sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de financiamento imobiliário regidos pela norma especial contida na Lei 9.514/97


Há um bom tempo, nossos Tribunais vêm debatendo a respeito da aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de compra e venda de imóvel com pacto acessório de alienação fiduciária em garantia, regido pela Lei 9.514/97.

A referida lei foi criada com o intuito de fomentar o mercado imobiliário e dispor normas específicas sobre o financiamento imobiliário na modalidade de alienação fiduciária em garantia.

Nesse tipo de financiamento imobiliário, basicamente, o adquirente irá obter um crédito de um banco, de uma incorporadora ou de uma loteadora, para aquisição de um imóvel e, como garantia desse crédito, transferirá para esse credor a propriedade do bem enquanto não quitar todas as parcelas.

A questão tormentosa para esse tipo de financiamento parte da análise das demandas envolvendo o pedido de resolução contratual por desinteresse ou incapacidade financeira do adquirente, cujo propósito, em síntese, seria o de obter a devolução das prestações pagas, independente de leilão do imóvel dado em garantia.

Ou seja, havendo a intensão por parte do adquirente em desfazer o contrato de financiamento, poderia este socorrer-se ao Código de Defesa do Consumidor para pleitear a restituição dos valores pagos?

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento no sentido de garantir a aplicação da norma especial, Lei 9.514/97, em detrimento do Código de Defesa do Consumidor.

Todavia, ainda assim, no dia a dia, nos deparamos com diversas decisões judiciais (de 1º e 2º grau) privilegiando, equivocadamente, o adquirente, ou devedor fiduciante, por meio da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (art. 53), Súmula 543 do STJ e Lei do Distrato.

Ocorre que, com mais razão encontra-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, isso porque, os julgados deste Tribunal partem dos critérios da especialidade e da cronologia da norma, ou seja, consideram o fato da Lei 9.514/97 ser especial e posterior ao Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), para garantir a prevalência da primeira sobre a segunda.

Aliás, é comum encontrar a seguinte lição nas ementas dos julgados do STJ:

“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento no sentido de que, ocorrendo o inadimplemento de devedor em contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, a quitação da dívida deverá observar a forma prevista nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica”.

Trata-se de entendimento dominante acerca do tema, como se vê dos recentes julgados:

● AgInt no AgInt no REsp 1.861.293/SP (publicado em 11/12/2020);

● AgInt no AREsp 1.724.267/DF (publicado em 01/12/2020); e

● AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1.865.396/SP (publicado em 29/10/2020);

Também, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ainda que o adquirente não esteja em atraso com o pagamento das prestações do financiamento imobiliário, não está ele autorizado a desfazer o negócio sem as implicações da lei especial (Lei 9.514/97, arts. 26 e 27).

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, por exemplo, em julgado emblemático e recente (REsp 1.867.209/SP), considerou que o desinteresse do adquirente na continuidade do contrato configura quebra antecipada do contrato (“antecipatory breach”). Veja-se:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO COM PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL (LOTE) GARANTIDA MEDIANTE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. AUSÊNCIA DE CULPA DO VENDEDOR. DESINTERESSE DO ADQUIRENTE. 1. Controvérsia acerca do direito do comprador de imóvel (lote), adquirido mediante compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, pedir a resolução do contrato com devolução dos valores pagos, não por fato imputável à vendedora, mas, em face da insuportabilidade das prestações a que se obrigou. 2. A efetividade da alienação fiduciária de bens imóveis decorre da contundência dimanada da propriedade resolúvel em benefício do credor com a possibilidade de realização extrajudicial do seu crédito. 3. O inadimplemento, referido pelas disposições dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97, não pode ser interpretado restritivamente à mera não realização do pagamento no tempo, modo e lugar convencionados (mora), devendo ser entendido, também, como o comportamento contrário à manutenção do contrato ou ao direito do credor fiduciário. 4. O pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações, configura quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da Lei 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (REsp 1867209/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 30/09/2020)

Considerou o ministro que a pretensão de resolução equivale à mora do adquirente, ou seja, o simples fato do cliente pretender resolver o contrato antecipadamente por desinteresse ou incapacidade financeira, equivaleria a mora contratual, prevalecendo os dispositivos da lei especial (arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97).

Vale destacar que o adquirente precisar ter em mente que esse tipo de contrato, em geral, é irretratável e irrevogável, sendo que, no caso de inadimplência, haverá, por parte do credor, o procedimento extrajudicial para satisfação de seu crédito.

Isso quer dizer que, havendo o interesse em desfazer o contrato de forma antecipada ou sendo o caso de atraso do pagamento das parcelas do financiamento, o imóvel irá a leilão para satisfação do crédito do credor que emprestou dinheiro ao devedor para aquisição de um imóvel, o qual foi dado como garantia do negócio.

Esse procedimento é constituído por meio de atos solenes, como, notificação do devedor (no caso, o adquirente) em mora, consolidação da propriedade em favor do credor (que pode ser, o Banco, a Incorporadora, ou a Loteadora) e realizações de dois leilões públicos. Tudo isso, bem ilustrado nos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97.

Todavia, isso não quer dizer que não há formas de se solucionar a questão, pois a favor do adquirente tem-se as seguintes possibilidades: a) possibilidade de se buscar a cessão do contrato (arts. 28 e 29 da Lei 9.514/97), desde que tenha anuência expressa do credor fiduciário; e b) possibilidade de dação em pagamento (art. 26, § 8º, da Lei 9.514/97), dispensando os procedimentos previstos de leilão (art. 27 da Lei 9.514/97).

Mas, como toda regra tem uma exceção, chamo atenção para o caso de inadimplemento contratual ou quebra do contrato por parte do credor. Caso seja este o responsável pelo descumprimento do contrato, como atraso na entrega da obra ou entrega com vícios construtivos, abrir-se-á a possibilidade para o adquirente pleitear a resolução do contrato com a declaração de devolução dos valores pagos sem a incidência da lei especial, a exemplo da decisão monocrática da lavra do ministro Moura Ribeiro, nos autos do REsp 1.757.802/DF (publicada em 18/12/2020).

Luiz Antônio Lorena de Souza Filho - Advogado dedicado à assessoria em Direito Imobiliário
Fonte: Artigos JusBrasil

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