A certidão de uso e ocupação do solo é o documento que atesta os potenciais usos de um determinado imóvel à luz da legislação urbanística, seja do ponto de vista qualitativo ou quantitativo. Por meio dela, a administração pública informa aos interessados sobre as possibilidades de utilização do bem, se comercial, industrial, residencial ou misto, por exemplo, e sobre as especificidades do seu aproveitamento, como coeficiente de aproveitamento, garagens, número de gabaritos, número de habitações, recuos frontal e lateral e taxa de ocupação.
Isso implica dizer que essa certidão serve para apontar os tipos de atividade que podem ser desenvolvidas no local, indicando as formas adequadas de utilização do solo em questão de acordo com o zoneamento da área, seja para fins de construção, reforma, ampliação, parcelamento ou usos em geral. Normalmente, é o zoneamento urbanístico que é levado em consideração, o qual está definido em normas municipais como Plano Diretor, Lei de Uso e Ocupação do Solo, Código de Urbanismo, Código de Edificações etc. Com o advento do Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015), agora se faz necessário a observação do plano de desenvolvimento urbano integrado ou de aglomeração urbana quando a região metropolitana ou a aglomeração urbana em questão dispuser dessa normativa intermunicipal.
O expediente é importante para quem negocia ou pretende negociar na área imobiliária, uma vez que as informações prestadas concorrem diretamente para a definição do valor do bem, pois quanto maiores as possibilidades de aproveitamento do bem maior tende a ser o seu valor. Daí o seu manuseio corrente pelos atores do setor, a exemplo de engenheiros, empresários, corretores, arquitetos e advogados, seja para fins de compra, incorporação, locação, permuta ou venda.
O município é o responsável pela emissão do documento, uma vez que se trata da entidade encarregado da execução da política de desenvolvimento urbano, consoante dispõe a Constituição Federal de 1988[1]. Com efeito, nem a União nem os estados podem fazer as vezes do ente local nessa matéria, posto que se trata de competência privativa[2].
Em regra, essa atribuição fica a cargo da Secretaria de Planejamento ou de outra pasta equivalente, como de cidade, urbanismo etc. Por vezes, isso também fica sob a responsabilidade de outras secretarias, a exemplo de desenvolvimento econômico, finanças ou meio ambiente, o que se dá em razão da autonomia administrativa de cada municipalidade. Há casos até em que o ente local não dispõe de setor nem de servidor relacionado ao tema, situação em que a certidão é expedida por qualquer secretário ou até pelo próprio prefeito. Todavia, por uma questão da eficiência e especialidade, o mais adequado mesmo é que fique a cargo da pasta ou do setor responsável pela política de desenvolvimento urbano.
Qualquer pessoa pode requerer a certidão de uso e ocupação do solo de qualquer imóvel, independente de comprovar relação com o mesmo ou o seu proprietário, pois a informação é de caráter público. Com efeito, não se pode esquecer que as normas urbanísticas são consideradas de ordem pública, nos termos do parágrafo único do artigo 1º do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)[3].
Também não se pode cobrar pela análise da certidão tendo em vista a vedação constitucional[4]. No entanto, o fato é que em inúmeros municípios essa cobrança é uma prática diária, e os interessados preferem pagar do que encontrar dificuldade na obtenção da mesma.
Há situações em que o poder de disciplinar o uso e o ordenamento do solo, excepcionalmente, pode ser influenciado por outros níveis do ordenamento jurídico. Isso se dá quando existe bem ou conjunto de bens tombados, o que interfere não apenas na área objeto do tombamento, mas também no seu entorno haja vista o que dispõe o artigo 18 do Decreto-lei 25/37, “segundo o qual não se poderá na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto (...)”[5]. Quando esse tombamento acontece no âmbito da União ou dos estados, o município é obrigado a levar em consideração a existência de tais restrições ao emitir a certidão de uso e ocupação do solo, devendo para isso ser comunicado previamente.
É o caso também da Zona de Proteção do Aeródromo e da Zona de Amortecimento, institutos do Direito Aeronáutico e do Direito Ambiental, situações em que a proteção de bens juridicamente relevantes, como a segurança aeronáutica e a proteção do meio ambiente, justificam tal interferência. Enquanto o primeiro é a área de restrição ao redor dos aeroportos e demais aeródromos, onde também há restrições ao direito de construir em função do Plano Básico de Zona de Proteção de Aeródromo (PBZPA), estando a matéria disciplinada nos artigos 109 e 130 da Portaria 957/GC3 2015 do Comando da Aeronáutica e nos artigos 43, 44 e 45 da Lei 7.565/86 (Código Aeronáutico)[6], o segundo consiste no “entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade”, consoante estabelece o inciso XVIII do artigo 2º da Lei 9.985/2000 (Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza)[7]. Situações como essas não podem deixar de ser observadas.
A certidão de uso e ocupação do solo é um documento-chave na relação entre a política de desenvolvimento urbano e a política ambiental, já que a viabilidade ambiental também pressupõe a correta adequação ao meio ambiente artificial ou urbanístico. Daí a Resolução 237/97 do Conama exigir o expediente no processo administrativo de licenciamento ambiental:
Art. 10 – O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:
(…)
§ 1º – No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga para o uso da água, emitidas pelos órgãos competentes.
Na verdade, sem a apresentação do documento, boa parte dos órgãos ambientais não permite sequer o protocolo do requerimento da licença prévia, o que demonstra a participação obrigatória do município nos casos em que a competência licenciatória é do estado ou da União. O intuito da exigência é não permitir a desassociação do licenciamento ambiental à legislação urbanística e, em especial, ao licenciamento urbanístico, já que essas políticas são complementares e integrativas. Não faz sentido o órgão ambiental exigir o documento na renovação da licença ambiental, a não ser que haja uma ampliação da atividade.
De fato, para a concessão da licença prévia, pressupõe-se a análise de determinados documentos, como a certidão de uso e ocupação do solo, e outros a depender da natureza da atividade proposta. Por exemplo, se houver captação ou derivação substancial de água, será necessária a outorga de recursos hídricos, se for mineração, será necessária a concordância da Agência Nacional de Mineração (ANM), e se tiver relação com combustíveis, será necessária a chancela da Agência Nacional de Petróleo (ANP), de maneira que cada modalidade de licenciamento ambiental segue as suas peculiaridades.
Às vezes essa certidão é concedida com outro nome, a exemplo de certidão municipal de conformidade ou de certidão de viabilidade urbanística, dentre outros. Impende dizer que a citada resolução não faz uso da expressão. A despeito da terminologia, cuida-se do mesmo documento de caráter meramente declaratório.
A respeito do assunto, Cristiane Jaccoud e Alexandre Sion afirmam que “é ato administrativo declaratório, na medida em que não cria, transfere, modifica ou extingue direitos e tampouco emite juízo de valor. Ao contrário, limita-se apenas a declarar uma situação jurídica preexistente, aferida através da contraposição da tipologia do empreendimento com o zoneamento urbano já definido para a sua localização”[8]. Com efeito, como certidão não poderia mesmo ter outra natureza jurídica a não ser a declaratória.
Por isso, não cabe ao município exigir a apresentação de estudos ou de documentação complementar, uma vez que isso é próprio do licenciamento ambiental ou do licenciamento urbanístico. Não é por outra razão que a solicitação de compensações de ordem ambiental, social ou urbanística também é descabida, pois não existe espaço nem margem legal para esse tipo de discussão. Nesse sentido é o entendimento de Eduardo Fortunato Bim:
Os Municípios também não podem impor condicionantes, ainda que com base em lei municipal, pois não existe autorização da Resolução Conama n. 237/97 (art. 10, 1º) para tanto. A regulamentação da concessão da certidão não pode chegar ao ponto desvirtuar a certidão e transformá-la em uma anuência condicionada. A certidão de uso ocupação do solo deve apenas dizer se há compatibilidade do objeto licenciado quais posturas urbanísticas do Município, não podendo, desse modo, haver imposição de quaisquer tipos de condições. Fazê-lo significa praticar desvio de poder, que deve ser prontamente rechaçado pelo órgão licenciador ou pelo Judiciário)[9].
O fato de não possuir legislação própria de uso e ocupação do solo não pode servir de mote para que o município não conceda a certidão, pois a falta de regulamentação deve ser interpretada em favorecer do requerente. O fundamento disso é o princípio da legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, consoante dispõe o inciso II do artigo 5º da Carta Maior.
Sendo assim, não pode o agente político responsável retardar indevidamente a emissão da certidão sob pena de praticar improbidade administrativa. Na realidade, não é permitido ao poder público negar a concessão certidão, o que pode acontecer é o requerente não obter o documento nos termos por ele desejados, dado a ausência de esteio jurídico para tanto.
Referências
BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
FALCÃO, Anny Viana; FARIAS, Talden. Gentrificação de áreas históricas: desenvolvimento urbano e patrimônio cultural. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 20, n. 2, p. 31-52, maio/ago. 2018.
FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
FERRAZ, Pedro Campany. Certidão de uso do solo municipal. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CL0bQcyeuR0&list=UUjKgwR3J37ilhgVry_OwKJQ&index=9. Assistido em: 2.mar.2019.
JACCOUD, Cristiane; SION, Alexandre. Certidão municipal de conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo. In: QUERUBINI, Albenir; BURMANN, Alexandre; ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988. Londrina: Thoth, 2018, p. 78-79.
____________________
[1] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes (…) e Art. 30. Compete aos Municípios: (…) VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (…).
[2] Ao Distrito Federal também incumbe a emissão da certidão, já que por força do artigo 32 da Lei Fundamental esse ente federativo acumula as atribuições estaduais e locais, visto que inexistem municípios ali.
[3] Art. 1º. Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
[4] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: (…) b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal (…).
[5] FALCÃO, Anny Viana; FARIAS, Talden. Gentrificação de áreas históricas: desenvolvimento urbano e patrimônio cultural. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 20, n. 2, p. 31-52, maio/ago. 2018, p. 7-11.
[6] O que está em jogo aqui é a segurança aeronáutica, o que engloba a defesa das rotas, dos usuários das naves e das pessoas que moram ou transitam pelo entorno. O objetivo dessas restrições é garantir a ambiência, ou seja, a visibilidade do bem, mas também protegê-lo de determinadas pressões que poderão ameaçar a integridade do mesmo.
[7] Inobstante não fazer parte da unidade de conservação, sua finalidade é protegê-la impondo restrições à ocupação da área circundante para evitar o efeito de borda — abiótico, biótico direto e indireto — consistente na interferência negativa das atividades externas.
[8] JACCOUD, Cristiane; SION, Alexandre. Certidão municipal de conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo. In: QUERUBINI, Albenir; BURMANN, Alexandre; ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988. Londrina: Thoth, 2018, p. 78-79.
[9] BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 174.
Talden Farias é advogado e professor de Direito Ambiental da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Autor do livro "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019).
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário