerista, revela quem possui legitimidade para estar na relação processual objeto de relações de consumo: a) consumidor; b) fornecedor de produto ou serviço. Vejamos:
O promissário-comprador é, juridicamente, consumidor, na acepção tratada pelo art. 2º do CDC como “toda a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".
A empresa construtora, por sua vez, é fornecedora de serviço de construção, conforme art. 3º do CDC, para o qual “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção , transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços".
Dessa forma, aplica-se o CDC nos contratos de comercialização de imóveis, em que a construtora/incoporadora se obriga a construir unidades imobiliárias mediante financiamento, e o adquirente deseja a utilização do bem imóvel como destinatário final (para uso próprio). [3]
2. O direito de resilição do compromisso de compra e venda por iniciativa do devedor
A jurisprudência pátria é firme em permitir a resilição do compromisso de compra e venda por iniciativa do devedor, se este não mais possui condições econômicas para suportar o pagamento das prestações avençadas com a empresa vendedora do imóvel. Dessa forma, “o compromissário comprador que deixa de cumprir o contrato em face da insuportabilidade da obrigação assumida tem o direito de promover ação a fim de receber a restituição das importâncias pagas".[4]
Ressalte-se que, mesmo que caracterizado o inadimplemento contratual por parte do consumidor, não há como afastar a devolução dos valores que pagou, sob pena de enriquecimento ilícito do promitente vendedor. O reconhecimento do inadimplemento somente influencia na imposição das multas contratuais e perdas e danos.
Cumpre então indagar: se o adquirente de imóvel, que assinou uma promessa de compra e venda, fica impossibilitado de cumprir com as obrigações assumidas e decidir devolver o imóvel, em que momento os valores devem ser restituídos? É o que veremos a seguir.
3. A rescisão da promessa de compra e venda e o direito à restituição imediata das parcelas pagas
As formas e condições da restituição em caso de rescisão foram definidas no REsp 1300418 SC, julgado pela Segunda Seção do STJ na sistemática de julgamento de recursos repetitivos. A Corte considerou que, apesar de não haver literal de disposição no CDC que imponha a devolução imediata do que é devido pelo promitente vendedor de imóvel, o código possui fórmulas abertas para as chamadas "práticas abusivas" e "cláusulas abusivas", lançando mão de um rol meramente exemplificativo.[5]
Veja-se, a propósito, a redação dos arts. 39 e 51 do CDC:
CDC. Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas [...];
CDC. Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que [...].”
Com base nesse raciocínio, a Corte considerou que a devolução dos valores somente após o término da obra ou de forma parcelada é abusiva, pois retarda o direito do consumidor à restituição da quantia paga, em violação ao artigo 51, II, do CDC. Além disso, constitui ainda vantagem exagerada para o fornecedor, nos termos do inc. IV do art. 51, estando em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, conforme o inc. XV do art. 51.
Ora, havendo rescisão do compromisso de compra e venda, o promitente vendedor estará livre para, uma vez mais, revender o imóvel a terceiros e, a um só tempo, auferir vantagem com os valores retidos, além da própria valorização do imóvel, como normalmente acontece. Some-se a isso o fato de, podendo nem vir a ser concluída a obra, o consumidor preterido correr o risco de ficar ao sabor da conveniência do contratante inadimplente, para que possa receber o que pagou.[6]
Numa palavra: em caso de rescisão contratual de promessa de compra e venda, a empresa promitente vendedora deve devolver imediatamente os valores recebidos, não importando quem deu causa à resolução do contrato. O reconhecimento do inadimplemento somente influenciará a imposição das multas contratuais e perdas e danos. [7]
Esse entendimento culminou na criação da Súmula 543 do STJ, que ganhou a seguinte redação:
Súmula 543/STJ: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.
A propósito, trazemos os seguintes arestos:
“(...) 2 - Com a resolução, retornam as partes contratantes à situação jurídica anterior ("status quo ante"), impondo-se ao comprador o dever de devolver o imóvel e ao vendedor o de ressarcir as prestações até então adimplidas, descontada a multa pelo inadimplemento contratual. (...)”. STJ - AgRg no REsp 677177 PR, Rel. MIn. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª Turma, DJe 16/03/2011.
“(...) Esta Corte já decidiu que é abusiva a disposição contratual que estabelece, em caso de resolução do contrato de compromisso de compra e venda de imóvel, a restituição dos valores pagos de forma parcelada, devendo ocorrer a devolução imediatamente e de uma única vez. (...)” STJ - RCDESP no AREsp 208.018⁄SP, Rel. Min. SIDNEI BENETI, 3ª Turma, DJe 05⁄11⁄2012)
Cumpre registrar a retenção integral do valor pago pelo adquirente é expressamente vedada pelo CDC, que em seu artigo 53 estabelece o seguinte:
- CDC. Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
Interpretando o dispositivo legal supra, a jurisprudência do STJ passou a admitir, em caso de rescisão unilateral do contrato por culpa do promitente-comprador, a retenção de valores para o pagamento de despesas administrativas do contrato - tais como as feitas com a divulgação, a comercialização, a corretagem, o pagamento de tributos e taxas incidentes sobre o imóvel -, desde que o montante a ser abatido não ultrapasse o percentual de vinte e cinco por cento (25%) do total pago pelo promitente-comprador.
A esse respeito confira os arestos do colendo STJ a seguir colacionados:
“(...) 3.- Continuidade da adoção do percentual de 25% para o caso de resilição unilateral por insuportabilidade do comprador no pagamento das parcelas, independentemente da entrega/ocupação da unidade imobiliária, que cumpre bem o papel indenizatório e cominatório. 4.- Embargos de divergência improvidos"(EAg 1138183/PE, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/06/2012, DJe 04/10/2012).
“(...) II. O desfazimento do contrato dá ao comprador o direito à restituição das parcelas pagas, com retenção pelo vendedor de 25% sobre o valor pago, a título de ressarcimento das despesas havidas com a divulgação, comercialização e corretagem na alienação, nos termos dos precedentes do STJ a respeito do tema (2ª Seção, EREsp n. 59.870/SP, Rel. Min. Barros Monteiro, unânime, DJU de 09.12.2002; 4ª Turma, REsp n. 196.311/MG, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, unânime, DJU de 19.08.2002; 4ª Turma, REsp n. 723.034/MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, unânime, DJU de 12.06.2006, dentre outros). III. Caso, todavia, excepcional, em que ocorreu a reintegração da posse após a entrega da unidade aos compradores e o uso do imóvel por considerável tempo, a proporcionar enriquecimento injustificado, situação que leva a fixar-se, além da retenção aludida, um ressarcimento, a título de aluguéis, a ser apurado em liquidação de sentença. IV. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido parcialmente. (REsp 331.923/RJ, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 25/05/2009) (....)” STJ - AREsp 140756 SP, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJ 01/07/2015
CONCLUSÃO
No caso de resolução de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao CDC, o promitente vendedor⁄construtor deve devolver imediatamente os valores recebidos, não importando quem deu causa à resolução do contrato.
Segundo a jurisprudência do STJ, é abusiva a cláusula que determina a restituição dos valores devidos somente ao término da obra ou de forma parcelada. Esse tipo de cláusula viola do art. 51, II, IV e XV, do CDC, provocando desvantagem excessiva em prejuízo dos consumidores e enriquecimento ilícito da construtora, que poderá recolocar o imóvel à disposição do mercado imobiliário, de modo a capitalizar-se durante a construção.
Veja-se que a questão relativa à culpa pelo desfazimento do contrato somente irá afetar no cálculo do valor a ser restituído ao comprador, não interferindo na forma ou prazo da devolução. Assim, temos o seguinte quadro: a) Se a rescisão decorrer de culpa exclusiva do promitente vendedor⁄construtor, os valores devem ser restituídos integralmente; e b) Se o contrato foi quebrado por desistência ou inadimplência do comprador, pode-se devolver apenas parte dos valores, a depender do caso concreto. Cumpre registrar que o STJ tem adotado o percentual de 25% para o caso de resilição unilateral por insuportabilidade do comprador no pagamento das parcelas.
NOTAS:
[1] Caio Mário da Silva Pereira, citando Von Tuhr, conceitua o contrato preliminar como “aquele por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar mais tarde outro contrato, que será contrato principal.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. 3, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010).
[2] Cf. PEREIRA, Altino Portugal Soares. A Promessa de Compra e Venda de Imóveis no Direito Brasileiro. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 1997. p. 21.
[3] Vale lembrar que a incorporadora é aquela que planeja, vende e divulga o empreendimento, diferente da construtora, que muitas vezes apenas executa a obra.
[4] Cf. STJ - EREsp 59870 SP, Rel. Min. BARROS MONTEIRO, 2ª SEÇÃO, DJ 09/12/2002; STJ - AgRg no AREsp 433419 SC, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, 4ª TURMA, DJe 20/10/2014.
[5] Sobre o tema, Nelson Nery Júnior assim expôs:"O CDC enumerou uma série de cláusulas consideradas abusivas, dando-lhes o regime da nulidade de pleno direito (art. 51). Esse rol não é exaustivo, podendo o juiz, diante das circunstâncias do caso concreto, entender ser abusiva e, portanto, nula, determinada cláusula contratual. Está para tanto autorizado pelo caput do art. 51 do CDC, que diz serem nulas,"entre outras", as cláusulas que menciona. Ademais, o inc. XV do referido artigo contém norma de encerramento, que dá possibilidade ao juiz de considerar abusiva a cláusula que" esteja em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor ". Em resumo, os casos de cláusulas abusivas são enunciados pelo art. 51 do CDC em numerus apertus e não em numerus clausus ". NERY JR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto". Rio de Janeiro: Forense Universitária, 7ª edição, 2001, p. 463.
[6] Conforme asseverou o ilustre Ministro Luis Felipe Salomão: “Importante ressaltar que esse entendimento - segundo o qual os valores devidos pela construtora ao consumidor devem ser restituídos imediatamente à resolução do contrato - aplica-se independentemente se quem deu causa à resolução foi o comprador ou o vendedor. Na verdade, a questão relativa à culpa pelo desfazimento da pactuação resolve-se na calibragem do valor a ser restituído ao comprador e não pela forma ou prazo de devolução. É assente o entendimento de que a resolução do contrato de promessa de compra e venda de imóvel por culpa (ou por pedido imotivado) do consumidor gera o direito de retenção, pelo fornecedor, de parte do valor pago, isso para recompor eventuais perdas e custos inerentes ao empreendimento, sem prejuízo de outros valores decorrentes, por exemplo, da prévia ocupação do imóvel pelo consumidor. Portanto, a consequência jurídica para a resolução do contrato por culpa do promitente comprador é a perda parcial das parcelas pagas em benefício do construtor⁄vendedor, devendo o saldo, todavia, ser restituído imediatamente à resolução da avença. Em sentido oposto, na hipótese de o construtor⁄vendedor der causa à resolução do contrato, por óbvio a restituição das parcelas pagas deve ocorrer em sua integralidade.” (STJ - Voto do relator LUIS FELIPE SALOMÃO no REsp 1300418 SC, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 2ª SEÇÃO, DJe 10/12/2013).
[7] Cf. STJ – Voto da Min. AgRg no AREsp: 433419 SC, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI,, 4ª Turma, DJe 20/10/2014
Alice Saldanha Villar - Advogada e autora dos livros “Direito Sumular - STF” e Direito Sumular - STJ”, Editora JHMIZUNO, São Paulo, 2015 - Prefácio do Ministro Luiz Fux.
Fonte: JORNAL JURID
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