O novo Código Civil, inovando em relação ao antigo, regulou o direito de superfície, como modalidade de direito real. Paralelamente, deixou de regular o instituto da enfiteuse ou aforamento, proibindo mesmo a constituição de novas enfiteuses ou subenfiteuses, subordinando as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil de 1916. Preservou apenas as enfiteuses de terrenos de marinha, que continuam reguladas por lei especial. A maioria da doutrina atual entende que o direito de superfície pode substituir com vantagens o instituto da enfiteuse. É o que se verá do exame dos contornos deste novo instituto.
Diga-se, inicialmente, que embora novo em nossa codificação, a superfície tem sua origem no direito romano, decorrente da necessidade de se regular a possibilidade de construção em prédio alheio. A conotação de direito real sobre coisa alheia foi-lhe atribuída, todavia, somente na época clássica. Concedia-se o direito de superfície a quem, sob certas condições, construísse em terreno alheio, com o que se admitia que o construtor tivesse direito à obra, separada do direito ao solo.
O Código Civil português atual – que parece ter inspirado o nosso legislador – ao mesmo tempo em que aboliu a enfiteuse, regulou a superfície [que já fora introduzida na legislação daquele país por lei esparsa de 1948] como a “faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou nele fazer ou manter plantações”, admitindo que a constituição do direito de superfície tenha como contrapartida uma contraprestação pecuniária, seja única ou anual, perpétua ou temporária.
Vejamos, em apertada síntese, os contornos dados pelo nosso novo Código Civil ao direito de superfície. “O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis”, dispõe o art. 1369, completando seu único parágrafo que tal direito não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.
Embora o Código não explicite, a doutrina tem entendido que é possível a constituição do direito de superfície sobre plantações ou construções já existentes, como, aliás, dispõe o direito lusitano. Cite-se como exemplo um prédio cuja construção foi iniciada pelo proprietário e restou inacabada, atribuindo-se o direito de superfície àquele que se propõe a acabá-lo.
À construção ou plantação que decorre do direito de superfície é denominada de “implante”.
O contrato que institui a superfície, lavrado por instrumento público, como já dito, poderá estipular que a concessão seja gratuita ou onerosa. Sendo onerosa, o pagamento da contraprestação, denominada “cânon superficiário” ou “solarium”, poderá ser feito de uma só vez, ou parceladamente, na forma que for avençada na escritura constitutiva.
O legislador estabeleceu o direito de preferência, tanto no caso de o proprietário pretender alienar o imóvel – caso em que o superficiário terá preferência na aquisição – quanto na hipótese de o superficiário pretender transferir o direito à concessão, caso em que o proprietário terá preferência na aquisição, sempre tanto por tanto. Em qualquer dos casos, uma vez exercido o direito de preferência, consolida-se a propriedade em uma só pessoa.
Seja gratuita ou onerosa a constituição do direito de superfície, os encargos e tributos que incidam sobre o imóvel são de responsabilidade do superficiário, nos termos do art. 1371 do Código Civil.
O direito de superfície, a teor do art. 1372, pode transferir-se a terceiros, seja por ato inter vivos ou mortis causa, não cabendo ao concedente o direito a qualquer pagamento pela transferência.
A concessão cessa de pleno direito no seu termo final. Todavia, o Código prevê a possibilidade de resolução da concessão antes de seu termo, na hipótese de o superficiário dar destinação diversa daquela para que foi concedida. Acresceríamos, também, a possibilidade de extinção do direito de superfície pela falta de pagamento do “solarium”, na hipótese de concessão onerosa, configurando infração contratual; e, ainda, a extinção em decorrência de desapropriação, sem falar na hipótese de confusão [ex.: aquisição da propriedade pelo superficiário, quando se confundiriam na mesma pessoa a propriedade e o direito de superfície, consolidando-se a propriedade plena nessa pessoa].
A indagação que se faz diz respeito ao que ocorre com a construção ou plantação, quando da extinção da concessão. Responde a tal questão o art. 1375, dispondo que, em tal hipótese, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não estipularam em contrário. Vale dizer, se a escritura constitutiva não previu uma indenização ao superficiário, quando da extinção da concessão, a construção ou a plantação reverter-se-á ao domínio do proprietário do solo independentemente de pagamento.
Registre-se que, se a extinção do direito de superfície decorrer de desapropriação, o poder expropriante deverá pagar indenização ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um.
O Código dispõe, ainda, que o direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se pelas disposições do Código, no que não for diversamente disciplinado por lei especial. Uma parte da doutrina vê, neste dispositivo, uma clara alusão ao Estatuto da Cidade [Lei 10.257/2001], que em seus arts. 21 a 23 cuidou do direito de superfície de forma um tanto mais abrangente. Como o Código Civil é posterior ao Estatuto da Cidade, entende tal corrente doutrinária que o Estatuto da Cidade aplicar-se-ia apenas à concessão de superfície feita pelas pessoas jurídicas de direito público interno, enquanto que o direito de superfície entre pessoas físicas e/ou jurídicas de direito privado seria regulado pelo Código Civil. Tal questão não está pacificada, pois outra corrente entende, pelo princípio da especificidade, que o Estatuto da Cidade prevalece para a superfície urbana, dado que o Estatuto é um instrumento de política de desenvolvimento urbano [cf. Jornadas do STJ 93, nesse sentido]. Diga-se que o deslinde de tal polêmica é importante, pois a superfície, no Estatuto da Cidade, pode ser constituída a prazo indeterminado [diferentemente do Código Civil, que exige prazo determinado] e pode ter como objeto a utilização do subsolo [que só por exceção é admitido no Código Civil]. Caberá à jurisprudência a última palavra a respeito.
À guisa de conclusão, cabe indagar: mas qual a utilidade desse instituto? A locação ou arrendamento não resolveriam satisfatoriamente a relação entre as partes? A resposta é indubitavelmente negativa. A locação estabelece apenas um direito pessoal, enquanto que a superfície implica num direito real sobre coisa alheia. Em muitas situações em que o investimento do interessado na construção ou plantação é elevado, protege-se melhor tal investimento com a utilização de instituto de índole real. De outro lado, colhem-se na experiência estrangeira certos exemplos que demonstram a utilidade do instituto: é o caso, por exemplo, da constituição do direito de superfície a fim de que o superficiário construa um shopping center no imóvel, explorando-o pelo prazo fixado, geralmente longo; é a hipótese de, em estádio de futebol ou de outra modalidade esportiva, em que se cria o direito de superfície específico quanto a determinada cadeira cativa; é o caso de uma plantação que exija altos investimentos ou prazo longo de maturação [cite-se o exemplo dos seringais racionalmente plantados que, a par do alto custo de implantação e manutenção, só começarão a produzir receita a partir do 7o ano]; e por aí seguem-se os exemplos colhidos na experiência internacional.
Saber se tal instituto terá grande utilização é tarefa que exige tempo. É preciso que os operadores do direito acostumem-se a usar tal novo instituto, assimilem suas vantagens, assim eliminando as normais incertezas que a novidade sempre traz. Só assim o direito de superfície deixará de ser um punhado de regras hipotéticas, inseridas na codificação civil, para ganhar o corpo na realidade fática. O tempo dirá...
Osíris Leite Corrêa
Sócio de Leite Corrêa Advogados Associados
olc@leitecorrea.com.br
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