terça-feira, 11 de setembro de 2018

DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LEGITIMAÇÃO FUNDIÁRIA


Passado o primeiro ano de vigência da lei 13.465/17, que estabeleceu o novo marco regulatório em matéria de regularização fundiária, já é possível se fazer um balanço dos seus propósitos de flexibilização de procedimentos e redução dos entraves burocráticos que não puderam ser superados à luz da revogada lei 11.977/09. E o balanço, sem dúvidas, é positivo.

Entre as novidades da lei está o instituto da legitimação fundiária, cuja aplicação já é realidade em diversos municípios brasileiros, o que demonstra a sua aceitação pelos diversos entes envolvidos no processo de regularização fundiária e a praticidade em face de outros instrumentos que não vingaram, como a legitimação de posse e a concessão de direito real de uso.

Nos termos do art. 9º da lei 13.465/17, regularização fundiária urbana (Reurb) compreende o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. Por outro lado, núcleo urbano informal consolidado é definido pelo mesmo artigo como aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo município.

Constata-se, assim, que o princípio que rege a regularização fundiária é a identificação dos assentamentos urbanos informais, estejam eles em áreas públicas ou privadas, ou decorrentes de invasões ou de loteamentos irregulares, que mereçam a atenção do poder público e a solução de serem regularizados diante do fato de que estão consolidados e, por isso, se mostram como uma situação irreversível do ponto de vista social e urbano.

Dentro deste cenário, surgem diversos questionamentos quanto à Reurb de áreas públicas, especialmente diante da inalienabilidade e do interesse público que caracterizam o regimento jurídico destes bens.

Quanto à inalienabilidade, pondera-se que ela não é absoluta, salvo em relação àqueles bens insuscetíveis de valoração patrimonial por sua própria natureza, como os mares, os rios e as praias. Os demais podem perder o caráter de inalienáveis se também perderem a sua destinação pública, o que ocorre pela desafetação, que corresponde, na lição de José Cretella Júnior, como o “fato ou a manifestação de vontade do poder público mediante a qual o bem do domínio público é subtraído à dominialidade pública para ser incorporado ao domínio privado, do Estado ou do administrado”.1

Por tais razões, a regularização fundiária de bens públicos depende, em regra, de sua desafetação, de modo que, a priori, não é possível a regularização de bens de domínio público. É comum, portanto, que programas de regularização fundiária de áreas de domínio público – como por exemplo, aqueles que originalmente foram destinadas à construção de equipamentos públicos, tais como escolas e hospital, mas que terminaram sendo invadidas por particulares diante da inércia do poder público – tenham como um de seus primeiros passos a aprovação de lei de desafetação do bem.

Diante da inalienabilidade relativa, a regularização fundiária de áreas públicas é plenamente possível, inclusive quanto à utilização da legitimação fundiária. Todavia, em sendo o bem público afetado, a depender da sua finalidade, far-se-á necessária sua desafetação, o que será dispensado em se tratando de bem público dominial.

Feitas tais considerações, há de se enfrentar a constitucionalidade da legitimação fundiária de áreas públicas, eis que há quem defenda que tal instrumento constitui, burla à vedação constitucional à usucapião.

Conforme art. 23 da lei 13.465/17, a legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.

A utilização do instrumento é restrito, conforme § 1º, à Reurb de Interesse Social (Reurb-S) 2 e a concessão deve atender às seguintes condições: I - o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; II - o beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto; e III - em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido pelo poder público o interesse público de sua ocupação.

Por se tratar de forma originária da propriedade, prescreve ainda a lei (§ 2º) que por meio da legitimação fundiária, em qualquer das modalidades da Reurb, o ocupante adquire a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado.

Deixando clara a utilização em áreas de domínio público, o § 4º determina que na Reurb-S de imóveis públicos, a União, os estados, o distrito federal e os municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária.

A polêmica quanto à constitucionalidade da legitimação fundiária decorre do fato de que se trata de forma de aquisição originária da propriedade, nos termos acima descritos, de maneira que o instrumento se assemelha com o instituto da usucapião, a qual é vedada para bens públicos por expressa disposição constitucional. As semelhanças, todavia, se restringem à natureza jurídica da aquisição.

Inicialmente, deve ser ressaltado que somente haverá a utilização do instrumento por ato da discricionário da própria administração. Vale dizer, não se trata de um direito subjetivo invocado em face do ente público, nem mesmo há o que se falar em prescrição aquisitiva. Diferentemente, em havendo interesse público, o ente público decidirá pela alienação, levando em conta o interesse social do núcleo urbano consolidado e sua irreversibilidade sob os pontos de vista jurídico, ambiental, urbanístico e social.

E mesmo que se verifique o interesse público na Reurb, também estará inserida na discricionariedade administrativa a utilização da legitimação fundiária frente aos demais instrumentos, tais como a concessão de direito real de uso, a concessão de uso especial para fins de moradia e o direito de superfície. A legitimação fundiária é, portanto, uma alternativa ao ente público, dentro das diretrizes estabelecidas na sua política de regularização fundiária.

Por isso mesmo, o legislador restringiu o uso da legitimação fundiária aos núcleos urbanos informais comprovadamente existentes a data de 22 de dezembro de 2016, o que demonstra a preocupação de que o instrumento não represente uma carta branca para a alienação gratuita de áreas públicas, mas tão somente se preste à regularização fundiária de situações em que não exista outra opção mais adequada à solução da informalidade.

Ademais, merece destacar que a legitimação fundiária constitui instituto jurídico que não se confunde com a doação, por expressa disposição de lei federal. Trata-se, em verdade, de nova espécie de direito real, cuja reserva legal é privativa da União, nos termos do art. 22, inciso I, da Constituição Federal.3

Se, por um lado, o regime constitucional dos bens públicos consagra os princípios da inalienabilidade e do interesse público, por outro, a regularização fundiária deve ser entendida como integrante do âmbito de proteção do direito fundamental social à moradia, de modo que desconsiderá-la como direito fundamental equivale a afastar o estado brasileiro do cumprimento dos seus objetivos. Se a segurança na posse integra o que se entende por moradia digna, será inadequada qualquer ação estatal que considere o direito fundamental social à moradia com o mero direito a um teto.

O estabelecimento de uma política pública de regularização fundiária, ademais, somente se tornará viável com o estabelecimento de instrumentos que flexibilizem os procedimentos administrativos e registrais e rompam com antigos paradigmas que terminaram caducando em razão das transformações sociais e econômicas. Se antes a solução para invasões de áreas públicas era exclusivamente o traumático processo de reintegração e remoção compulsória, hoje a regularização fundiária justificada na irreversibilidade da consolidação se apresenta como a melhor alternativa.

Em conclusão, diante da colisão entre os referidos princípios constitucionais, quando se considera o quadro de informalidade urbana do País e os inquestionáveis benefícios da Reurb de núcleos urbanos consolidados, a legitimação fundiária é instrumento adequado para regularização fundiária de áreas núcleos urbanos consolidados em áreas de domínio público, de maneira que deve ser afastada qualquer discussão quanto à sua constitucionalidade.

Referências

1 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de domínio público. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 160-161.

2 Art. 13. A Reurb compreende duas modalidades:

I - Reurb de Interesse Social (Reurb-S) - regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal; e

II - Reurb de Interesse Específico (Reurb-E) - regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na hipótese de que trata o inciso I deste artigo.

3 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

Felipe Maciel P. Barros - Advogado e professor.
Fonte: Migalhas de Peso

Nenhum comentário:

Postar um comentário