1. Introdução
A multiplicidade de agentes e suas especificidades torna o mercado imobiliário um campo fértil para a ocorrência de conflitos, sobretudo dado à dinâmica dos fatos que ocorrem nas diversas relações contratuais, normalmente exigindo um nível de detalhamento que envolve questões técnicas e específicas de diversos segmentos, encontrando-se presente na vida da esmagadora maioria dos brasileiros, de modo que responde por algo em torno de 9% do PIB de nosso país.
Nesse cenário, estas relações são reguladas por diversos institutos que envolvem obrigações dinâmicas e peculiares, destacando-se como principal característica sua complexidade, uma vez que buscam regular múltiplos aspectos, participantes e fatos, versando sobre questões técnicas ou particulares, na maioria das vezes de trato sucessivo, pois sua satisfação não ocorre em momento único, ao contrário, sua duração se estende no tempo. Por esta razão, na grande maioria das vezes são incompletos, pois não conseguem abranger todas as ocorrências e contingências.
Sendo assim, no decorrer da execução desses instrumentos é natural o surgimento de controvérsias pelos mais diversos fatores, mas que podem ser sintetizados na ocorrência de serviços adicionais não previstos inicialmente: nas alterações de escopo contratual por interesse do contratante; pela imprevisão; nos casos fortuitos ou de força maior; no descumprimento das obrigações contratuais e nas alterações na legislação ou na política econômica vigente.
Surgida a controvérsia é natural que se pretenda solucioná-la de forma harmoniosa, entretanto, por envolverem questões técnicas que exigem aprofundamento do tema em discussão, é usual que muitos desses conflitos sejam encaminhados para a via judicial onde se torna indispensável, na maior parte dessas ações, a realização da prova pericial em que o juiz é auxiliado pela intervenção de um especialista para decidir a disputa.
Sem adentrar nas questões que envolvem a crescente judicialização dos conflitos no país, é imperativo aos agentes de mercado entender os mecanismos que regulam a realização das perícias à luz do CPC (Código de Processo Civil), especialmente após o surgimento da versão desse diploma legal que entrou em vigor no ano de 2016, introduzindo diversas alterações na condução desses procedimentos.
2. Histórico da atividade pericial no Brasil
Na década de 1920 surgiram as primeiras atividades periciais que se tem notícia, por meio de trabalhos de engenheiros paulistas focados na área de avaliações, sucedendo a mais antiga manifestação sobre o tema, ocorrida em 1918, de autoria do professor e engenheiro Vitor da Silva Freire.
Na década de 1930, com as grandes desapropriações na cidade de São Paulo, tendo em vista o intenso processo de reurbanização, com necessárias intervenções para o desenvolvimento da metrópole, houve um aumento da necessidade de realização de perícias.
Os livros “Avaliação de Terrenos” e “Avaliação de Imóveis”, ambos de autoria do Engenheiro Luiz Carlos Berrini, pioneiros na bibliografia técnica da matéria no país, foram lançados na década de 1940, trazendo grande contribuição para o estudo do tema.
A década de 1950 foi marcada pelo período de aglutinação nas entidades de classe com a fundação do IBAPE (Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia), além da origem do primeiro projeto de Norma da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), o P-NB-74, e a realização da IIIConvenção Panamericana, em 1954, coincidindo com o IV Centenário da Cidade de São Paulo.
Entretanto, foi apenas na década de 1960 que a perícia ganhou impulso como especialização, principalmente pela segmentação profissional, consequência direta do crescimento da indústria da construção civil, que naturalmente aumenta a demanda por perícias.
Na década de 1970 foi lançado o famoso “livro amarelo” do IBAPE/SP, bem como ocorreu o I COBREAP (Congresso Brasileiro de Engenharia de Avaliações e Perícias) na cidade de São Paulo, que caminha para sua 20ª edição no ano de 2019, na cidade de Salvador. Ainda nesta década, no ano de 1977, surgiu a Norma Brasileira para Avaliação de Imóveis Urbanos, NB- 502/77, da ABNT.
A década de 1980 foi marcada pela utilização da informática, que passou a fazer parte da vida dos profissionais avaliadores e peritos, além de surgirem as primeiras experiências como disciplina curricular.
Já na década de 1990 a perícia se incorpora definitivamente à vida acadêmica, com a ampliação das disciplinas curriculares e o início dos cursos de especialização em nível de pós-graduação.
Por fim, na década de 2010, o crescimento da arbitragem fez com que a perícia entrasse definitivamente nas resoluções extrajudiciais de conflitos, obrigando os peritos a uma quebra de paradigma quanto aos procedimentos, que não se vinculam aos ditames do CPC.
3. A nova lei processual civil brasileira
O novo Código de Processo Civil brasileiro, sancionado em 16 de março de 2015, publicado como Lei 13.105/15, passou a vigorar em 18 de março de 2016, tendo como principal objetivo imprimir uma nova dinâmica nos procedimentos judiciais regidos por este instrumento legal, em função de uma nova realidade no país, resultante da evolução nas relações sociais registradas ao longo da vigência do texto anterior, do início da década de 1970.
Um sinal marcante se encontra no incentivo aos métodos autocompositivos, notadamente a conciliação e mediação, cujo estímulo passa a ser uma obrigação dos operadores do direito, não só na fase inicial, uma vez que em todas as ações que tratem de direitos disponíveis deverá ocorrer uma audiência prévia, mas também no curso do processo judicial.
Outra mudança significativa foi a introdução do negócio jurídico processual, que compreende uma flexibilização das rígidas normas processuais mediante acordo entre as partes, que poderão estabelecer regras próprias para um processo específico. Do ponto de vista operacional, ocorreu uma alteração que atendeu a uma antiga reivindicação referente à contagem dos prazos processuais, que anteriormente ocorria em dias corridos e passam a ser contados em dias úteis, não mais computando os fins de semana e os feriados, o que alivia a carga de trabalho dos profissionais no cumprimento dos prazos.
Muitas outras alterações poderiam ser aqui analisadas, que simplificaram a defesa do réu, alteraram a ordem de julgamento dos processos, extinguiram e modularam recursos e prazos, criaram novas regras para os honorários de sucumbência e desconsideração da personalidade jurídica, mas iremos nos concentrar naquelas que impactaram diretamente a prova pericial, por repercutirem diretamente nas ações relacionadas ao mercado imobiliário.
Dos aspectos gerais, a alteração mais importante na atividade pericial se refere às causas de impedimento e suspeição do juiz, que também são aplicadas ao perito, cujo texto traz uma ampliação das hipóteses de ocorrência, devendo ser observadas questões novas, inclusive relativas aos advogados, e não só às partes.
4. A prova pericial no Código de Processo Civil de 2015
Ao longo da vigência da lei processual de 1973, que ficou conhecida como “Código Buzaid”, em referência ao então Ministro da Justiça, os mecanismos de produção da prova pericial sofreram algumas mudanças. A mais significativa delas ocorreu no ano de 1992, com a edição da Lei 8.455/92, que alterou substantivamente diversos aspectos de realização da perícia e da atuação dos profissionais deste segmento, notadamente nas funções de perito e assistente técnico.
Ao elaborar a reforma do nosso estatuto processual, tanto a comissão de juristas como o parlamento entenderam por absorver essa concepção, mantendo os artigos referentes à perícia quase que em sua totalidade e ampliando o espectro de novos entendimentos.
Do ponto de vista operacional, podemos dividir a perícia em quatro fases, seguindo uma lógica temporal, do início ao fim do procedimento, das quais faremos um breve relato seguindo as regras processuais vigentes:
Nomeação do perito, assistentes técnicos e quesitos
A nomeação do perito é o marco inicial da perícia, que está sujeita a eventuais questionamentos quanto a impedimento ou suspeição, seguida da formulação de quesitos e indicação de assistentes técnicos pelas partes, prosseguindo com a apresentação da proposta dos honorários e consequente recolhimento deste valor em conta judicial.
Elaboração do laudo pericial
Ao ser intimado para dar início à perícia, o perito deverá designar hora e local, comunicando previamente as diligências, podendo as partes oferecer quesitos suplementares e o perito solicitar prorrogação do prazo de entrega do laudo além de ter a prerrogativa de utilizar todos os meios para realizar seu trabalho.
Entrega do laudo e pareceres técnicos
A lei processual prevê a hipótese da perícia ser feita, em casos de menor complexidade, por meio da prova técnica simplificada, que consiste na apresentação oral pelo perito, sendo que o usual é que seja feita na forma escrita, mediante o protocolo de um laudo, que será seguido pela juntada dos pareceres dos assistentes técnicos.
Questões consequenciais da perícia
Após a entrega do laudo é comum a solicitação de esclarecimentos que abrangem questionamentos e pontos divergentes levantados, podendo ocorrer inspeção judicial e até uma nova perícia.
No que tange especificamente às alterações trazidas a partir da reforma da lei processual, que afetou diretamente a prova pericial, iremos relacionar a seguir aqueles pontos que se mostram mais relevantes, requerendo atenção especial daqueles que participam desses procedimentos:
Novas determinações na escolha do perito
O perito não é escolhido mais entre profissionais “de nível universitário”, mas entre os “legalmente habilitados”, não se restringindo mais às pessoas físicas. Assim, os tribunais deverão manter um cadastro específico, cuja formação será precedida de consulta pública, devendo as nomeações ocorrer de forma equitativa.
Criação da prova técnica simplificada
É uma nova denominação para a antiga inquirição do perito em audiência, agora com maior detalhamento de sua operacionalidade, como tentativa de simplificar a prova pericial em questões menos complexas.
Sistemática dos honorários periciais
A maior inovação atinge os casos de gratuidade, que passam a ser custeados pelo Estado, além de normatizar a possibilidade de o perito levantar 50% dos seus honorários no início, podendo o juiz aplicar sanção pecuniária nos casos de inconclusão ou deficiência do laudo.
Obrigatoriedade de comunicação das diligências periciais
Esta é uma alteração que pode trazer embaraços processuais, pois obriga a comunicação prévia aos assistentes técnicos de qualquer diligência, mediante comprovação nos autos.
Adoção da perícia consensual
Assim como ocorre com frequência nos processos arbitrais, o novo CPCpermite às partes escolher o perito por consenso, devendo o juiz acatar essa indicação, pois ela substitui aquela por perito nomeado pelo juiz.
Determinação de requisitos para o laudo pericial
Trata-se de uma significativa alteração, que determina requisitos para o laudo pericial, compreendendo a obrigatoriedade de exposição do objeto da perícia, análise técnica ou científica, indicação do método utilizado e resposta conclusiva a todos os quesitos, exigindo linguagem simples e coerência, não podendo o perito ultrapassar os limites de sua designação.
Alteração dos prazos processuais
Além da contagem em dias úteis, o prazo de formulação de quesitos e indicação de assistentes técnicos passou de 5 para 15 dias, assim como o prazo para a manifestação dos advogados e assistentes técnicos, após a entrega do laudo pericial, que passou a ser comum, de 15 dias.
5. Principais ocorrências de perícias no segmento imobiliário
Conforme abordado anteriormente, o mercado imobiliário possui características próprias, cujos conflitos compreendem um grau de especificidade com elevado componente técnico, o que exige a participação de profissionais com conhecimentos especializados, usualmente nas áreas da engenharia e arquitetura, também abrangendo outros setores de atuação.
De uma forma objetiva e simplificada, abordamos este tema subdividindo essas ocorrências em cinco grandes grupos, aos quais procuramos reunir as perícias mais comuns em ações que envolvem o segmento imobiliário, com a expectativa de abranger a grande maioria dos casos existentes:
Perícias avaliatórias
São aquelas requeridas em ações onde se torna necessário estabelecer cotações de um bem ou de direitos, envolvendo cálculo de valores locativos e indenizações, abrangendo o valor de venda do bem, cuja principal característica é do trabalho seguir as determinações da série NBR 14.653 (Norma Brasileira para Avaliação de Bens) da ABNT, sendo exemplos comuns as ações renovatórias e revisionais, no caso de aluguéis, desapropriações, para determinação do preço de venda, e ainda cálculo de reposição do valor de algum ativo imobilizado.
Perícias construtivas
Neste grupo encontram-se os trabalhos periciais que se relacionam às construções em suas diversas ocorrências, podendo compreender um trabalho de vistoria ou também avançar sobre aspectos específicos, como no caso de patologia das construções, colapso de edificação, questões arquitetônicas ou disputas sobre a propriedade, podendo estar atrelada à NBR 15.575 (Norma de Desempenho) e à NBR 12.721 (Avaliação de custos de construção para incorporação imobiliária e outras disposições para condomínios edilícios) da ABNT, cuja ocorrência se dá em ações de natureza indenizatória, obrigação de fazer ou não fazer, demolitória, nunciação de obra nova, dentre outras.
Perícias orçamentárias
Como o próprio nome sugere, envolvem questões em que o perito é nomeado para estabelecer valores de reposição, impacto financeiro em cronogramas de obras ou custos diversos decorrentes de ações executadas em edificações, sendo utilizadas em muitos casos a supracitada NBR 12.721 e a NBR 16.633 (Elaboração de Orçamento e Formação de Preço para Obras de Infraestrutura), ambos da ABNT, que se aplicam às ações que versam sobre indenizações, apuração de danos, recomposição de valores e também em execuções por arbitramento.
Perícias em questões de terra
Abrangem os trabalhos periciais exigidos nas ações que tratam de questões fundiárias urbanas e rurais. Essas ações envolvem exames documentais sobre propriedade imobiliária e usualmente se torna necessário um levantamento topográfico, como nas ações demarcatória, divisória, reivindicatória, possessória e usucapião, ao qual o perito deverá realizar levantamentos sobre a ocupação (posse) e sobre a delimitação (propriedade) dos imóveis.
Perícias financeiras
Essas perícias são aquelas que exigem cálculos financeiros, como nos casos de discussão de financiamentos habitacionais, ou exame da documentação envolvendo valores dispendidos em determinados contratos, como no caso de pleitos em obras diversas, ocorrendo usualmente em discussões que envolvam pagamentos sucessivos, discussões de natureza contábil ou prestação de contas.
6. Conclusão
Os operadores do direito, assim como os agentes do mercado, conhecem a importância da prova pericial para a resolução dos conflitos no setor imobiliário, cujas conclusões, na maioria das vezes, mostram-se determinantes para a formação da convicção do julgador, portanto, as modificações trazidas com o novo Código de Processo Civil devem ser aplicadas com a necessária conveniência nos casos concretos.
Começando pela escolha do perito, que deve possuir a necessária habilitação, torna-se relevante procurar o consenso na escolha de um nome que atenda ambas as partes, oportunidade criada pelo novo diploma legal, assim como, nos casos de menor complexidade, verificar a pertinência de requerer a prova técnica simplificada, sabendo utilizar os novos prazos, agora dilatados em relação ao CPC de 1973.
Uma atenção especial deve ser dada à obrigatoriedade de comunicação prévia das diligências realizadas pelo perito, as quais devem ser franqueadas ao assistente técnico, que deverá analisar com profundidade e detalhamento o laudo pericial, verificando se atendeu os requisitos de conteúdo ora detalhados no novo CPC.
Em breve análise, verifica-se as alterações que o texto da nova legislação processual civil brasileira trouxeram para a prova pericial, que têm impacto direto nas ações imobiliárias, sendo fundamental sua compreensão e aplicação nos casos concretos, em função de ser elemento determinante no resultado dos processos judiciais em curso.
7. Bibliografia:
MAIA NETO, Francisco. A prova pericial no novo processo civil e na arbitragem. 3. ed. Belo Horizonte: RTM, 2017. 204 p.
VILELA FARIA, Renato; FREITAS DE MORAES E CASTRO, Leonardo. Operações Imobiliárias : Estruturação e Tributação. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 1056 p.
Portal Brasil. Mercado imobiliário deve fechar 2014 com 9% do PIB. 2014. Disponível em http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2014/12/mercado-imobiliario-deve-fechar-2014-com-9-do-pib/. Acesso em 19 set. 2017.
MAIA NETO, Francisco. Boletim Técnico Btec - 2015/004. Abordagem: Alterações na prova pericial com o novo CPC. Ibape Nacional. Disponível em http://ibape-nacional.com.br/site/wp-content/uploads/2015/03/BTec-2015-004.pdf/. Acesso em 18 set. 2017.
Publicado originalmente por Revista Opinião Jurídica - ed. 5 - 2017 - Coordenada por José Horácio Cintra Gonçalves Pereira e Jaques Bushatsky.
Francisco Maia Neto - Graduado em Engenharia Civil e Direito pela UFMG; Pós-graduado em Engenharia Econômica pela Fundação Dom Cabral, onde é professor convidado; Membro da lista de árbitros de câmaras arbitrais em MG, SP, RJ, PR e DF; Autor de livros sobre perícias, arbitragem, construção e mercado imobiliário.
Fonte: Artigos JusBrasil
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