I – INTRODUÇÃO
É de notório conhecimento por parte dos doutos que, de todas as manifestações de riqueza, a propriedade imobiliária é o fato mais apto a atrair a incidência de tributos em geral. E isso se justifica desde os primórdios do que vem a ser conhecido como civilização, remetendo a ideia de posse ou de propriedade de algum bem à conclusão de que ela faz parte do instinto apropriatório dos seres humanos. Confirmando essa ideia, o argumento de que a apropriação de terras faz parte – ainda que sob pontos de vista distintos – da natureza humana é pincelado na teorização sobre a origem da sociedade civil e do Estado nas leituras de John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes.
Fazendo um recorte mais específico para o caso brasileiro, a conclusão do parágrafo anterior permanece, trazendo o ordenamento jurídico nacional uma diversidade de instrumentos que permitem o exercício da propriedade imobiliária de forma elástica, isto é, dando ao proprietário a possibilidade de transferir a posse (direta) do imóvel para terceiros e sob dimensões, destinações e condições distintas, justificando a existência de doze tipos de direitos reais (incluindo a propriedade) no Código Civil.
Com o advento da Lei Federal nº 13.465/2017 (chamada de Lei da Regularização Fundiária), o Código Civil passou a agregar um décimo terceiro tipo de variação ao uso da propriedade: a laje.
Tendo a intenção de facilitar a convivência imobiliária especialmente nos centros urbanos com foco na regularização de divisões de uso de um mesmo imóvel derivadas de tratativas informais, o direito real de laje traz contornos que, embora já teorizados pela doutrina há tempos, visam abrir espaço para o crônico problema da falta de moradia digna no Brasil.
Ciente de que a positivação da laje no ordenamento nacional gerará uma forte mudança de cultura no seio social, como ocorrente no Direito em geral, analisar-se-á, no presente trabalho, o aspecto tributário das novas nuances que a existência do direito de laje poderá criar.
Para tanto, o presente escrito fará uma análise básica dos dizeres do Código Civil sobre o direito de laje; em seguida, apreciará a implicância que sua existência tem sobre a ótica tributária quanto aos tributos imobiliários municipais , especialmente sobre o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU) e, em seguida, serão traçadas linhas básicas sobre a responsabilidade tributária dos sujeitos envolvidos nas instituição e usufruto do direito real em estudo, bem como propostas básicas para que os Municípios lancem mão de idôneos mecanismos tributários como incentivo à regularização fundiária em tal aspecto.
II – A LAJE: O QUE DIZ O CÓDIGO CIVIL
Com o advento da já mencionada Lei de Regularização Fundiária, o Código Civil ganhou cinco novos artigos para reger o direito real em estudo (art. 1.510-A a 1.510-E). Embora se possa retirar a funcionalidade do instituto da leitura dos tais novos artigos, o conceito de Direito de Laje é deles extraído de forma indireta e/ou com básico esforço retórico, mas a definição conceitual do instituto não é dada diretamente pela positivação legal.
Isso chegou a ser feito pelo texto da Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, que inaugurou a Laje (ainda que, obviamente, sob o manto provisório) na legislação civil, dando o seguinte conceito no antigo artigo 1.510-A, caput: O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. Sendo conceito seguro, por ora, pode ser adotado para uma caracterização enciclopédica e para fins de compreensão do presente trabalho.
Por conta da definição dada no parágrafo anterior, que não chegou a ser alterada pela nova disposição civilista (salvo em sua dimensão, cujo detalhamento não é foco deste trabalho), o instituto ganhou críticas em pouco tempo de existência. Parcela dos escritos já existentes afirma que a Laje nada mais é do que um “redesenho” do já existente direito de superfície: como funciona da mesma forma que a Superfície, bastaria que o legislador acrescentasse novas disposições e extensões para o já existente direito real e facilitasse a sua aplicação prática, inclusive na correção dos núcleos urbanos informais e superlotados[i]. Em sentido oposto, afirma-se que a laje é, sim, novo direito real, situando-se como intermediário entre a propriedade plena e a superfície, possuindo diferenças marcantes em face desta última, tal como a ausência da temporariedade (característica marcante na superfície)[ii].
Complementando a discussão anterior (que, asseveramos, possuirá relevância prática a partir do momento em que se permitir complementaridade entre as disposições relativas à superfície e à laje), embora se reconheça que boa parcela doutrinária (até o momento existente) entenda que a laje realmente é uma extensão do direito real de superfície, advoga-se que o novo instituto é indicado para casos pontuais, extremos e excepcionais de impossibilidade de individualização de lotes ou de instrumentalização de qualquer outro tipo de direito real ou de copropriedade (condomínios em suas diversas modalidades), sendo indicado para núcleos urbanos informais[iii].
“Por meio de extensores e de programas de habitação popular, a cidade aumenta desmesuradamente a sua superfície total e este aumento de área encoraja a especulação, o processo recomeçando e se repetindo em crescendo”. Este trecho, escrito por Milton Santos em sua obra “O Espaço do Cidadão”[iv], revela em suas palavras o problema crônico do déficit habitacional dos centros urbanos, especialmente sobre a marginalização das camadas menos favorecidas da sociedade em decorrência da atuação voluptuosa das políticas públicas casadas com um sistema financeiro de especulação imobiliária. Para consertar isso, ao menos sob a ótica jurídica, nasceu o direito real de laje.
Em verdade, e dando continuidade ao raciocínio exposto no parágrafo anterior, a literatura jurídica reconhecia, há muito tempo, a existência informal do direito de laje no Brasil, pois ele representa uma situação tácita de divisão de utilização de um lote por sujeitos distintos com a ausência de um registro formal de superfície ou instrumento congênere[v]. Logo, como dito anteriormente, a positivação do direito real de laje causará uma mudança de cultura não no sentido de permitir a laje mas, sim, por classificar uma situação já existente, dando-lhe respaldo jurídico e permitindo aos seus titulares exercer, de forma segura, prerrogativas antes não garantidas pelo ordenamento jurídico. Aqui, tem-se um fato social agregado ao Direito sob o prisma de fato ou ato jurídico.
Portanto, por agora estar positivado, resta lógico dizer que sua existência, sua razão de ser, deve ser buscada no princípio da função social da propriedade (art. 5º XXIII da Constituição Federal c/c art. 1.228, §1º do Código Civil). Significa dizer que o exercício da propriedade e das figuras delas derivadas (os demais direitos reais) existem por alguma razão, visam regular alguma situação distinta, buscando não só influir na esfera privada como, também, na esfera da adequação e tranquilização das questões sociais mais delicadas[vi].
Partindo da premissa do parágrafo anterior, parece ter o legislador a intenção de buscar regularizar a grave e crônica ausência de regularidade dos grandes agrupamentos urbanos formados, predominantemente, pela camada menos favorecida da sociedade, tendo em vista o agravamento de questões como crises econômicas, voracidade do mercado imobiliário, ausência de políticas públicas efetivas para a questão do déficit imobiliário e, também, desemprego crescente. É, aqui, que se encontra a função social do direito de laje: a reversão ou amenização de uma situação de informalidade, buscando dar maior segurança jurídica aos envolvidos, em atenção especial aos núcleos formados por pessoas menos favorecidas economicamente.
Feitas as considerações críticas e iniciais sobre o instituto, analisar-se-ão, a seguir, os dispositivos civis sobre o novo direito real, trazendo-se suas linhas básicas de forma escorreita.
Para a concretização do direito de laje, deve-se dizer que ela partirá de uma construção-base, ou seja, uma propriedade já existente. Nela, seu titular poderá permitir que sua parte superior ou inferior seja cedida para fins de instituição do direito de laje (art. 1.510-A, caput). Tal direito real trabalha somente com construção, ao contrário do direito de superfície que, além de construção, também inclui plantação.
Constituindo matrícula própria no Registro imobiliário pertinente (art. 1.510-A, §2º) e dando ao seu titular as faculdades de usar, fruir e dispor da laje (neste caso, com preferência de oferta ao titular da construção-base – art. 1.510-D – ou, no caso de cessão da superfície da laje para instituição de uma sucessiva laje, com autorização prévia e expressa por parte do titular da construção-base – art. 1.510-A, §6º), é certo dizer que, aqui, os atributos da posse também podem permitir que o titular da laje possa se socorrer das vias judiciais cabíveis para defender sua posse derivada do direito real instituído, afastando-se do uso da parte superior ou inferior da construção-base quem injustamente o esteja usufruindo. Logo, essa faculdade (presente no direito de propriedade) pode ser, com as adaptações necessárias, também transportada para a laje.
A laje pode ser instituída tanto em imóveis públicos quanto em imóveis privados, abrangendo tanto o subsolo quanto o espaço aéreo da unidade autônoma instituída com a laje e, não custa dizer, só pode ser instituída por quem tem capacidade (legitimação, diga-se) para dispor da construção-base, isto é, seu proprietário (art. 1.510-A, §1º). Por mais que se diga que o titular do direito de laje possua uma unidade autônoma em seu favor, isto não quer dizer que ele possua fração ideal da construção-base: aqui, o direito de laje se difere das espécies de condomínio existentes no Código Civil, pois não há copropriedade mas, tão somente, divisão de partes autônomas de uma mesma unidade imobiliária para titulares e usos distintos, sem que isso crie divisão material do imóvel (art. 1.510-A, §4º).
O Código Civil delega aos Municípios e ao Distrito Federal a possibilidade de disposição detalhada da instituição do direito de laje para fins urbanísticos (art. 1.510-A, §5º), inclusive para a regência de disposições de estética urbana que não poderão ser violadas pelo titular da laje, assim como questões a respeito de obras novas ou ausência de reparos que terminem por prejudicar a segurança do imóvel (art. 1.510-B). A razão para a delegação de tais competências aos Municípios e ao Distrito Federal se justifica no fato de que, além de tais entes federativos estarem mais próximos das realidades urbanas, também figurarem como as unidades federativas que confeccionam o mais valioso dos instrumentos de política urbana: o Plano Diretor.
Embora já se tenha salientado que o direito de laje não se confunde com outras figuras inerentes ao estudo do Direito das Coisas, é plausível se compreender, ainda que com um momentâneo limite ao campo teórico (por ora), que a instituição da laje termina, por via de consequência, por permitir o uso de um mesmo imóvel por mais de um sujeito de direitos, criando hipóteses de aplicação analógica das regras de direitos de vizinhança e de composse.
Por tal razão, e fazendo analogia aos condomínios edilícios, o Código Civil permite que, na atribuição da laje, coexistam espaços comuns e individuais entre os titulares da construção-base e da laje, respectivamente. Assim, é permitido que as despesas com os equipamentos de usufruto comum pelas unidades existentes sejam partilhadas entre seus titulares, com regras semelhantes ao condomínio em geral (art. 1.510-C).
A existência da laje pressupõe uma construção-base, como dito anteriormente. Aqui, não é trivial dizer que a laje funcionaria como um instrumento “acessório” da propriedade imobiliária. Assim, com a ruína da construção-base, o direito de laje será extinto, salvo se este houver sido instituído no subsolo ou (sic) se o imóvel ruinoso não for reconstruído no prazo de cinco anos (art. 1.510-E).
III – ASPECTOS TRIBUTÁRIOS E PROPOSTAS
Na seara tributária, o Código Civil limitou-se a dizer que o titular do direito de laje responderá pelos encargos e tributos incidentes sobre sua unidade (art. 1.510-A, §2º). Mesmo que não existisse tal menção, a incidência tributária não seria prejudicada, pois, como a laje possui disposição legal, seus efeitos derivam de relações jurídicas, o que, por si só, constrói fato gerador para os tributos eventualmente incidentes[vii].
Por estarmos tratando de um direito real imobiliário, é certo que a laje traz interesse nos estudos a respeito da incidência dos tributos que incidem sobre a propriedade ou posse imobiliárias, tais como o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU).
Neste tópico, serão sucintamente analisados os aspectos de incidência do ITBI e do IPTU relativos à existência do direito real de laje e, também, apresentadas algumas propostas sobre como a regularização de imóveis informais pode ser veiculada por meio de mecanismos tributários menos onerosos, de forma com que se incuta um comportamento voluntário para sua persecução. Não se limitando ao aspecto dogmático típico dos trabalhos jurídicos, este escrito tentará trazer consigo um sucinto conjunto de propostas para a concretização do direito de laje através do viés fiscal.
No que toca ao ITBI, não se notam maiores complexidades práticas (ao menos inicialmente) quanto à instituição da laje. Incidindo sobre transmissão inter vivos a título oneroso de bens imóveis, de direitos a eles relacionados (exceto os de garantia) e sobre cessão de direitos de aquisição (CRFB, art. 156, II), o Imposto em questão ganha incidência quando da instituição (onerosa) do direito de laje, pois se trata de um direito real imobiliário sobre coisa alheia. Aqui, em tese, ter-se-á incidência do ITBI na disposição onerosa que o titular do direito de laje fizer a terceiros ou ao titular da construção-base, bem como nas relacionadas à sobrelaje (novo direito de laje instituído sobre uma laje superior previamente existente, na forma do art. 1.510-A, §6º do Código Civil).
Os casos acima atraem a incidência do ITBI dentro da segunda parte da redação do inciso II do art. 156 da Constituição republicana (transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia. [...]). Ocorrendo com o devido registro no Cartório de Registro de Imóveis competente, o fato gerador grifado se configura no momento em que o proprietário do imóvel se despede da plenitude de algum dos atributos inerentes à propriedade e, com esses atributos, constrói novo direito real e o transfere onerosamente a terceiro[viii].
Aqui, uma questão de maior nota que no momento surge está nos casos em que o titular da laje transfere referido direito ao titular da construção-base. Nestes casos, quando da elaboração de suas respectivas leis tributárias, é recomendável aos Municípios que estabeleçam cálculo distinto em tais transações, pois, se os contribuintes envolvidos já pagaram ITBI num primeiro momento, cobrar referido imposto novamente numa transmissão envolvendo as mesmas partes pode terminar criando uma hipótese de bis in idem.
No caso do parágrafo anterior, uma estratégia para evitar maiores divergências ou percalços práticos está na verificação, por parte dos Municípios, da finalidade que será dada pelo titular da construção-base à laje anteriormente instituída em seu imóvel e que regressou ao seu poder: um uso a título próprio ou direto (ou seja, uma laje transmitida ao titular da construção-base para este mesmo utiliza-la para moradia ou afins) pode caracterizar hipótese de não incidência (isenção) ou, ao menos, tributação com alíquota menor, a exemplo do que acontece com as leis municipais que, em geral, estabelecem isenção ou tributação menor para os casos de usufruto em imóveis. Vide os casos dos municípios de São Paulo[ix], São Bernardo do Campo[x] e São José dos Campos[xi].
Ainda sobre o aspecto quantitativo do ITBI nos casos que envolvem o direito real de laje, é necessário lembrar que o intuito do legislador foi trazer para a regularidade conjuntos de moradias informais muitas vezes formadas por pessoas de baixa renda, sendo o novo direito real a ponte para que isso se realize. Por tal razão, uma proposta para os Municípios será a especial atenção para a situação concreta encontrada em seus respectivos territórios e, assim, buscar um meio menos oneroso para a instituição da laje.
Para tanto, com a sensibilidade necessária para as situações urbanísticas das moradias informais, é recomendável que os Municípios tributantes, ao estabelecerem suas respectivas alterações de legislação tributária para encobrir o direito real de laje, estabeleça alíquotas distintas e atrativas para os supostos contribuintes envolvidos na matéria.
Nesta situação, embora se reconheça ser o ITBI tributo essencialmente fiscal, a positivação do direito real de laje pode ter dado abertura para que tal imposto passe a ter uma faceta extrafiscal: visando o direito real de laje regularizar a situação das moradias de pessoas de baixa renda (não exclusivamente, mas preponderantemente), um sistema tributário menos oneroso pode ser um instrumento para incutir nos contribuintes o comportamento buscado pelo legislador civil, atraindo-os a buscar o devido registro de suas relações jurídicas junto ao registro imobiliário.
Aqui, outra proposta para os Municípios está, portanto, no estabelecimento de critérios mais atrativos para que os contribuintes busquem a regularização urbana voluntariamente, sendo a motivação focada no aspecto quantitativo do tributo em estudo. Dessa forma, o intento do legislador será atingido.
Quanto ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), em tese, tem-se que referido imposto não incidirá sobre a titularidade do direito real de laje, tendo em vista que o exercício de outro direito real imobiliário que não seja a propriedade não é apto a atrair o fato gerador do IPTU.
Segundo a Constituição Federal[xii] e o Código Tributário Nacional[xiii], o fato gerador do IPTU é a propriedade, domínio útil ou posse (essa com animus domini, como o Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de salientar[xiv]) de bem imóvel localizado em área urbana. Da forma como o Código Civil apresentou o direito de laje, sua titularidade não tem o condão de conceder ao seu titular fração ideal da construção-base. Em sentido menos técnico e mais didático, significa dizer que o titular do direito de laje não é condômino ou coproprietário do imóvel sobre o qual a laje foi instituída.
Com tal disposição feita pelo Código Civil (mais especificamente seu art. 1.510-A, §4º), embora o titular do direito real de laje exerça posse sobre a parcela imobiliária sobre a qual a laje foi consagrada, e ainda que se reconheça seu intuito de estabilidade perante o tempo, referida posse não será adjetivada com o caráter animus domini ou ad usucapionem (tal possibilidade ou não, de cunho mais complexo, escapa da intenção do presente trabalho), o que, nesse sentido, afasta de vez qualquer possibilidade de , a priori, o titular do direito real de laje ser considerado como contribuinte de IPTU.
Todavia, isso não significa dizer que o IPTU será afastado em todos os casos onde o direito real de laje estiver envolvido pois, mesmo que se admita que o titular do direito real de laje não é um contribuinte de IPTU num primeiro momento, se admite, por técnica tributária, que seja classificado como responsável tributário. Explique-se.
Como previsto no Código Tributário Nacional[xv], o responsável tributário é o sujeito de direitos que, sem ostentar o status de contribuinte, foi eleito pela lei para o cumprimento dos ônus (pecuniários ou não) derivados da incidência tributária. Significa dizer que os Municípios estão habilitados para, em suas legislações tributárias, eleger os titulares do direito real de laje como responsáveis pelo pagamento do imposto incidente sobre a construção-base.
E é comum que as leis municipais qualifiquem os titulares de direitos reais imobiliários que não sejam proprietários como responsáveis pelo IPTU. Como exemplo, cite-se o que dispõe a Lei Complementar nº 319, de 23 de maio de 2007 do Município de São José dos Campos que, para o presente caso, será tida como modelo para a situação em estudo:
Art. 7º - São solidariamente responsáveis pelo pagamento do Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana: o co-proprietário; o compromissário comprador; o superficiário; o titular do direito de usufruto, uso, enfiteuse ou fideicomisso; os cessionários; e os sujeitos de permissão, concessão e de concessão ou permissão de direito real de uso, ainda que de imóvel pertencente à União, ao Estado, ao Município, ou a qualquer pessoa isenta do imposto ou a ele imune.
Parágrafo Único - Aplica-se o disposto no "caput" deste artigo, sem prejuízo das regras prescritas na Seção II, do Capítulo IV e V, do Título II, do Código Tributário Nacional - Lei Nacional nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
Perceba-se que o mecanismo dado pelo dispositivo supra permite que diversos titulares de outros direitos reais que não a propriedade possam ser reconhecidos como responsáveis pelo adimplemento de IPTU que, em tese, é de atribuição primária do proprietário do imóvel. Tal responsabilidade é de caráter solidário, na forma como trazida pelo art. 124 do Código Tributário Nacional[xvi]. Embora com fórmulas mais elásticas, muitos outros Municípios aplicam mecanismo semelhante ao exposto em linhas supra, tais como Guarulhos[xvii] e São Paulo[xviii].
Como já apresentado, a responsabilidade dos titulares do direito real de laje em casos de IPTU poderá ser classificada como solidária. Como aqui utilizamos o termo “responsabilidade solidária”, algumas notas devem ser tomadas para que os Municípios tomem as devidas cautelas para tal estratégia de tributação.
Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a atribuição de responsabilidade, derivada da lei, não deve ser arbitrária. Significa dizer que o legislador municipal não está livre para simplesmente distribuir responsabilidades a qualquer pessoa sem que isso não possua nenhuma relação com o fato tributável. Significa dizer, pois, que as pessoas que serão classificadas como responsáveis para fins tributários devem possuir algum tipo de ligação com o fato tributável ou com o contribuinte do imposto que, no campo da lógica, possa ser justificado.
A dita ligação lógica que deve existir nos fatos característicos eleitos pelo legislador municipal deve, antes de tudo, pautar-se também no princípio da proporcionalidade: deve possuir uma justificativa plausível na ligação dos sujeitos e dos fatos para a finalidade essencial da legislação, que é a de atribuir sujeição passiva idônea a determinados sujeitos sem que isso incorra em excessos, incoerências e inaplicabilidades práticas.
Em exercício mental básico, perceber-se-á que a eleição legal de um responsável tributário é coerente ou não quando se analisa, no caso concreto, se o sujeito escolhido possui algum tipo de vínculo, ainda que indireto, com o fato gerador, independentemente de este ter ocorrido antes ou após a dita escola. Como exemplo, não se nega que um distribuidor de mercadorias, fazendo parte de uma cadeia produtiva, tenha ligação com a tributação incidente sobre a circulação de mercadorias praticada anteriormente ou que ainda será realizada dentro de tal elo.
Em segundo lugar, e complementando a situação anterior, percebe-se que o art. 124 do CTN traz duas hipóteses para o reconhecimento da solidariedade tributária: a) a designação legal e b) os casos em que os nomeados como responsáveis tenham interesse no fato gerador. Neste caso, ainda que o apelo à lógica persista, também é possível encaixar o titular do direito de laje como responsável solidário com base no interesse no fato tributável pelo fato de, como já exposto no tópico anterior deste escrito, o direito real de laje possuir a anterior propriedade imobiliária como um pressuposto para a sua existência ( a laje demanda que um sujeito possua prévia propriedade de bem imóvel). Logo, haverá, para o titular do direito de laje, uma demanda pela existência do fato gerador do IPTU, que é a propriedade da construção-base.
Além do mecanismo da responsabilidade tributária mencionada nas linhas acima, também é possível, aqui, enxergar mais uma manifestação da matriz extrafiscal do IPTU, que pode (e deve) ser levada em conta pelos Municípios quando do planejamento de suas atualizações de legislação tributária.
Como já apresentado anteriormente, o intuito do direito real de laje foi o de levar edificações informais para a regularização. Dessa forma, assim como trabalhado para o ITBI, uma proposta válida para o caso do IPTU está no estabelecimento, pelos Municípios, de áreas economicamente desfavorecidas onde potencialmente possa existir uma relevante demanda pela instituição do direito real de laje em favor de seus moradores e, ali, como instrumento de incentivo à regularização, estabelecer alíquotas e bases de cálculo menos onerosas para os titulares de imóveis que, sobre suas construções-bases, estabelecer direito real de laje, seja por isenção ou por benefícios tributários diversos que traduzam motivação à regularização registral voluntária.
Dando fechamento ao presente tópico, percebe-se que as propostas para ambos os impostos giram em dois núcleos: indução de um comportamento territorial por intermédio da tributação e planejamento integrado com outros mecanismos de ordem urbanística.
No primeiro núcleo, a imputação de alíquotas e bases de cálculo mais atrativas aos fatos geradores envolvendo o direito real de laje incute nos sujeitos interessados a ideia de que a formalização do mesmo por via registral não é tão onerosa quanto se pensava, fazendo com que busquem voluntariamente a regularização de seus imóveis. Tal ideia casa com a noção de função social do direito real de laje, pois, se o intuito deste é buscar a regularização fundiária, isso pode ser feito voluntariamente pelos envolvidos com o estabelecimento de tributação com aspecto quantitativo menos oneroso que a generalidade dos fatos imponíveis.
Já o segundo núcleo, por sua vez, complementa o primeiro. Como trabalhado alhures, a laje, mesmo antes de sua classificação jurídica no bojo do Código Civil, já era há muito tempo exercida informalmente, especialmente nos agregados urbanos mais pobres das cidades. Com isso, para um idôneo comportamento territorial, os Municípios devem, antes de lançar mão dos instrumentos tributários incentivadores mencionados anteriormente, analisar suas divisões populacional e territorial e, com isso, identificar as regiões que, agravadas com o status de periferia e com potencial demanda de regularização das áreas já caracterizadas como laje, estabeleçam para tais regiões os mecanismos de incentivo tributário expostos em linhas supra.
Para a consecução do objetivo mencionado no parágrafo anterior, devem os Municípios, antes de lançar mão de instrumentos fiscais, verificar seus instrumentos urbanísticos em vigor (Plano Diretor, Leis de Uso e Ocupação do Solo e de Zoneamento, leis ambientais e afins) para, com isso, ter uma clara noção de quais são as áreas em que devem agir sob o viés tributário. Com esse “mapeamento tributário”, os Municípios poderão elaborar planos de ação para a viabilização da indução de comportamento aos contribuintes e responsáveis e, com isso, terminando até mesmo por viabilizar outras políticas públicas.
IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feito o estudo básico sobre o direito de laje, a conclusão do presente trabalho não pode escapar da ideia de que o “novo” instituto causará uma abrupta mudança de cultura na sociedade urbana brasileira, especialmente por conta da busca pela regularização do crônico déficit imobiliário e pela relativa sensibilização legislativa à sua concretização.
Da filosofia do instituto, também ficou claro que os Municípios (e o Distrito Federal, dada sua natureza sui generis) terão papel primordial para a aplicação prática do direito de laje, devendo estabelecer mecanismos para que o fim social do novo mecanismo seja atingido através da facilitação de procedimentos e da inovação de tratamento.
Na esfera tributária, foi perceptível que as maiores complicações práticas serão advindas do que as Fazendas Públicas municipais (e distrital) entenderão sobre o que virá a ser responsabilidade tributária no campo do IPTU. Aqui, além da razoabilidade, foram trabalhados aspectos básicos que poderão servir de norte para uma idônea compreensão do que vem a ser “responsável” no campo do direito real de laje. Quanto ao ITBI, divagações sobre a influência no comportamento dos contribuintes através de um tributo com aspecto quantitativo mais atrativo foi o foco da questão.
Concluindo, brevemente, pode-se dizer que a inovação trazida ao Código Civil demandará novos mecanismos de tratamento tributário para, concomitantemente, permitir uma efetiva arrecadação tributária e facilitar o acesso à moradia digna por parte dos cidadãos. Aqui, não se diz arrecadação efetiva sob o viés quantitativo mas, sim, qualitativo, obedecendo aos limites constitucionais e principiológicos além da busca pelo comportamento territorial devido de regularização.
Como propostas para a esfera municipal, o presente trabalho abordou a) para o ITBI, a abertura de uma veia extrafiscal para sua utilização, podendo os Municípios estabelecer bases de cálculo e alíquotas menos onerosas para os atos jurídicos que envolverem o direito real de laje e b) para o IPTU, além do reconhecimento da responsabilidade tributária para os titulares do direito real de laje, se atribua a determinadas áreas menos favorecidas economicamente uma base de cálculo distinta para os imóveis em que houver laje instituída, servindo isso, também com caráter extrafiscal, como incentivo para a busca, pelos contribuintes e demais sujeitos envolvidos, de regularização de seus imóveis.
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[i] ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. O direito real de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-nao-direito-real-direito-superficie>.
[ii] LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. 11 ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2017. pp. 1515-1516.
[iii] ARRUDA, Sande Nascimento de. Direito real de laje: um instrumento de inclusão urbana e de reconhecimento ao direito humano a moradia. Disponível em < http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=19628&revista_caderno=7>
[iv] SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 7 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. pp. 62-63.
[v] LOUREIRO, Francisco Eduardo. Op cit.
[vi] NETO, Sebastião de Assis; JESUS, Marcelo de; e MELO, Maria Izabel. Manual de Direito Civil. 6 ed. rev, atual. e ampl. Salvador: JusPodium, 2017. pp. 1282-1283.
[vii] Código Tributário Nacional, art. 116: Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:
[...]
II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
[viii] MINARDI, Josiane. Manual de Direito Tributário. 5 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodium, 2018. p. 1300.
[ix] Lei Municipal nº 11.154, de 30 de dezembro de 1991, art. 9º.
[x] Lei Municipal nº 3.317, de 21 de abril de 1989, art. 11.
[xi] Lei Complementar Municipal nº 383, de 07 de janeiro de 2009, art. 7º.
[xii] Art. 156, I.
[xiii] Art. 32, caput.
[xiv] AgRg no AREsp nº 349.019/SP. Rel. Min. Herman Benjamin. 2ª Turma. Julgado em 19/09/2013.
[xv] Art. 121, inciso II.
[xvi] Art. 124. São solidariamente obrigadas:
I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
II - as pessoas expressamente designadas por lei.
Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.
[xvii] Lei Municipal nº 2.210, de 27 de dezembro de 1977, art. 11.
[xviii] Decreto Municipal nº 58.420, de 14 de setembro de 2018, art. 11.
PEIXOTO, André Ricardo. Ensaio sobre Direito de Laje e Impostos Imobiliários Municipais - Repercussões, Hipóteses e Propostas. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar. 2019. Disponivel em: . Acesso em: 07 abr. 2019.
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