sábado, 7 de novembro de 2020

Cessão de Cotas: uma velha desconhecida


APRESENTAÇÃO DO ENREDO

O tema deste texto é a Cessão Fiduciária de Cotas de Fundo de Investimento como forma de garantia locatícia, prevista na Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91), em seu art. 37.

Neste texto, por praticidade (para a escrita e para a leitura), vamos chamar essa figura apenas de “cessão de cotas”. Porém, estaremos sempre tratando especificamente desse instituto de garantia previsto na Lei do Inquilinato.

Hoje, 2020, já não podemos considerá-la uma figura tão nova (vinda de 2005-2006). Porém, ela ainda é pouco usada no mercado imobiliário – embora tenha perspectivas teóricas interessantes para a prática.

A cessão fiduciária foi inserida na Lei do Inquilinato em 2005 (pela Lei 11.193), com vigor a partir de 2006, e é disciplinada pelo art. 88 da Lei 11.193/2005 e pela instrução normativa 432 da CVM – Comissão de Valores Mobiliários.

Além disso, lembremos que, num possível caso concreto, poderá ser relevante conferir as regras específicas, nos prospectos e regulamentos da instituição financeira, para o fundo utilizado como garantia. Dito isso, vamos ao tema.

COMEÇANDO PELO FIM: O QUE SÃO FUNDOS DE INVESTIMENTO?

Fundos de investimento, em termos gerais, são aplicações financeiras. Para simplificar bastante, você pode fazer uma (má) comparação com a poupança. A comparação é ruim do ponto de vista financeiro, mas é boa para o iniciante “visualizar” a operação. Você abre seu aplicativo/site do banco e transfere o dinheiro da sua conta corrente para a poupança. Ou, alternativamente, você transfere da conta corrente para um fundo de investimento da sua escolha – dentre os diversos fundos oferecidos pelo seu banco.

Nos fundos, você não é mais dono do dinheiro!

Ocorre que, AO CONTRÁRIO do que o leigo desavisado supõe, no momento em que você “tira” dinheiro da sua conta corrente e “coloca” num determinado fundo, você não é mais “dono” daquele dinheiro! Quando você põe seu dinheiro na poupança, você ainda é, sim, dono do dinheiro, mas com os fundos é diferente!

Uma informação relevante para se ter em mente é que os fundos operam como um condomínio (comum): vários proprietários (investidores diversos) do mesmo bem (o patrimônio do fundo). Assim como, por exemplo, quatro parceiros de negócios que compram uma casa não são, sozinhos, proprietários da casa por inteiro. Na verdade, cada um deles tem, supondo partes iguais, uma COTA de 25% sobre a casa.

Se você, leitor amigo, é um desses quatro parceiros e contribuiu com 100 mil para a compra de uma casa de 400 mil, de igual modo você não é mais dono de 100 mil reais (não há mais esse valor na sua conta). Você tem 25% dos direitos e deveres sobre a casa. Se houver valorização do mercado, sua cota de 25% valerá, na revenda, mais do que os 100 mil originais. E o contrário também será verdadeiro.

Uso esse exemplo para o leitor entender que, quando investe, digamos, 100 mil reais em um fundo de investimento, ele deixa de ser dono de 100 mil reais e se torna, então, dono de uma COTA, uma participação percentual, sobre aquele fundo escolhido. São essas cotas, portanto, que serão cedidas em garantia da locação, na modalidade que aqui estamos a comentar.

AVANÇANDO PARA O COMEÇO: O QUE É CESSÃO FIDUCIÁRIA?

O que é, então, a “cessão fiduciária”? A ideia de cessão implica transferência de titularidade. Leigamente, para simplificar, podemos pensar na compra e venda. O vendedor transfere a titularidade do bem para o comprador. O mesmo para a doação. A cessão segue a mesma lógica (transferência de titularidade). Porém, o Direito usa a palavra “cessão” para designar a transferência de direitos diversos do domínio sobre bens materiais, mas a lógica é a mesma, a da transferência.

Você pode vender ou doar a sua casa, se a casa for sua propriedade (registrada no cartório). Porém, se você tem apenas a posse, sem ser dono, você pode negociar a posse, num contrato de cessão de posse onerosa (como uma venda) ou gratuita (como uma doação). Do mesmo modo, quem tem a titularidade de um direito de crédito, pode ceder o crédito. Quem tem direitos autorais, pode ceder seus direitos autorais. E quem tem a titularidade de cotas de fundos de investimento (o “dono” das cotas), pode cedê-las a outra pessoa.

Por outro lado, a expressão “fiduciária” tem origem latina e expressa a ideia de confiança, donde se deriva a expressão mais conhecida “fiador” – o fiador “confia” que o pagamento será feito pelo devedor original; confia tanto que põe seu patrimônio como garantia daquele pagamento. Daí, por esse caminho, a expressão passou a ter um significado mais genérico de “garantia”, assim como na figura também conhecida da “alienação fiduciária”. Você, leitor amigo, sem dúvida já fez, ou conhece alguém que fez, uma compra financiada que teve o bem dado em garantia – dizemos, popularmente, que o imóvel, ou o carro, está “alienado” para o banco.

Portanto, na cessão fiduciária, temos uma transferência (cessão), porém não uma transferência “pura”, definitiva, e sim uma transferência em garantia (fiduciária): garantia de cumprimento de uma obrigação (a obrigação locatícia).

Então, o mecanismo da alienação fiduciária já é mais conhecido: o devedor do empréstimo (cliente, fiduciante) transfere a titularidade do bem (imóvel, carro etc.) para o credor (banco, fiduciário) como forma de garantia. Daí, sabemos: paga a dívida, a titularidade volta para o devedor (agora, ex-devedor; não paga a dívida, a titularidade se consolida plena com o credor (agora, proprietário pleno). A cessão de cotas opera de modo similar – só que com cotas de um fundo criado para servir de garantia a contratos locatícios.

OS PERSONAGENS DA TRAMA

Explanada a trama, vamos identificar seus personagens.

Cotista cessionário

O locador, que é o credor da obrigação locatícia, figura como cotista cessionário. Durante a vigência da garantia, ele é o titular das cotas, porém sua titularidade é fiduciária e resolúvel. Ele não pode, antes da consolidação da propriedade plena, dispor dessas cotas.

Ou seja, enquanto o inquilino estiver adimplente (em dia), o locador é juridicamente o titular, mas não pode “mexer” no dinheiro. Somente se sobrevier a inadimplência, após feito o procedimento cabível, somente então o locador se tornará dono pleno e poderá, então, dispor das cotas – seja para resgatá-las, seja para mantê-las nos fundos em busca de mais rendimentos, seja para cedê-las como garantia em novo contrato de locação em que seja ele, agora, o inquilino.

Cotista cedente

É o dono das cotas que serão cedidas; pode ser o próprio locatário, mas também pode ser terceiro que forneça a garantia a favor do locatário. Imagine alguém que seria, na prática comum do dia a dia, um fiador. Essa pessoa (“terceiro”, porque não é nem locador, nem locatário) pode fazer, ao invés da fiança, a aplicação de um dado valor no fundo de investimento que será usado como garantia, na forma de cessão de cotas. Nesse caso, o terceiro precisa ser indicado no contrato de locação e assinar esse documento. O cotista cedente, seja o inquilino ou terceiro, é o titular do direito eventual à consolidação da propriedade, caso o contrato de locação tenha sido regularmente adimplido.

Agente fiduciário

O Agente Fiduciário é a instituição financeira responsável pela administração dos investimentos atrelados ao fundo. Quando se contrata um fundo de investimento para fins de garantia locatícia, deve ser entregue ao agente fiduciário uma via do contrato de locação. Ele, o agente, terá um registro de cotistas e, quando feita uma cessão, deve a operação ser averbada também nesse registro.

QUESTÕES PRÁTICAS PARA AS LOCAÇÕES.

Especificidade do fundo

Para que seja possível a operação de cessão de cotas, o fundo em questão deve ser destinado a esse tipo de garantia locatícia, conforme prospecto da instituição financeira. Ou seja, não podem ser dadas como garantia da locação cotas de qualquer fundo de investimento – o agente financeiro deve ter constituído o fundo com a finalidade de garantia locatícia. Essa informação deve estar na designação do fundo; na dúvida, consulte o representante bancário da instituição escolhida.

Prazo da cessão de cotas

Pode ser feita a cessão por prazo determinado ou indeterminado. A lei não obriga que o prazo da cessão corresponda ao prazo do contrato de locação. Isso é uma das diferenças de funcionamento entre o seguro fiança e a cessão de cotas. O seguro fiança, por norma da Susep, deve ser ajustado no mesmo prazo da locação garantida. (Circular 585, de 2019, art. 13).

No caso da prorrogação tácita do contrato, fato muito corriqueiro na prática locatícia, o seguro fiança, a princípio, está encerrado, salvo nova pactuação expressa. Porém, se a modalidade for a cessão de cotas, e se a cessão for contratada por prazo indeterminado, a garantia não precisará ser renovada, subsistindo em todos os seus termos, mesmo com a prorrogação tácita do contrato locatício.

Ausência de limite de valor

Ao contrário da caução dada em dinheiro, a cessão de cotas não tem restrição de valor. Ou seja, podemos criar uma cessão de cotas que correspondam a mais (até muito mais!) do que o valor de 3 mensalidades locatícias. Sendo um produto igualmente financeiro, essa é uma grande vantagem para o locador/credor.

Qualificação como garantia real

A cessão de cotas é uma modalidade de garantia real, de modo que a dívida locatícia “segue” o bem (cotas dos fundos). Desse modo, por exemplo, o falecimento do inquilino não transferirá o valor das cotas para os herdeiros. As cotas continuam vinculadas como garantia do contrato de locação. Se, ao final, nada for devido, aí sim as cotas serão convertidas para os herdeiros. Porém, se houver o inadimplemento, o credor terá direito a consolidar sua propriedade (antes fiduciária) e resgatar as cotas em dinheiro, sem precisar de nenhum procedimento de inventário, no caso de nosso exemplo.

Procedimento extrajudicial para o credor/locador

Em caso de inadimplência da locação, para levantamento das cotas a favor do locador, não é necessária ação judicial. Basta mero requerimento do locador ao agente fiduciário (o banco), informando o inadimplemento.

De modo mais específico, o credor/locador fará a notificação extrajudicial do inquilino (sempre) e a do terceiro cotista cedente (se houver). Após a notificação, há o prazo de 10 dias para o pagamento devido. A lei, de 2005, não diz expressamente, mas, por teoria, devemos entender que esse prazo é contado em dias corridos, pois é um prazo de direito material, não afetado pelo novo Código de Processo Civil que definiu prazos processuais em dias úteis.

Após o prazo, não feito o pagamento devido, o credor/locador notificará o agente fiduciário (banco) e a propriedade das cotas será consolidada com o credor. A responsabilidade por eventual falsidade ou erro nessa comunicação, quanto ao inadimplemento, será exclusiva do credor/locador – o agente fiduciário só responderá por ação dolosa.

Consolidação das cotas

Em caso de inadimplência locatícia, feitas as notificações e esgotado o prazo de 10 dias sem pagamento, o locador notificará extrajudicialmente o agente fiduciário. Na notificação, será informado o inadimplemento. Com isso, a propriedade das cotas será “consolidada” com o credor/locador – ou seja, a propriedade que antes era dela, mas como propriedade fiduciária resolúvel, agora será propriedade plena.

Depois disso, o locador poderá delas dispor livremente. Poderá decidir se prefere fazer o resgate, convertendo as cotas em dinheiro, ou se prefere manter as cotas nos fundos, como aplicação financeira, para resgate no futuro, quando quiser. Eventualmente, como as agora cotas são dele, poderá inclusive usá-las como garantia, se vier a ser inquilino em outro contrato!

A consolidação das cotas se dará SEM PREJUÍZO da ação de despejo e/ou procedimentos judiciais e extrajudiciais de cobrança dos débitos remanescentes.

Cobrança pela dívida remanescente

É muito possível que, num caso real, o valor das cotas cedidas seja insuficiente para pagamento de toda a dívida inadimplida pelo inquilino. Pode a diferença a pagar ser demandada? Depende contra quem. Vejamos.

O inquilino sempre poderá ser cobrado pela totalidade da dívida, pois é dele o débito obrigacional. Então, se o cotista cedente for o próprio inquilino, ele poderá ser normalmente demandado nos meios comuns de cobrança pelo débito remanescente, caso o valor das cotas não seja suficiente para o pagamento integral.

Porém, ao contrário, se o cotista cedente for terceira pessoa, que não o inquilino, ele não responderá por eventual débito suplementar! Então, se o titular original das cotas (o cedente) for um terceiro (não o inquilino), caso o valor das cotas não seja suficiente para pagar a totalidade dos valores devidos ao locador, o cedente (terceiro) não poderá ser cobrado pela dívida remanescente – diferente do que aconteceria no caso da fiança, tal como costumeiramente praticada (sem limitações) no mercado locatício. Claro que o inquilino poderá sempre ser cobrado pela totalidade da dívida, mas o cotista cedente, sendo terceiro, estará livre da cobrança pelo saldo remanescente.

Exoneração do cotista cedente

Como dissemos, a cessão de cotas pode ter prazo determinado ou indeterminado. Não existe obrigação legal do prazo da cessão de cotas acompanhar o prazo da locação. E como também dissemos, a garantia pode ser prestada por terceiros em benefício do inquilino – pense, por exemplo, num parente ou amigo que, ao invés de ser fiador, disponibilizará um valor em fundo de investimento para ser usado como garantia.

Se tiver prazo determinado, ao fim do prazo da cessão, ela é extinta de pleno direito e as cotas voltam ao patrimônio do cedente, torando-se o contrato de locação sem garantia. Porém, se fixada sem prazo determinado, a cessão de cotas vigorará até o fim do prazo determinado do contrato de locação.

Contudo, na conversão do contrato de locação de prazo determinado para indeterminado, quando ocorre a prorrogação tácita, o terceiro poderá denunciar (extinguir unilateralmente) a cessão de cotas, extinguindo a garantia, semelhante ao que se dá com a fiança. Nesse caso, deverá ser notificado o locador, o locatário e o agente fiduciário. Se o cedente for o próprio inquilino, obviamente essa prerrogativa não existirá.

Entretanto, a exoneração é uma possibilidade, não uma necessidade criada por lei. Então, se a cessão de cotas for criada por prazo indeterminado, ela perdurará enquanto não houver a notificação expressa para provocar sua denúncia.

Diferentemente do que previsto na fiança, o terceiro que se exonera se desobriga de imediato. Na fiança locatícia, o fiador, ao se exonerar (quando possível), permanece atrelado ao contrato por mais 120 dias após a notificação do locador. Na cessão de cotas, quando possível, a exoneração produz efeitos imediatos, logo após a notificação do agente fiduciário e do locador.

Nesse caso de extinção da cessão de cotas, por prazo ou por exoneração do terceiro, o locador terá o direito, pelo art. 40 da Lei do Inquilinato, de exigir a renovação da garantia. Não sendo renovada, poderá ser extinto o contrato, usando-se, se necessário, a ação de despejo.

Desvinculação do patrimônio dos fundos do patrimônio do banco

Os valores do fundo de investimento não integram o patrimônio do agente fiduciário (instituição financeira). Qualquer problema da instituição não poderá afetar o patrimônio do fundo. Numa falência, por exemplo, os valores não são alcançados pelos credores do banco.

Afetação das cotas ao contrato de locação

Uma vez feita aplicação (compra das cotas, quando se “põe” o dinheiro no fundo) e feita a cessão das cotas, elas (cotas) não poderão ser usadas em outras garantias, nem podem ser penhoradas por outras dívidas do cotista cedente (inquilino ou terceiro).

Ou seja, se João fez a aplicação de 5 mil nos fundos e se tornou titular de 0,0015 cotas, quando João faz a cessão dessas 0,0015 cotas para garantir um contrato de locação de Pedro, enquanto não encerrada a cessão fiduciária, essas cotas não poderão ser usadas para garantir outro contrato, de nenhuma outra pessoa, de nenhum outro valor.

Da mesma forma, se João por acaso tiver dívidas não pagas, os credores de João podem pedir ao judiciário para penhorar seu patrimônio – digamos seu carro, seu saldo de conta corrente, suas ações da Petrobrás, por exemplo. Porém, aquelas cotas cedidas em garantia não poderão ser penhoradas para pagamento de dívidas do João, pois estão afetadas a garantir o contrato de locação indicado.

Todavia, por teoria, é de se considerar a possibilidade de que se penhore não as cotas em si, mas o direito eventual às cotas. Isso porque, no futuro, caso a locação seja regularmente paga, a cessão será extinta e o cedente voltará a ser titular pleno das cotas – momento em que, então, elas (cotas) poderão ser penhoradas.

Entendemos que isso vale, inclusive, para dívidas do locador: se o locador deve no mercado e não paga sua dívida, podemos penhorar, ao menos em tese, o direito de crédito ao pagamento mensal dos locatícios. Mas, além, há a possibilidade de se penhorar o direito eventual às cotas cedidas, porque elas serão consolidadas como propriedade plena do locador, se o locatício não for corretamente pago. Então, estarão disponíveis para expropriação judicial.

Direito de regresso

Caso o cotista cedente seja terceiro, que não o próprio inquilino, devemos interpretar a figura dentro do sistema do direito civil para entender que ele tem, por contrato, apenas a responsabilidade, mas não o débito obrigacional propriamente dito. Dessa forma, caso o inquilino, titular do débito, deixe de pagar a locação e as cotas cedidas venha a ser perdidas a favor do locador, é de se entender que o terceiro, cotista cedente, terá o direito de regresso contra o inquilino.

Porém, é de se ressaltar que a lei não determinou expressamente a sub-rogação, que é, em termos simples, a substituição plena daquele que paga em todos os direitos, garantias, preferências e ações específicas relativas ao crédito, que antes eram do credor original, no caso, o locador. Assim, se não houver no contrato de locação, ou no termo de cessão de cotas, a criação expressa da figura da sub-rogação, é de se entender que ela não existirá. Ou seja, cobra-se em regresso, mas sem todas as prerrogativas da sub-rogação propriamente dita.

Rescisão e despejo

Detalhe importante da prática locatícia é que a consolidação das cotas como propriedade plena do locador não descaracteriza a rescisão contratual pelo inadimplemento e não afasta a possibilidade de início da ação de despejo.

ALGUMAS COMPARAÇÕES ENTRE AS DIFERENTES GARANTIAS

Sem querer esgotar todos os detalhes do assunto, mas apenas dar algumas linhas gerais de análise prática, como norte a orientar a navegação inicial por essas figuras, faremos alguns apontamentos sobre as características práticas marcantes de cada garantia locatícia.

O leitor deve ter em mente que não há garantia perfeita, não existe segurança absoluta. Cada situação específica, de cada contrato, de cada parte, de cada terceiro envolvido, fará ser mais interessante, no caso, uma ou outra garantia. Então, o objetivo desta sessão é dar ao leitor elementos de análise para melhor avaliar seu caso particular.

“La garantía soy yo”

Embora estejamos tratando da análise das garantias, uma das possibilidades práticas é abrir mão integralmente de qualquer garantia. Dizemos isso e logo nossos ouvintes se chocam e começam a tremer em suas cadeiras. Passado o susto, explicamos que a lei do inquilinato previu alguns (pequenos) benefícios para o contrato sem garantia.

Primeiro, o valor locatício pode ser cobrado pelo mês vincendo (“paga e mora”), não pelo mês vencido (“mora e paga”), como é a regra geral. Segundo, será configurada hipótese de despejo liminar, acelerando a desocupação forçada, via judiciário, do imóvel locado.

Então, explicamos que, diante da ineficiência prática de uma garantia fraca (fiador sem patrimônio ou caução de três mensalidades, por exemplo), talvez essas vantagens legais sejam mais interessantes do que a garantia sugerida.

A boa e velha fiança

A fiança, por sua vez, é a modalidade mais conhecida pelo mercado. Ela tem a grande vantagem de, se bem feita, ser uma garantia bastante eficaz, sobretudo pela possibilidade de que o bem de família do fiador seja penhorado.

O inquilino sente-se constrangido de precisar pedir a alguém que seja seu fiador, o que já é uma dificuldade prática. As relações de fiança costumam ser prestadas entre parentes ou amigos íntimos, o que pode ser ruim se tivermos pessoas má intencionadas, favorecendo o conluio.

A maior dificuldade da fiança, porém, está justamente na condição de “fazer bem feita”, porque muitas vezes a análise econômica é mal feita e, ainda mais frequente é uma deficiência na análise jurídica: o fiador é casado? Seus bens estão desimpedidos? Os bens estão no local da execução?

O bem do fiador não fica vinculado ao contrato (ao contrário do que muitos leigos pensam) – nada impede que o fiador se desfaça do patrimônio logo após assinar a fiança. Por fim, o judiciário vem recolocando em xeque a possibilidade de penhorar o bem de família do fiador, estando o cenário das locações novamente envolto em insegurança jurídica – sobretudo no caso de locações comerciais.

Caução em várias formas

A caução é uma opção também muito praticada, mas ela é costumeiramente feita em dinheiro. Assim, incidirá a restrição de valor: para caução em dinheiro, o limite máximo é o valor de três meses de locação. Localizamos no mercado a chamada “garantia no cartão de crédito”, que deve ser entendida como garantia em dinheiro e, por isso, também limitada ao valor de três mensalidades locatícias. E para que não se tenha dúvida: o limite de três mensalidades não pode ser calculado considerando as taxas condominiais e o valor de IPTU, mas somente o valor do locatício.

O enorme problema dessa garantia, com limite de três mensalidades, é que ela será, na prática, absolutamente insignificante. Caso ocorra um inadimplemento com necessidade de despejo forçado via judiciário, o tempo do processo costuma ser muito mais demorado do que os tais três meses, de modo que o prejuízo acumulado com a demora do processo superará demasiadamente o valor dado em garantia.

A caução em bens é uma excelente opção teórica – sobretudo de bens imóveis, tanto pela “imobilidade” do bem (com perdão pela redundância), que não vai “desaparecer no espaço tempo”, como também pelo registro imobiliário, que dá segurança pela facilidade de rastreio das transações praticadas sobre o bem. Tem a vantagem de criar uma garantia com eficácia real, porém, diferente da cessão de cotas, não gera a afetação patrimonial tratada antes. Desse modo, um imóvel caucionado não fica afetado à condição de garantidor exclusivamente daquele débito. Além disso, uma caução de um imóvel gerará custos de registro que muitas vezes as partes não querem suportar.

A caução em títulos, inserindo aí a figura dos famosos títulos de capitalização, são interessantes do ponto de vista da praticidade e, além disso, sendo caso de “título”, não de “dinheiro”, não estão submetidos ao famigerado limite de três mensalidades. Porém, por outro lado, mais uma vez não se tem a afetação da garantia. Além disso, títulos de capitalização são vistos pelos especialistas em finanças como o pior dos investimentos financeiros e esse dinheiro terá nenhum ou quase nenhum rendimento, de forma a serem menos interessantes do que a cessão de cotas.

Seguro fiança

O seguro fiança, por sua vez, é maravilhosamente eficaz, mas costuma ser considerado demasiadamente caro. O prêmio, que é o valor cobrado pela seguradora, deve ser pago pelo inquilino – ou por alguém em seu benefício. Esse valor (prêmio) depende da seguradora, mas costuma ser aproximadamente uma “décima terceira” mensalidade. Ou seja, num ano (12 meses) o inquilino pagaria 13 mensalidades. Isso encarece o contrato locatício e dificulta sua aceitação.

A cessão fiduciária de cotas de fundos de investimento

A cessão de cotas, então, surge como produto pouco conhecido, mas que tem enorme potencial prático. Pode ser prestada pelo inquilino diretamente, ou por terceiros em seu benefício. Não tem a restrição de valor da caução em dinheiro. O inquilino não tem o constrangimento de pedir pra alguém ser seu fiador. O valor aplicado tem rendimento financeiro interessante (depende do perfil do fundo, claro; mas será melhor do que qualquer título de capitalização). Haverá custo do agente financeiro, mas geralmente como taxa de administração, incidente somente sobre o rendimento do fundo. Ao final, o valor principal com o rendimento será ou entregue ao credor, ou devolvido ao inquilino. O procedimento é todo extrajudicial, não ensejando perda de tempo para receber a garantia. Não há a restrição de tempo, como no seguro fiança, podendo haver a renovação tácita da locação sem preocupar o locador. O valor aplicado no fundo fica afetado à locação, não podendo ser usado de nenhuma forma até que seja liberado ou para o locador, ou devolvido para o inquilino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cessão de cotas é estranhamente pouco utilizada pelo mercado das locações, talvez porque tem um nome complicado – isso parece, mas não é piada: a dificuldade de compreensão contribui para gerar um distanciamento dos possíveis interessados. Sabemos que o mercado de locações é formado, em expressiva maioria, por proprietário de um único imóvel que o alugam para complemento de renda mensal.

Essa maioria de locadores frequentemente faz seus contratos por conta própria, ou por imobiliárias pequenas, sem assessoria jurídica (vista como “custo” pelas imobiliárias). Com isso, o comum é que sigam o caminho conhecido da fiança ou da caução. Quando muito, fazem um seguro fiança, mais intuitivo, pois todos fazemos seguro de carros, residências etc.

Com a baixa demanda do mercado, temos um ciclo vicioso: menos ofertas pelas instituições financeiras, menos divulgação, menos busca por informação sobre essa figura e, então, fechando o ciclo, menos ofertas pelas instituições.

Todavia, passou da hora das imobiliárias, das assessorias jurídicas e dos operadores do mercado financeiro fazerem um esforço de divulgação e simplificação das vantagens dessa figura tão poderosa. Ela beneficia o locador, que pode negociar, falando em termos leigos, uma garantia parecida com a caução, porém de valor maior do que três mensalidades; ela beneficia o inquilino, que pode ele mesmo prestar uma garantia financeira sem dispor de um bem (caução de um veículo, por exemplo), sem o custo alto de um seguro fiança e sem o constrangimento de pedir para alguém ser seu fiador.

Marcus Vinícius Martins é advogado desde 2002; especialista em Direito; bacharel e mestre em Filosofia; professor universitário e de cursos de pós-graduação; autor do e-book Tudo Sobre a Usucapião Extrajudicial, membro da Comissão de Locações e da Comissão de Direito Condominial do IBRADIM; Presidente da Comissão Nacional de Direito Imobiliário da ABA. 
Fonte: Artigos JusBrasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário