sexta-feira, 8 de setembro de 2017

QUITAÇÃO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM EFEITOS LIBERATÓRIOS DE TRIBUTOS MUNICIPAIS


De há muito se discute a questão da responsabilidade do compromissário comprador, cujo compromisso de compra e venda esteja quitado, acerca dos pagamentos do IPTU e demais obrigações “propter rem”.

A questão é analisada pela doutrina e pela jurisprudência à luz não só do direito tributário, mas também do direito civil, notadamente o direito das coisas.

Não se pode perder de vista que o fato gerador do IPTU é a “a propriedade, o domínio útil ou a posse do bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município”, bem como define como contribuinte “o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”.

No caso específico do compromisso de compra e venda quitado, principalmente nos loteamentos populares, muitos adquirentes não procuram os vendedores para a formalização da transmissão da propriedade, seja por falta de recursos financeiros, falta de informação, comodismo ou qualquer outro motivo. Enfim, perante o Cartório de Registro de Imóveis, a propriedade permanece em nome do vendedor.

A redação do artigo 1245 do Código Civil [i] traz a ideia de que o promitente vendedor continua sendo dono da coisa enquanto não ocorrer a lavratura da escritura definitiva e seu respectivo registro, já que a titularidade do domínio permanece inalterada.

É sabido que o registro tem diversas funções, além da segurança jurídica que atribui à propriedade, destaca-se a transparência decorrente da publicidade que traz consigo a eficácia erga omnes. Partindo nesta senda poder-se-ia afirmar que a Prefeitura não tem como saber que o imóvel foi compromissado à venda a um terceiro que, inclusive, é o possuidor do imóvel.

Se o compromisso de compra e venda foi registrado não há que se falar em ignorância por parte do fisco municipal.

Não se olvida que o STJ editou a Súmula 399, que dispõe: “Cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do IPTU”.

A situação se mostra injusta quando se aprofunda a análise do contrato, na medida em que um compromisso de compra e venda quitado faz com que o vendedor não tenha mais nenhum tipo de relação com a coisa, tendo apenas o dever de outorgar a escritura definitiva ao comprador, ficando sujeito até mesmo a uma ação de adjudicação compulsória.

A “propriedade” remanesce por uma questão iminentemente formal, já que o promitente vendedor não dispõe mais dos poderes inerentes à propriedade previstos no artigo 1228 do Código Civil [ii], já que não pode usar, tampouco fruir, pois entregou a posse ao comprador, da mesma forma não poderá dispor, já que praticou ato de disposição com o compromissário comprador (que já cumpriu com a sua obrigação quanto ao preço), derivando daí a sua falta de interesse de agir no jus persequendi, não podendo reaver a coisa que não lhe pertence mais.

Em outra obrigação de natureza propter rem, no caso, as quotas condominiais, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento jurisprudencial vinculante, com as seguintes teses: 

“a) O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador.” [iii]

Seguindo a orientação jurisprudencial acima e transmutando-a para a questão da cobrança do IPTU, se o promitente vendedor comunica à Prefeitura a venda e sua respectiva quitação, ainda que por compromisso de compra e venda não registrado, embora não tenha ocorrido formalmente a transmissão da propriedade, a responsabilidade fiscal pelo pagamento do imposto deve ser atribuída exclusivamente ao adquirente.

Com o inadimplemento do tributo por parte do comprador, tanto a inscrição na dívida ativa, quanto a consequente execução fiscal, serão direcionadas para o vendedor, que já não dispõe mais da coisa, conforme mencionado anteriormente. É sabido que não se pode falar em responsabilidade patrimonial com a excussão de bens de terceiros.

O que nos parece ser mais justo é que o próprio imóvel que originou a dívida sirva de garantia para a execução, bem como seja penhorado e levado aos atos de alienação em caso de persistência no inadimplemento, sem que se atinja o patrimônio do vendedor, que não pode obter qualquer benefício com aquela coisa que não lhe pertence mais.

De acordo com a ordem de preferência para a penhora de bens prevista no artigo 11 da Lei 6.830/80 [iv] os imóveis estão em quarto lugar na preferência legal, contudo, não se trata de uma situação de uma mera inadimplência, mas sim de uma inadimplência dependente de um ato de terceiro.

O leitor mais atento pode estar pensando neste momento que este pensamento se esvairia com a incidência do artigo 123 do Código Tributário Nacional [v], já que as convenções particulares não são oponíveis ao fisco.

Pois bem, o §6º, do art. 26, da Lei 6766/79 [vi], estabelece que o termo de quitação emitido pelo proprietário do imóvel equipara-se à escritura pública eis que, acompanhando o contrato, vale como título para registro da propriedade do lote adquirido.

A regra aqui mencionada tem sua aplicabilidade restrita, na medida em que o promitente vendedor esbarra no problema financeiro compromissário comprador que, mesmo de posse de um termo de quitação, deixa de leva-lo à registro para a transmissão definitiva da propriedade.

Aplicando o dispositivo mencionado da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (6766/79), o Superior Tribunal de Justiça deu validade à regra especial de transmissão de propriedade em uma ação de inventário, determinando o arrolamento dos direitos decorrentes do compromisso de compra e venda, mesmo que não registrados, in verbis:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. DIREITO REAL QUANDO REGISTRADO. ART. 1.225 DO CÓDIGO CIVIL. ARROLAMENTO DE DIREITOS. INVENTÁRIO. ART. 993, INCISO IV, ALÍNEA “G”, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. (…) 2. A promessa de compra e venda identificada como direito real ocorre quando o instrumento público ou particular é registrado no cartório de registro de imóveis, o que não significa que a ausência do registro retire a validade do contrato. 3. A gradação do instituto da promessa de compra e venda fica explícita no art. 25 da Lei n. 6.766/1979, que prevê serem irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuem direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, conferem direito real oponível a terceiros. 4. Portanto, no caso concreto, parece lógico admitir a inclusão dos direitos oriundos do contrato de promessa de compra e venda de lote em inventário, ainda que sem registro imobiliário. Na verdade, é facultado ao promitente comprador adjudicar compulsoriamente imóvel objeto de contrato de promessa de compra e venda não registrado, e a Lei n. 6.766/1979 admite a transmissão de propriedade de lote tão somente em decorrência de averbação da quitação do contrato preliminar, independentemente de celebração de contrato definitivo, por isso que deve ser inventariado o direito daí decorrente. 5. O compromisso de compra e venda de imóvel é suscetível de apreciação econômica e transmissível a título inter vivos ou causa mortis, independentemente de registro, porquanto o escopo deste é primordialmente resguardar o contratante em face de terceiros que almejem sobre o imóvel em questão direito incompatível com a sua pretensão aquisitiva, o que não é o caso dos autos. 
6. Recurso especial provido.” [vii] 

A regra especial contida no §6º, do art. 26, da Lei 6766/79 deixa claro que o termo de quitação é o título hábil à transmissão da propriedade (acompanhado do compromisso de compra e venda, que pode ser registrado a qualquer momento) e, portanto, com a sua emissão, nenhuma outra obrigação pode ser exigida do promitente vendedor para a transferência definitiva junto ao Cartório de Registro de Imóveis.

Diversos são os precedentes do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [viii] acerca da ilegitimidade do promitente vendedor, atribuindo a responsabilidade exclusiva ao compromissário comprador que quitou o contrato e não providenciou a transmissão definitiva da propriedade.

De toda forma, a Lei 13.465/17, em seu artigo 7º, de forma inovadora e especial, acrescentou o item 32, ao inciso II, do artigo 167, da Lei 6.015/73 [ix], dando nova natureza jurídica ao termo de quitação, não lhe atribuindo o condão de transferir o domínio, mas tão somente de exonerar o promitente vendedor da responsabilidade sobre os tributos municipais incidentes sobre o imóvel perante o Município.

Diante da lei nova e especial, parece-nos que a súmula 399 do STJ deverá ser revista, já que o item 32, ao inciso II, do artigo 167, da Lei 6.015/73 é muito direto sobre o assunto, excluindo qualquer imputação ao promitente vendedor na condição de responsável tributário pelo IPTU demais tributos municipais incidentes sobre o imóvel, como a contribuição de melhorias.

Assim, caberá ao promitente vendedor levar ao registro de imóveis para averbação o termo de quitação e, posteriormente, comunicar a Prefeitura competente, com cópia do aludido termo de quitação, para se ver livre da eterna cobrança de tributos em razão da falta de alteração do cadastro municipal.

Por fim, a pergunta que fica: Se a averbação da quitação para os fins previstos no item 32, ao inciso II, do artigo 167, da Lei 6.015/73 é exigida para que tenha eficácia erga omnes para que o fisco municipal não alegue ignorância, a comunicação à Prefeitura da quitação com cópia do termo expedido pelo vendedor já é suficiente para exonerá-lo da responsabilidade? Inclinamo-nos a responder afirmativamente.

Se a finalidade da lei é regularizar o sujeito passivo tributário por conta de um único fato, que é a quitação do contrato, a exigência do registro seria para efetivar o princípio da publicidade e da eficácia contra todos, inclusive contra a Prefeitura local, logo, a comunicação que demonstre ciência inequívoca do fisco municipal nos parece suficiente para os fins decorrentes da averbação, já que a averbação do termo de quitação também não modificaria a propriedade do imóvel.

NOTAS

[i] Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

§ 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

[ii] Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

[iii] REsp 1345331/RS, relatoria do Eminente Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 08/04/2015 (Recurso Repetitivo)

[iv] Art. 11 – A penhora ou arresto de bens obedecerá à seguinte ordem:

I – dinheiro;

II – título da dívida pública, bem como título de crédito, que tenham cotação em bolsa;

III – pedras e metais preciosos;

IV – imóveis;

(…)

[v] Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.

[vi] “Art. 26. …

§ 6º Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas de cessão valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido, quando acompanhados da respectiva prova de quitação”.

[vii] REsp 1.185.383 – MG, relatoria do Eminente Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turna, julgado em 04/08/2014.

[viii] Agravo de Instrumento nº 2000879-85.2014.8.26.0000, Rel. Des. João Alberto Pezarini, j. 13/03/14, p.m.; Agravo de Instrumento nº 2062340-58.2014.8.26.0000, Rel. Des. João Alberto Pezarini, j. 18/08/14, v.u.; .; Agravo de Instrumento nº 2034621-04.2014.8.26.0000, Rel. Des. Wanderley José Federighi, j. 08/05/14, v.u..; Agravo de Instrumento nº 2048720-13.2013.8.26.0000, Rel. Des. Henrique Harris Júnior, j. 12/12/13, v.u.; .; Agravo de Instrumento nº 2015474-26.2013.8.26.0000, Rel. Des. João Alberto Pezarini, j. 28/11/13, v.u.; .; Agravo de Instrumento nº 2044350-88.2013.8.26.0000, Rel. Des. Geraldo Xavier, j. 28/04/16, v.u.; .; Agravo de Instrumento nº 0147112-22.2013.8.26.0000, Rel. Des. Geraldo Xavier, j. 13/03/14, v.u.; .; Agravo de Instrumento nº 0136122-69.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Galizia, j. 27/03/14, v.u.; .; Agravo de Instrumento nº 0136118-32.2013.8.26.0000, Rel. Des. João Alberto Pezarini, j. 31/10/13, v.u.;

[ix] 32. do termo de quitação de contrato de compromisso de compra e venda registrado e do termo de quitação dos instrumentos públicos ou privados oriundos da implantação de empreendimentos ou de processo de regularização fundiária, firmado pelo empreendedor proprietário de imóvel ou pelo promotor do empreendimento ou da regularização fundiária objeto de loteamento, desmembramento, condomínio de qualquer modalidade ou de regularização fundiária, exclusivamente para fins de exoneração da sua responsabilidade sobre tributos municipais incidentes sobre o imóvel perante o Município, não implicando transferência de domínio ao compromissário comprador ou ao beneficiário da regularização.”

Wellington Ferreira de Amorim - Graduado em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul (2001). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2004). Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES (2014).
Fonte: Artigos Jus Navigandi

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