Uma das inovações trazidas pela Lei 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, foi a alteração do art. 46 do Estatuto da Cidade, que disciplina o consórcio imobiliário. Além de autorizar seu emprego como instrumento de regularização imobiliária, a Lei promoveu importantes alterações em seu regime jurídico. Com isso, abriu um enorme campo para a regularização de situações de outra maneira insolúveis, em que não se verifica a aquisição originária da propriedade em assentamentos situados em terras privadas.
1. A importância do consórcio imobiliário
Instituído pelo Estatuto da Cidade em 2001, o consórcio imobiliário ainda é um instituto jurídico pouco aplicado, a despeito de seu grande potencial como instrumento de política urbana [1]. Ele consiste em um negócio jurídico realizado entre o poder público e proprietários de imóveis necessários à execução de projetos urbanísticos de interesse público, no qual a prefeitura executa o projeto e em seguida devolve aos proprietários novos imóveis de valor equivalente aos originais.
Trata-se de uma técnica de intervenção urbana alternativa à desapropriação, que se mostra adequada às situações em que se pretende produzir unidades imobiliárias conformes ao planejamento urbano vigente, mas que não apresentam natureza jurídica de bem público de uso especial ou de uso comum do povo, devendo, portanto, permanecer no mercado privado.
O consórcio pode ser considerado uma modalidade de land readjustment, ou reparcelamento do solo [2], técnica de urbanização amplamente empregada na Europa e na Ásia, e que na América Latina foi adotada pela Colômbia [3]. Entre outras situações objeto de reparcelamento, destaca-se a reurbanização do entorno de estações de transporte coletivo, a reconstrução de áreas atingidas por desastres e a renovação de áreas degradadas.
O Estatuto da Cidade previa, em sua redação original, o emprego do consórcio imobiliário como meio de viabilizar o parcelamento ou edificação compulsórios previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal. O que se busca, nesse caso, é promover um aproveitamento mais eficiente do solo urbano, mediante a ocupação de lotes já existentes e a urbanização de glebas contíguas à mancha urbana.
Em lugar de simplesmente sancionar o proprietário inadimplente com a elevação do IPTU e com a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, em um procedimento conflituoso de longa duração, o consórcio viabiliza a execução dessas obras por um agente do poder público, sem a necessidade de desapropriação. Como a execução das obras valoriza as propriedades, via de regra, o valor dos imóveis produzidos é suficiente para financiar o projeto sem a necessidade de aporte orçamentário.
O parcelamento de gleba e a edificação sobre lotes são atividades econômicas, que devem ser realizadas pelo próprio mercado sempre que possível. Apesar disso, apresentam interesse público, pois delas depende o adequado aproveitamento do solo urbano, o que justifica a instituição de parcelamento ou edificação compulsórios, quando assim exigido pelo plano diretor. Em se tratando, portanto, de uma atividade econômica de interesse público, nada impede que seja executada por meio de concessão urbanística, cabendo à empresa concessionária executar o projeto às suas expensas, oferecer o consórcio imobiliário aos proprietários atingidos pela obrigação de parcelar ou edificar e se remunerar mediante revenda de parte das unidades produzidas [4].
2. O consórcio imobiliário como instrumento de regularização fundiária
A Lei 13.465/2017 ampliou a aplicabilidade do consórcio imobiliário, para incluir a hipótese de regularização fundiária. Trata-se de medida de grande alcance, pois há diversas situações que não se prestam às técnicas tradicionais de regularização.
A regularização fundiária depende sempre de uma solução para a situação fundiária do assentamento e de uma alocação da responsabilidade pela elaboração do projeto urbanístico e execução das obras de urbanização.
Quando a terra é pública, a solução é simples: cabe ao titular ou ao município elaborar o projeto urbanístico, realizar as obras de urbanização e transferir, gratuita ou onerosamente, os lotes regularizados aos ocupantes.
Já no caso de terrenos privados, a solução é mais complexa, seja quanto à titulação dos moradores, seja quanto à elaboração do projeto e execução das obras.
No que diz respeito à titulação, o instituto jurídico tradicional é a usucapião, em qualquer das suas modalidades. A Lei 13.465/2017 instituiu, ainda, a legitimação fundiária, que consideramos inconstitucional, pela qual se atribui, mediante aquisição originária, a propriedade dos terrenos aos ocupantes de núcleos urbanos consolidados no dia 22 de dezembro de 2016, independentemente da anuência dos proprietários e do período anterior de posse.
Como regularizar, no entanto, os assentamentos que não se enquadrem nas hipóteses de usucapião ou legitimação fundiária? Na ausência de aquisição originária, faz-se necessário um acordo de vontades entre proprietários e ocupantes. Nesse sentido, a Lei 13.465/2017 prevê uma etapa inicial, denominada “demarcação urbanística”, em que se busca obter a anuência dos proprietários, para assegurar a viabilidade fundiária da regularização.
O procedimento inicia-se com a notificação dos proprietários e confrontantes (art. 20), que serão advertidos de que eventual omissão implicará a perda de eventual direito sobre o imóvel ocupado (§ 6º). Em seguida, deverá ser feito um levantamento dos passivos tributários, ambientais e administrativos associados aos imóveis objeto de impugnação (art. 21, § 2º). Por fim, faculta-se ao poder público adotar “qualquer medida que possa afastar a oposição do proprietário ou dos confrontantes à regularização da área ocupada” (§ 3º do art. 21).
O melhor cenário é aquele em que os proprietários promovem a regularização e alienam os lotes diretamente aos ocupantes. Trata-se de uma solução viável para os casos em que os beneficiários têm poder aquisitivo e os proprietários dispõem de capital e interesse em elaborar o projeto e executar as obras. A participação dos proprietários é fundamental, pois, mesmo nos casos em que os ocupantes se encontram organizados e têm renda suficiente para financiar a regularização, não há meios jurídicos de cobrar uma participação daqueles moradores que não queiram contribuir. Há um problema de ação coletiva, que se inviabiliza a assunção de responsabilidades por parte dos beneficiários em casos de assentamentos de maior porte.
Se não houver interesse dos proprietários em promover a regularização, é preciso que o poder público intervenha, seja para elaborar o projeto e executar as obras, seja para subsidiar a aquisição dos lotes regularizados pelos ocupantes.
Excluindo-se a hipótese de desapropriação, praticamente inviável no atual contexto de crise fiscal generalizada, o consórcio imobiliário apresenta-se como a melhor opção para viabilizar essa intervenção.
Caberá ao poder público oferecer aos proprietários lotes regularizados futuros de valor equivalente ao da gleba original, subtraído de eventuais passivos ambientais, tributários e administrativos. Caso necessário, o projeto urbanístico poderá ser elaborado de modo a produzir unidades imobiliárias excedentes desocupadas, a serem transmitidas aos proprietários ou revendidas para ressarcimento pelos custos incorridos pelo poder público. Os lotes ocupados, por sua vez, deverão ser alienados aos ocupantes em termos compatíveis com seu poder aquisitivo.
Mesmo nos casos suscetíveis de regularização por usucapião, o consórcio imobiliário poderá ser relevante, uma vez que o projeto urbanístico poderá exigir a realocação de unidades ocupadas, a serem substituídas por lotes ou apartamentos a serem construídos. Nesse sentido, a Lei 13.465/2017 alterou o Estatuto da Cidade, para ampliar a aplicabilidade da usucapião coletiva. Resulta desse processo um condomínio, que somente pode ser dissolvido após as obras de urbanização. Caso o poder público assuma a responsabilidade por essas obras, deverá celebrar um consórcio com o condomínio.
Vale ressaltar que o consórcio imobiliário poderá ser empregado em conjunto com outros instrumentos de caráter negocial, como a transferência do direito de construir, ou impositivo, como a requisição civil e a intervenção do poder público em parcelamento clandestino ou irregular (art. 15). No primeiro caso, faculta-se ao proprietário transferir para outro imóvel de sua propriedade ou alienar a terceiros o direito de construir do imóvel a ser regularizado. No segundo, executa-se a regularização à revelia do proprietário, com vistas a eliminar iminente perigo público ou a assegurar os padrões de desenvolvimento urbano do município e defender os direitos dos adquirentes de lotes.
Com efeito, a regularização de determinados assentamentos é tão importante para a sociedade, pelos riscos sanitários, ambientais e de defesa civil existentes, que se justifica a requisição do imóvel ocupado, independentemente da anuência do proprietário, para eliminação desses riscos. Embora a requisição não se confunda com o consórcio, posto que não exige acordo de vontades, é recomendável que se ofereça posteriormente o consórcio aos proprietários de imóveis requisitados sempre que a remoção dos riscos exigir a substituição das unidades imobiliárias existentes [5].
3. Modificações no regime jurídico do consórcio imobiliário
Vale registrar que, além de facultar seu emprego na regularização fundiária, a Lei 13.465/2017 promoveu importantes aperfeiçoamentos no regime geral do instituto.
A redação original do Estatuto da Cidade previa a devolução ao proprietário de unidades imobiliárias de valor equivalente ao do imóvel entregue ao poder público. Nada dizia, no entanto, sobre o destino a ser dado às unidades excedentes. A Lei 13.465/2017 determina que sejam incorporadas ao patrimônio público, viabilizando, assim, a recuperação dos investimentos realizados.
Também se passou a admitir como objeto de consórcio a reforma e conservação de edificações, em acréscimo à urbanização, à regularização fundiária e à construção de edificações. Com isso, o instituto poderá ser empregado em programas de revitalização de áreas degradadas e na recuperação de imóveis em ruínas, muitos dos quais portadores de importante contribuição para o patrimônio cultural.
Por fim, eliminou-se um grave obstáculo à adesão dos proprietários. Trata-se da exigência de que o imóvel entregue pelo proprietário seja avaliado segundo o valor venal adotado para cobrança do IPTU. Como esse valor tende a ficar defasado com relação ao valor de mercado, o consórcio resultava em prejuízo para o proprietário, fato que talvez explique sua escassa aplicação. Excluída essa restrição, abre-se um legítimo espaço de negociação para permuta de imóveis antigos por novos, capaz de satisfazer a ambas as partes.
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[1] Para uma análise mais aprofundada do instituto, consulte-se CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli, O Consórcio Imobiliário como Instrumento de Intervenção Urbanística, Editora Fórum, 2007.
[2] Sobre o instituto do land readjustment, em perspectiva internacional, consulte-se SOUZA, Felipe Francisco de. Métodos de Planejamento Urbano: Projetos de Land Readjustment e Redesenvolvimento Urbano. Editora Paulo’s, 2009. Analisamos a aplicabilidade do instituto ao Brasil, em PINTO, Victor Carvalho. O reparcelamento do solo: um modelo consorciado de renovação urbana. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal, 2013. A publicação Participatory and Inclusive Land Readjustment, da agência ONU-Habitat, apresenta os benefícios do instituto.
[3] Naquele país, o instituto foi disciplinado sob a denominação de “Reajuste de Tierras”, nos artigos 45 e 46 da Ley 388/1997.
[4] O município de São Paulo disciplinou a concessão urbanística por meio da Lei 14.917/2009. O PLS 444/2013, em tramitação no Senado Federal, prevê a possibilidade de remuneração de empresa concessionária de obra pública por meio da apropriação de imóveis privados resultantes da obra.
[5] A requisição urbanística constou dos arts. 38 a 44 do PL 2.191/1989, que foi um dos que instruíram a elaboração do Estatuto da Cidade, mas acabou não sendo incorporada ao texto legal. Atualmente, tramita no Senado Federal o PLS 65/2014, que institui a “requisição de imóveis para regularização, prevenção e recuperação de áreas insalubres, de risco ou atingidas por desastres”. A matéria também foi objeto da Emenda 12, apresentada à MPV 759/2016 no Congresso Nacional. Embora não tenha sido aprovada, a Lei 13.465/2017 incluiu menção à requisição civil, que tem assento constitucional e é autoaplicável.
Victor Carvalho Pinto - Consultor legislativo do Senado Federal, doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP e autor do livro “Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade”, em 4ª edição.
Fonte: JOTA
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